Renato Nazzini

Vários comentaristas estão questionando se os marcos legais existentes estão aptos a lidar com os efeitos anticoncorrenciais percebidos nos atos de concentração na economia digital. Embora tais propostas difiram substancialmente, elas têm um mínimo denominador comum: tornar o bloqueio de um ato de concentração mais fácil do que parece ser pela lei atual. Não há escassez de maneiras pelas quais isso possa ser feito.
Por exemplo, o ônus da prova pode ser alocado às entidades que irão participar de um ato de concentração para mostrar que sua operação não é anticompetitiva ou mesmo que é pró-competitiva.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Ou reduzir o padrão de prova necessário para bloquear um ato de concentração. Ou dar a uma autoridade de concorrência amplo poder discricionário para ponderar a magnitude de um dano contra a probabilidade de ocorrer, de modo que possam ser bloqueados atos de concentração que tenham baixa probabilidade de causar danos muito grandes. Nesse contexto, este artigo visa avaliar se as reformas propostas são necessárias, proporcionais e eficazes.
Este artigo começa analisando as razões que sustentam as propostas de reforma e explicando as consequências não percebidas que podem surgir, na Seção 2. A Seção 3 avalia criticamente as propostas que obtiveram maior apoio. A Seção 4 conclui e apresenta algumas recomendações.
<h1>Aquisições no setor digital: há algum problema?</h1>
A digitalização está dominando o debate da política de concorrência devido à importância adquirida recentemente pelas empresas digitais. A digitalização da economia está mudando o "jogo da concorrência" devido ao surgimento de um novo tipo de empresa que supera as restrições operacionais tradicionais, abrange múltiplos setores, impulsiona novos valores, crescimento e inovação.
Nos últimos anos, as plataformas digitais conquistaram e transformaram mercados inteiros, os setores tornaram-se cada vez mais interconectados e o valor entregue aumentou significativamente.
Por outro lado, fortes efeitos da rede e economias de escala e escopo desses mercados têm favorecido o surgimento de poucas grandes empresas, enquanto outros atores digitais e não digitais não conseguiram desfrutar do mesmo nível de crescimento ou até encolheram. Há, sem dúvida, evidências de um mundo mais concentrado, no qual os vencedores capturam a maior parte dos resultados (winner-takes-most).
<blockquote class="jota-article__eye">Nesse cenário fluido, as respostas da política de concorrência foram fragmentadas, contraditórias e multifacetadas. As propostas vão desde pedir mais concorrência até argumentar que a concorrência excessiva pode gerar efeitos negativos, levando a uma espiral para o fundo do poço.</blockquote>
Alguns sugerem a ampliação do escopo do direito da concorrência; outros vão na direção oposta, defendendo enforcement tradicional baseado em ferramentas econômicas. Há pedidos de intervenções regulatórias, dados os limites do enforcement do direito concorrencial e, ao mesmo tempo, recomendações para que uma regulamentação extensiva seja evitada.
Em relação ao subtópico do controle de atos de concentração, há um debate semelhante relacionado a se as autoridades de concorrência levam suficientemente em consideração os danos resultantes das aquisições realizadas por grandes incumbentes digitais de concorrentes reais ou concorrentes potenciais ou mesmo de start-ups que poderiam, no futuro, desafiar a posição do adquirente.
A identificação dessas novas teorias de dano, em um cenário de crescentes preocupações com o aumento da concentração e o aumento das margens de lucro, alimentou a preocupação de que havia um "buraco negro" não avaliado pelas autoridades da concorrência ao aplicar as regras de controle de atos de concentração.
Desde então, os formuladores de políticas e autoridades de concorrência em todo o mundo começaram a questionar se as normas legais existentes são adequadas para lidar com aquisições de concorrentes nascentes.
