Ana Carolina Pekny

O projeto das audiências de custódia foi lançado em fevereiro de 2015 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em São Paulo. A espera foi longa: Vinte e três anos se passaram desde a ratificação pelo Brasil da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, que em seu artigo 7º estabelece que “toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz (...) e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo”. As audiências foram implantadas em todas as unidades federativas, mas a cobertura do projeto ainda é baixa, na prática. Segundo levantamento<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote1sym" name="sdfootnote1anc">1</a> do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), somente um a cada cinco municípios brasileiros realizava audiências de custódia em 2017. 
Mesmo quando realizadas, há obstáculos à efetivação das audiências como mecanismos de garantia de direitos. Pesquisa<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote2sym" name="sdfootnote2anc">2</a> realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública a pedido do CNJ encontrou uma série de deficiências e desafios no que diz respeito à prática das audiências de custódia em seis estados - Distrito Federal, Paraíba, Rio Grande do Sul, Tocantins, Santa Catarina e São Paulo -, como o uso excessivo e não justificado de algemas; a presença de policiais em número considerável nas audiência, o que torna o ambiente hostil à realização de denúncias; o fato de que em quase um terço dos casos os juízes não tenham perguntado aos acusados sobre eventuais agressões sofridas; a precária comunicação entre presos e defensores; a falta de explicações ao preso sobre a finalidade da audiência e seus direitos; a consideração de antecedentes criminais mesmo sem trânsito em julgado; e a realização de perguntas sobre o mérito dos fatos que levaram à prisão, o que, na prática, transforma as audiências de custódia “em mais uma etapa do processo penal”. O levantamento também concluiu que pessoas que cometeram crimes sem violência têm sido mantidas encarceradas com frequência, já que seis entre 10 detidos por tráfico tiveram suas prisões convertidas em preventivas. 
Como as audiências, recém-nascidas, também inspiram cuidados bebês como os de Jéssica e Jaqueline. Detida por tráfico de drogas na cidade de São Paulo no sábado de carnaval, Jéssica não estava presente à audiência em que o juiz decidiu pela manutenção de sua prisão, a despeito de sua gravidez e primariedade. Deu à luz no domingo a um bebê que permaneceu com ela em uma cela de distrito policial por dois dias.<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote3sym" name="sdfootnote3anc">3</a> Já o bebê de Jaqueline, nascido no Rio Grande do Sul, teve sua sorte recentemente mudada pelo Supremo Tribunal Federal. Detida por tráfico, Jaqueline teve sua prisão mantida em audiência de custódia e confirmada pelo Tribunal de Justiça, ainda que tivesse parido 11 meses antes do flagrante. A decisão do Ministro Celso de Mello<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote4sym" name="sdfootnote4anc">4</a> pela soltura da mãe citou as Regras de Bangkok das Nações Unidas, que estabelecem que “ao sentenciar ou aplicar medidas cautelares a uma mulher gestante ou a pessoa que seja fonte principal ou única de cuidado de uma criança (...) que se considere impor penas privativas de liberdade apenas a casos de crimes graves ou violentos”. Por mais esperança que inspire o habeas corpus, causa espanto que casos como o de Jaqueline precisem chegar à mais alta corte de justiça.
Pioneiro nas audiências, o estado de São Paulo merece destaque, até por seu potencial efeito inspirador sobre outras unidades federativas. Recentemente, repercutiu a notícia<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote5sym" name="sdfootnote5anc">5</a> de que, após mudança no Departamento de Inquéritos Policiais (DIPO), estima-se que 90% das prisões em flagrante estejam sendo convertidas em prisões preventivas após audiências de custódia. Segundo o CNJ, entre fevereiro de 2015 e junho de 2017, 54% das audiências realizadas no estado terminaram com a conversão da prisão. Assim, caso confirmado o índice veiculado, estaríamos diante de enorme retrocesso. Dias depois, o Tribunal de Justiça (TJ) informou ao jornal responsável pela matéria que, considerando 265 audiências realizadas durante três dias do mês de janeiro, o índice de conversão fora de 66%, e não 90%, como divulgado.<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote6sym" name="sdfootnote6anc">6</a> De acordo com o TJ, portanto, dois entre três detidos em flagrante e apresentados em juízo naqueles dias foram encaminhados para estabelecimentos prisionais. 
