Flavia Panella Monteiro Martins

Imagine a seguinte cena, em uma consulta sobre questões de guarda e convívio de filhos, a mulher diz: “eu fui obrigada a participar de uma audiência de conciliação com mais quinze pessoas na sala (mesmo o processo tramitando em segredo de Justiça) e a sugestão do mediador foi que, para melhorar a convivência da minha filha com o pai, já que ela mesma não está querendo ir com ele, eu me submetesse a fazer um passeio no parque ‘como uma família’. Doutora, este homem colocou uma arma na minha cabeça na frente da nossa filha, eu tive medida protetiva contra ele, que é policial e tem fácil acesso a armas, e a ‘solução’ dada pela <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/justica">Justiça</a> foi a de que eu passeasse com a minha filha e ele no parque”.
O relato, apesar de parecer surreal, não é incomum para advogadas que atuam na defesa dos direitos humanos de mulheres e meninas. O Judiciário insiste que a questão da conjugalidade conflituosa deve ser separada da parentalidade, colocando o peso de quaisquer ajustes nas relações de ex-companheiros em lidar com os filhos na conta das mulheres. Mas, será mesmo que situações que ultrapassam qualquer limite de um mero conflito são superáveis ou podem ser diluídas numa separação entre a figura do agressor e do pai?
Por este motivo, muitas vezes os processos se tornam verdadeiros acessórios de tortura para mulheres e que acabam revivendo situações traumáticas, como a lembrança de uma arma apontada para a cabeça, além de ofensas verbais, configuradas na violência psicológica banalizada e normalizada em muitas audiências. Vemos o judiciário chancelar a ideia de que as dores da violência doméstica são meras “frescuras” ou “mi mi mi”, um termo muito usado para atacar mulheres que lutam por seus direitos, ante os direitos do pai de construir laços com o filho. Mas, um pai agressor é capaz de construir laços saudáveis com seu filho? Ainda que seja, é razoável obrigar a vítima de violência doméstica ao diálogo, que é requisito indispensável para que aconteça uma composição, com o seu agressor?
Pela leitura do artigo 334 do <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm">Código de Processo Civil</a>, “se a petição inicial preencher os requisitos essenciais e não for o caso de improcedência liminar do pedido, o juiz designará audiência de conciliação ou de mediação com antecedência mínima de 30 (trinta) dias, devendo ser citado o réu com pelo menos 20 (vinte) dias de antecedência”. O legislador, na medida em que não dá discricionariedade ao juiz para marcar ou não a audiência, não levou em consideração as assimetrias de gênero, muito presentes nos processos das Varas das Famílias.
Ainda que o art. 694 do Código de Processo Civil contemple intensa diretriz voltada ao consenso, ao expressar que “todos os esforços serão empreendidos para a solução consensual da controvérsia”, é importante destacar, porém, que o “empreendimento de esforços” deve se dar sem qualquer coerção para que as partes aceitem participar das sessões consensuais. É com essa interpretação que, demonstrando a violência doméstica sofrida, tentamos cancelar audiências de tentativa de conciliação, mesmo que realizadas de forma virtual, que acabam causando constrangimentos ou abalo psicológico da mulher vítima de violência doméstica, na medida em que ativam gatilhos de situações vividas, seja por estar na presença do agressor, ouvir sua voz ou narrativa que remetam aos fatos ocorridos.
Nas demandas familiares, a via consensual pode se apresentar como o meio adequado para que a família se reorganize, no entanto, é sempre necessário considerar a individualidade das pessoas, de suas vidas e histórias, uma vez que há situações críticas em que não será possível um diálogo saudável capaz de levar a composição. Em um conflito marcado por violência doméstica, em que a mulher precisou obter uma medida protetiva contra o ex-parceiro violento, por que determinar a realização de uma sessão de autocomposição, mesmo a vítima expressando não ter condições psicológicas de interagir com seu agressor?
Mesmo que uma das partes não manifeste sua oposição à realização da audiência, nestes casos não é lógico que se tente uma autocomposição, pois a parte que sofreu a violência está com seu julgamento comprometido por sentimentos como medo, dentre outras situações mais graves, como estresse pós-traumático. Cabe, portanto, ao magistrado dar cumprimento ao que dispõe o art. 3º, § 2º do CPC, promovendo a solução consensual “sempre que possível”, visualizando a particularidade de cada caso. Tal audiência somente não se realizará se ambas as partes disserem, expressamente, que não há interesse na composição ou quando não se admitir a autocomposição (é o que extraímos do parágrafo 4§, incisos I e II do art. 334 do Código de Processo Civil).
Apesar de o caput do artigo não deixar clara a discricionariedade do juiz em marcar ou não a audiência, há clara intenção da letra da lei, através de uma interpretação extensiva com outros artigos, para que o juiz(a) faça uma análise da natureza da ação e do conflito narrado nos fatos, o que deve incluir um exame de situações de violências domésticas, visto que nas ações de disputa de guarda e regulamentação de convívio está bastante claro que há um desequilíbrio na vontade das partes, e que havendo mulher em situação de vulnerabilidade por violência doméstica, não há que se falar em autocomposição.
A vítima de violência doméstica tem o direito de se manter longe de seu agressor e aqui cabe aos juízes a proatividade de antever que submeter a mulher vítima de violência a uma audiência de conciliação ou mediação é revitimizar essa mulher, quando poderia, sem ferir sua imparcialidade, declarar que não se admite a autocomposição nestes casos.
No entanto, a maioria dos juízes aguarda a manifestação do desinteresse das partes na autocomposição, atrelando o cancelamento da audiência à esta manifestação expressa das partes, e não a uma impossibilidade de autocomposição pela natureza da ação ou dos fatos. Exigem que ambas as partes optem pela não realização, não bastando que a mulher vítima de violência se negue, caso o seu agressor queira. Ao designar a audiência, os juízes acabam sempre determinando que o comparecimento das partes é obrigatório e que a ausência injustificada é considerada ato atentatório à dignidade da justiça, o que pode levar até à fixação de multa.
Uma atuação feminista prevê que os impactos por estes entraves processuais que dependem de interpretação da lei sejam, ao menos, minimizados desde o início do processo, já no momento da confecção da procuração, onde devem constar os poderes específicos para transigir, negociar, firmar compromissos ou acordos, para que nestes casos, em que o juízes não cancelem a audiência a pedido da mulher, a advogada possa atuar ativamente durante a audiência e representar essa mulher para a negociação de um acordo ou até mesmo a sua negativa, sem que a mulher vítima de violência precise estar presente.

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JOTA

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