Os defensores da mudança criticam a atual "ponderação dos custos de erro", alegando que ele é equivocadamente inclinado à sub-aplicação da lei (under enforcement), e sugerem reformas que vão desde a mudança de padrões de prova para todas as aquisições de empresas nascentes praticadas pelas gigantes tecnológicas, até a diminuição dos padrões de prova para aquisições por "plataformas dominantes", passando pela introdução de novos testes.
<h1>Avaliações das propostas atuais</h1>
Revertendo o ônus da prova
Uma das propostas que ganhou força é a introdução de uma presunção relativa (juris tantum) aplicável às empresas que têm um status de mercado “estratégico” ou poder de "gargalo" (bottleneck).
De acordo com a proposta, quando essas empresas se envolverem em aquisições, as partes carregariam o ônus de fornecer evidências de que ou o ato de concentração não levanta nenhuma questão competitiva significativa, ou que as eficiências esperadas justificam a aquisição. Quando não forem capazes de fazê-lo, a aquisição deve ser bloqueada.
Essa proposta é um ataque direto à presunção de que atos de concentração que não sejam comprovadamente anticompetitivos devem ser permitidos. Essa presunção não é – ou certamente não apenas – uma construção da escola econômica de Chicago ou pós-Chicago.
Seu valor é muito mais fundamental na forma como reflete uma das liberdades fundamentais, constitucionalmente protegidas, sobre as quais se baseiam as economias liberal-democráticas mais modernas: a liberdade de iniciativa. Exceto em circunstâncias definidas em que os danos à sociedade possam ser demonstrados, as pessoas são livres para conduzir seus próprios negócios sem serem perturbadas, estabelecer empresas, joint ventures e parcerias, comprar e vender o que é sua propriedade.
Já existem, é claro, limites significativos para essa liberdade, por excelentes razões, mas a existência de regras gerais que presumam uma atividade econômica geral e neutra como a transferência de controle ou de participação sobre empresas como efetivamente ilícita prejudicariam os próprios princípios fundadores, não tanto da nossa economia, mas da nossa maneira de entender a liberdade em relação ao, e dentro do, Estado.
Além disso, atualmente, não há orientação, jurisprudência ou prática estabelecida sobre como as partes podem provar que um ato de concentração é pró-competitivo ou, pelo menos, não é anticompetitivo.
Os argumentos de eficiência quase nunca conseguem sucesso no controle de atos de concentração e é difícil, e extremamente incerto, que as partes prevejam as novas e não testadas teorias de dano das autoridades de concorrência. E se as partes envolvidas numa fusão não sabem as acusações contra elas e em que evidência se baseia, como podem demonstrar que o ato de concentração não é prejudicial?
Essa proposta enganosamente simples, se implementada, forçará entidades a lutar contra um "buraco negro" onde toda teoria é, em princípio, possível. E é importante lembrar a nós mesmos que estamos falando aqui sobre os complexos atos de concentração que caem em uma área cinzenta, não dos atos de concentração que são claramente inofensivos ou claramente anticompetitivos.
Nessa zona cinzenta, exigir que as partes – e não as autoridades responsáveis pela investigação – apresentem teorias do dano e evidências para refutá-las gera o risco de análises de atos de concentração abertas, desestruturadas e incertas, que poderiam pender para qualquer direção a cada momento e sobre as quais as autoridades de concorrência poderiam ficar em cima do muro e argumentar que o "padrão legal exigido", qualquer que seja, não foi atendido segundo qualquer teoria do dano concebível. Nada poderia estar mais distante do entendimento atual de um sistema jurídico baseado no Estado de Direito e na proteção da liberdade individual.
Modificando o padrão de prova
Outra proposta defende a redução do atual standard legal (que geralmente exige a demonstração de que a probabilidade de que haja danos à concorrência seja maior do que a probabilidade de que não haja danos) que as autoridades de concorrência devem enfrentar para desafiar com sucesso uma aquisição de concorrentes nascentes.