<a name="_gjdgxs"></a> Dados sobre a implantação e os resultados das audiências de custódia não podem ser compreendidos fora de contexto. Informações obtidas pelo Instituto Sou da Paz<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote7sym" name="sdfootnote7anc">7</a> sobre as prisões em flagrante realizadas no estado de São Paulo no 1º semestre de 2017 revelaram que metade de todos os presos haviam cometido furto ou tráfico de drogas, proporção que chegou a 57% no interior. Indivíduos que cometeram homicídios ou latrocínios (tentados e consumados) representaram 1,4% dos presos, ao passo que presos por roubo somaram 14,7% do total. Diante disso, não é difícil concluir que, entre aqueles que saem dos Fóruns com destino a Centros de Detenção Provisória (CDP), é bastante provável que haja inúmeros pequenos comerciantes de drogas, bem como furtadores de desodorantes e chocolates. A divulgação de estatísticas pormenorizadas sobre os resultados das audiências de custódia permitiria saber se as conversões têm priorizado ou não os crimes violentos – o que as prisões em flagrante não fazem, como demonstram os números acima.
Não se discute que a conversão da prisão em flagrante seja um desfecho possível da audiência de custódia. Todavia, é apenas um deles, ao lado do relaxamento da prisão e da concessão de liberdade provisória, por exemplo. Informações sobre os resultados das audiências não estão disponíveis ao público, mas o que se sabe até agora é que a conversão das prisões é a decisão que prevalece – representem elas 66% ou 90% das decisões, ou ainda 55%, média nacional apontada pelo CNJ.<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote8sym" name="sdfootnote8anc">8</a> Não é a conversão da prisão em preventiva o problema a priori, mas o fato de que tudo indica que, com frequência, ela tem se dado mesmo quando os acusados não deveriam ou precisariam ficar encarcerados. Igualmente grave é a inobservância de diretrizes cujo fim último é preservar garantias fundamentais durante as audiências.
Uma rápida consulta ao site da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo confirma o que se sabe há muito - o sistema penitenciário paulista abriga hoje uma quantidade de presos muito maior do que sua capacidade. A situação dos CDP é especialmente crítica, com pouco mais de 32 mil vagas e quase 52 mil presos.<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote9sym" name="sdfootnote9anc">9</a> Atualmente, apenas dois CDPs possuem população inferior ao número de presos que estariam aptos a receber. A superlotação, aliás, não é exclusividade do sistema paulista; de fato, a taxa de ocupação prisional do país como um todo é de 198%, segundo os últimos dados disponíveis.<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote10sym" name="sdfootnote10anc">10</a>
Apesar da fragilidade das prisões em flagrante, essa modalidade de prisão segue como uma aposta forte na área da segurança pública, se não a mais forte. Diante disso, é importante fazer uma reflexão sobre qual é o papel do Judiciário na sequência de decisões que leva mais ou menos indivíduos ao cárcere: contenção do poder punitivo ou manutenção do status quo? Não se trata de querer dizer como devem decidir os juízes ou quais critérios devem adotar – ainda que haja determinações do CNJ fixadas em resolução<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote11sym" name="sdfootnote11anc">11</a> ignoradas durante as audiências. Trata-se, contudo, de refletir sobre sua responsabilidade em relação ao atual estado de coisas e sobre como sua atuação pode e deve ser garantidora de direitos, ou, ao contrário, contribuir para aprofundar uma das mais graves crises de direitos humanos do país – o falido, e, ele sim, hediondo sistema prisional.
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<div id="sdfootnote1">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote1anc" name="sdfootnote1sym">1</a> “Audiências de Custódia – Panorama Nacional pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa”. Disponível em: <a href="http://www.iddd.org.br/wp-content/uploads/2017/12/Audiencias-de-Custodia_Panorama-Nacional_Relatorio.pdf">http://www.iddd.org.br/wp-content/uploads/2017/12/Audiencias-de-Custodia_Panorama-Nacional_Relatorio.pdf</a>. 
</div>