As formulações incluem definir o padrão de prova como "mostrar que a conduta contestada aumenta o risco de dano concorrencial"<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> ou reduzir o patamar para desafiar uma fusão de uma redução “substancial” da competição para uma redução "material" da competição.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
Essas novas formulações do "padrão de prova" são inerentemente incertas devido à falta de precisão da linguagem adotada. "Aumentar o risco" é um padrão por meio do qual uma autoridade de concorrência poderia, na prática, impedir qualquer ato de concentração, desde que demonstre que ela pode ter um possível efeito anticompetitivo, por menor que seja.
A incerteza deste teste está no amplo espectro de casos que abrange. Apenas atos de concentração claramente pró-competitivos ou que não tenham quaisquer efeitos anticoncorrenciais concebíveis estariam seguros.
Todos os demais estariam incertos. Mas quais serão bloqueados? Certamente não todos os atos de concentração que possuem um possível efeito anticompetitivo, ainda que mínimo ou improvável. Isso seria absurdo.
Portanto, a autoridade de concorrência teria ampla discricionariedade para escolher quais atos de concentração impedir sem qualquer certeza ex ante para as empresas envolvidas.
Um teste de "diminuição material da concorrência" não é realmente sobre reduzir o padrão de prova, mas sim sobre alterar efetivamente o teste substantivo, exigindo um patamar mais baixo de efeito anticompetitivo.
Esse efeito anticompetitivo "material" ainda teria de ser comprovado com base em um padrão como, por exemplo, ponderação de probabilidades (balance of probabilities).
Mas o problema continua o mesmo: como o termo "material" abarcaria muito mais atos de concentração do que o padrão atual, todas essas operações seriam proibidas? Ou a autoridade de concorrência, interpretando esse teste de "materialidade" inerentemente vago, poderia escolher quais atos de concentração impedir, com exceção daqueles claramente pró-competitivos e inofensivos?
Aumentando a discricionaridade das autoridades concorrenciais
Outro teste substantivo disfarçado como modificação do padrão de prova é o teste de "ponderação de danos" (balance of harms) apresentado no <a href="https://assets.publishing.service.gov.uk/government/uploads/system/uploads/attachment_data/file/785547/unlocking_digital_competition_furman_review_web.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Relatório Furman no Reino Unido</a>.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> O Relatório Furman, em vez de sugerir a introdução de uma presunção relativa ou a reversão do ônus da prova, recomenda a substituição do teste de "ponderação de probabilidades" pelo que chamou de "abordagem de ponderação de danos".
Enquanto sob o "teste de ponderação de probabilidades", as autoridades de concorrência devem apenas olhar para a probabilidade de danos ocorrerem (probabilidade que é diretamente proporcional à probabilidade de a empresa nascente ter sucesso – caso contrário, nenhuma pressão competitiva pode ser considerada perdida), sob a "abordagem de ponderação de danos", as autoridades de concorrência também devem olhar para a escala provável de tal dano.
O novo teste aumentaria, portanto, o enforcement antitruste, levando as autoridades de concorrência a intervir cada vez que a escala do possível dano fosse alta, ainda que a probabilidade de tal dano fosse baixa ou, pelo menos, menor do que a probabilidade exigida pelo teste atual de "ponderação de probabilidades".
Com razão, a <a href="https://assets.publishing.service.gov.uk/government/uploads/system/uploads/attachment_data/file/890013/CMA_letter_to_BEIS_-_DCEP_report_and_recommendations__Redacted_.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">CMA (Competition and Markets Authority) rejeitou</a> a ideia de adotar um "teste de ponderação de danos", tendo em vista que "há desafios práticos na aplicação desse tipo de teste de forma transparente e robusta e estão preocupados com consequências não intencionais", e alertou que o novo teste traria "uma mudança fundamental na política de atos de concentração" cuja extensão provável “[...] não deveria ser subestimada."