<div id="sdfootnote2">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote2anc" name="sdfootnote2sym">2</a> “Audiência de Custódia, Prisão Provisória e Medidas Cautelares: Obstáculos Institucionais e Ideológicos à Efetivação da Liberdade como Regra”. Sumário Executivo. Disponível em: <a style="color: #ff0000;" href="http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2018/01/FBSP_Direitos_Garantias_Fundamentais_Audiencia_Custodia_2017_Sumario.pdf">http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2018/01/FBSP_Direitos_Garantias_Fundamentais_Audiencia_Custodia_2017_Sumario.pdf</a>. 
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<div id="sdfootnote3">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote3anc" name="sdfootnote3sym">3</a> “Recém-nascido fica em cela com mãe que foi presa pouco antes de dar à luz em SP”, G1, 14 de janeiro de 2018. Disponível em: <a style="color: #ff0000;" href="https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/recem-nascido-fica-em-cela-com-mae-que-foi-presa-pouco-antes-de-dar-a-luz-em-sp.ghtml">https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/recem-nascido-fica-em-cela-com-mae-que-foi-presa-pouco-antes-de-dar-a-luz-em-sp.ghtml</a>. 
</div>
<div id="sdfootnote4">
<a class="sdfootnotesym" style="color: #ff0000;" href="#sdfootnote4anc" name="sdfootnote4sym">4</a> <a style="color: #ff0000;" href="https://www.conjur.com.br/dl/hc-mae-bebe-11-meses.pdf">https://www.conjur.com.br/dl/hc-mae-bebe-11-meses.pdf</a>.
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<div id="sdfootnote5">
<h1 class="western"><a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote5anc" name="sdfootnote5sym">5</a> “Com a nova juíza corregedora no Dipo, índice de prisões supera 90%”, Estadão, 10 de janeiro de 2018. Disponível em: <a style="color: #ff0000;" href="http://cultura.estadao.com.br/blogs/direto-da-fonte/com-a-nova-juiza-corregedora-no-dipo-indice-de-prisoes-supera-90/">http://cultura.estadao.com.br/blogs/direto-da-fonte/com-a-nova-juiza-corregedora-no-dipo-indice-de-prisoes-supera-90/</a>. </h1>
</div>
<div id="sdfootnote6">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote6anc" name="sdfootnote6sym">6</a> “Com a nova juíza corregedora no Dipo, índice de prisões supera 90%”, Estadão, 10 de janeiro de 2018. Disponível em: <a style="color: #ff0000;" href="http://cultura.estadao.com.br/blogs/direto-da-fonte/com-a-nova-juiza-corregedora-no-dipo-indice-de-prisoes-supera-90/">http://cultura.estadao.com.br/blogs/direto-da-fonte/com-a-nova-juiza-corregedora-no-dipo-indice-de-prisoes-supera-90/</a>
</div>
<div id="sdfootnote7">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote7anc" name="sdfootnote7sym">7</a> “Boletim Sou da Paz Analisa – 1º semestre de 2017”. Disponível em: <a style="color: #ff0000;" href="http://www.soudapaz.org/upload/pdf/sdp_analisa_1o_sem_2017.pdf">http://www.soudapaz.org/upload/pdf/sdp_analisa_1o_sem_2017.pdf</a>. 
</div>
<div id="sdfootnote8">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote8anc" name="sdfootnote8sym">8</a> <a style="color: #ff0000;" href="http://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-penal/audiencia-de-custodia/mapa-da-implantacao-da-audiencia-de-custodia-no-brasil">http://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-penal/audiencia-de-custodia/mapa-da-implantacao-da-audiencia-de-custodia-no-brasil</a>
</div>
<div id="sdfootnote9">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote9anc" name="sdfootnote9sym">9</a> Números referentes a 30 de janeiro de 2018. Disponível em: <a href="http://www.sap.sp.gov.br/">http://www.sap.sp.gov.br/</a>. 
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<div id="sdfootnote10">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote10anc" name="sdfootnote10sym">10</a> “Levantamento Nacional de Informações Penitenciários – Atualização – Junho de 2016”. Disponível em: <a href="http://www.justica.gov.br/news/ha-726-712-pessoas-presas-no-brasil/relatorio_2016_junho.pdf">http://www.justica.gov.br/news/ha-726-712-pessoas-presas-no-brasil/relatorio_2016_junho.pdf</a> 
</div>
<div id="sdfootnote11">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote11anc" name="sdfootnote11sym">11</a> Resolução nº 213 de 15/12/2015. Disponível em: <a style="color: #ff0000;" href="http://www.cnj.jus.br/busca-atos-adm?documento=3059">http://www.cnj.jus.br/busca-atos-adm?documento=3059</a>. 
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MG_7418a-768×512 – Audiência de custódia

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JOTA

É preciso refletir sobre qual é o papel do Judiciário na sequência de decisões que leva mais ou menos indivíduos ao cárcere

Audiências de custódia e direitos fundamentais

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