De acordo com a CMA, "enfrentar os desafios [dos atos de concentração digitais] não requer mudanças fundamentais ao regime legislativo existente nesta fase. O regime britânico se mostrou [...]"adequado ao propósito" na captura e avaliação eficaz de uma série de fatores de concorrência, incluindo desenvolvimento e inovação de produtos, e uma série de teorias do dano – incluindo preocupações com concorrência potencial e dinâmica".
Como resultado, a CMA concluiu afirmando que "o quadro legislativo existente no Reino Unido fornece o escopo para avaliar plenamente as preocupações levantadas pelos atos de concentração nos mercados digitais e tomar medidas de enforcement quando apropriado".<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
É revelador que a própria autoridade de concorrência do Reino Unido tenha discordado vigorosamente deste teste. Trata-se de um teste claramente inviável na prática e perigosamente fora de sintonia com um processo decisório administrativo rigoroso e verificável.
<h1>Conclusões e recomendações</h1>
Embora as propostas de mudança acima discutidas sejam fundamentalmente contrárias à economia básica, aos princípios constitucionais e à segurança jurídica, é provavelmente correto afirmar que há dificuldades na avaliação dos atos de concentração nos mercados digitais, especialmente quando se trata da análise de concorrência potencial.
Essas dificuldades poderiam, no entanto, ser endereçadas por um conjunto de reformas mais viáveis e que ajudariam substancialmente a impulsionar os esforços de fiscalização das autoridades de concorrência. A propósito, por exemplo, deve-se considerar o seguinte:
<ul>
<li>Maior expertise interna para as autoridades de concorrência. No Reino Unido, por exemplo, a CMA está indo na direção certa com a criação de uma nova Unidade de Dados, equipada com engenheiros de tecnologia, cientistas de dados, cientistas comportamentais e consultores estratégicos de tecnologia. Esses novos especialistas ajudarão a moldar as novas abordagens de enforcement necessárias para a CMA lidar com questões de concorrência digital.</li>
<li>Expansão de poderes de coleta de evidências. Uma vez que atingir os standards legais pode ser difícil, pode valer a pena tentar reforçar as ferramentas de coleta de evidências das autoridades de concorrência. Embora os pedidos de informações ('RFIs') ou questionários geralmente sejam uma modalidade eficaz para coletar provas, pode valer a pena considerar equipar autoridades de concorrência com poderes de busca e apreensão também em revisão de atos de concentração, dado que adquirentes cuidadosos raramente deixam provas inequívocas declaradas em documentos escritos. Tais poderes, além disso, também poderiam ser usados para coletar informações de potenciais adquirentes alternativos, quando apropriado. Ademais, certas autoridades de concorrência não têm o poder de emitir pedidos obrigatórios de informação às partes ou a terceiros. Poderia ser extremamente útil se tal poder fosse dado às autoridades de concorrência para que pudessem coletar informações confiáveis de todas as fontes úteis. Na mesma linha, as autoridades de concorrência poderiam ter o poder de realizar entrevistas mandatórias dos autores de documentos internos ou mesmo de qualquer pessoa que possa ter informações relevantes sobre o ato de concentração.</li>
</ul>
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<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Joint Response to the House Judiciary Committee on the State of Antitrust Law and Implications for Protecting Competition in Digital Markets (Jul 2020).
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> H. Hovenkamp, C. Shapiro (2018), Horizontal Mergers, Market Structure, and Burdens of Proof, Faculty Scholarship; Joint Response to the House Judiciary Committee on the State of Antitrust Law and Implications for Protecting Competition in Digital Markets (Jul 2020).
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> UK Report Digital Competition Expert Panel, “Unlocking digital competition”, (2019) (UK or Furman Report).
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> CMA, The CMA’s response to the Digital Competition Expert Panel Final Report, 2019.

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Porque não é uma boa ideia reverter o ônus ou reduzir o padrão de prova

Atos de concentração na economia digital

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