José Augusto Fontoura Costa

O Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado (Unidroit), organização internacional do sistema das Nações Unidas, vem trabalhando na formulação e divulgação de princípios para o tratamento jurídico privado dos ativos digitais. Trata-se de um importante esforço para o estabelecimento de um regime jurídico desses ativos que leve em conta, desde seu nascimento, a complexidade do cenário internacional. Ao mesmo tempo, representa um valioso suporte para as atividades legislativas, administrativas e jurisdicionais voltadas a reconhecer e utilizar tais ativos, parte da realidade econômica atual.
Este artigo busca esclarecer o sentido técnico e econômico dos ativos digitais e a noção jurídica proposta pelos Princípios da Unidroit, de modo a oferecer pontos de partida para o debate brasileiro sobre o tema.
Houve, recentemente, um grande impulso ao uso e redefinição da expressão “ativos digitais” a partir da introdução das tecnologias de blockchain, ou seja, um livro de ata público digital assegurado por um mecanismo de consenso disperso. A ideia básica por trás dessa tecnologia é a de impedir a cópia e a alteração de dados em um ambiente digital, considerando que, em regra, dados eletronicamente gravados podem ser copiados e alterados. O nascimento das criptomoedas e dos <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/nft">tokens não-fungíveis (NFTs)</a>, portanto, não apenas tornaram mais popular o uso da noção de ativos digitais, mas denotam o emprego de tecnologias capazes de garantir o caráter único e inalterável de informações eletrônicas.
Não se trata de uma noção referente a um ativo imaterial cuja escassez, resultante da exclusividade, nasce de uma proteção jurídica projetada para evitar a abundância; sua raiz é técnica. Por isso, faz pouco sentido tentar compreender as potenciais características de um regime jurídico de proteção de ativos digitais a partir da arquitetura dos direitos intelectuais. Se o valor de uma invenção depende da exclusividade atribuída pelas patentes, ou se a remuneração de um escritor depende dos direitos autorais sobre a obra, o valor dos ativos digitais decorre da escassez tecnologicamente produzida.
Existe, nesse sentido, uma equivalência da identidade física de um objeto material e a identidade eletrônica de um conjunto informacional que não pode ser replicado ou substituído. Deste modo, a escassez resultante das limitações do mundo físico, economicamente mensurada a partir da necessidade do trabalho humano para a obtenção dos bens necessários, passa a ser replicada no campo informacional por meio da atribuição de identidade única a cada objeto.
Assim, embora não se faça necessário um paralelo jurídico entre a proteção dos direitos intelectuais e a regulação do uso de ativos digitais, há uma importante analogia entre ambas as temáticas: trata-se de situações nas quais há investimentos para gerar ou incrementar a escassez por meio da exclusividade. Considerando a atividade econômica como voltada a proporcionar o aproveitamento ótimo dos recursos escassos, a ideia de transformar ativos abundantes – como as informações eletronicamente registradas – em bens escassos, investindo recursos fisicamente limitados para tanto, sugere um paradoxo.
A linha argumentativa mais popular, pelo menos em matéria de direitos intelectuais, é a de que a garantia de exclusividade incentiva o investimento em pesquisa e desenvolvimento, pois garante a apropriação exclusiva dos benefícios pelo investidor como forma de remuneração, reduzindo o risco de apropriação por eventuais oportunistas. Não se discutirão, nesse artigo, os limites dessa lógica e potenciais falácias conducentes a um superdimensionamento da proteção de tais direitos; cabe, porém, verificar se o mesmo mecanismo de justificação das patentes é aplicável aos ativos digitais.
Parta-se de uma diferença fundamental. Por um lado, a proteção jurídica de direitos intelectuais implica o investimento estatal em estruturas normativas, jurisdicionais e administrativas e, portanto, deve ser justificada em termos de interesses públicos. Pelo outro, a maior parte dos NFTs, inclusive as criptomoedas, resultam de investimentos privados e, como tais, não precisam ser justificados em termos de retorno para a comunidade ou entidades públicas; fazem parte, conforme a lógica do mercado, dos riscos privados na realização do investimento. A razoabilidade do emprego de trabalho, energia e bens de capital fisicamente escassos na produção de escassez artificial pode ser vista como um problema dos atores privados que optam por esse emprego dos ativos materiais. Assim, se, a longo prazo, a paixão pelas criptomoedas e objetos artísticos consubstanciados em ativos digitais conduzir a mais um cenário de manias, pânico e quebras, o problema não é, hipoteticamente, do Estado. Isso se a conta das tulipas não for paga pelo contribuinte.
Deste modo, ao contrário do que ocorre com os direitos intelectuais, a exclusividade dos ativos digitais não decorre da proteção jurídica, mas do próprio emprego de instrumentos tecnológicos. Por isso, sobretudo do ponto de vista de considerações em matéria de Direito Privado, trata-se do reconhecimento de objetos funcionalmente análogos a bens materiais, de modo a, eventualmente, reconhecer sua licitude e sua idoneidade para se incorporarem aos fluxos jurídicos de riqueza, ou seja, terem seu valor econômico juridicamente reconhecido.
É com essa finalidade que surgiu e por isso se destacam os Princípios da Unidroit sobre os Ativos Digitais e o Direito Privado. O documento, em seu esboço mais recente<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, estabelece, além de uma definição de ativos digitais e seu controle, princípios referentes ao direito aplicável, aquisição inocente, custódia, securitização, aspectos processuais e recuperação judicial. O documento e seu contexto revelam com grande clareza, a preocupação em não tocar nas questões referentes a políticas e interesses públicos relacionados a tais ativos, mas a um conjunto de princípios tendentes a aproximar o seu regime jurídico daquele existente para os bens materiais móveis, embora sem uma equiparação pura e simples a essa categoria.
Considerando a necessidade de estabelecer noções jurídicas desatreladas a tecnologias específicas, nomeadamente as de blockchain e NFTs, o conceito proposto para os ativos digitais é o de “registros eletrônicos passíveis de controle” (Princípio 2.3), considerando registrada eletronicamente a informação “(i) armazenada em meio digital e (ii) passível de ser recuperada”. Os ativos eletrônicos, portanto, são a informação armazenada eletronicamente e recuperável e, deste modo, não se confundem com objetos eventualmente conformados ou representados, como, por exemplo, um programa de computador ou uma obra pictórica, os quais, i. a., podem ser ativos vinculados (Princípio 4), cujo regime jurídico próprio não é coberto pelos princípios.
A noção fundamental para a compreensão dos ativos digitais, porém, é seu controle. Esse se verifica quando o seu detentor (i) consegue excluir outros sujeitos dos benefícios desse ativo, (ii) pode se beneficiar substancialmente desse ativo e (iii) é o único que consegue transferir as capacidades descritas em (i) e (ii) (Princípio 6.1). Essas capacidades não são direitos subjetivos, mas uma relação concreta decorrente do uso de mecanismos tecnológicos que possibilitam o controle efetivo. A relação denominada controle, portanto, assemelha-se ao elemento objetivo da posse direta dos bens materiais.
O surgimento da escassez, responsável pelo valor econômico do ativo, se dá em decorrência desse poder efetivo sobre o ativo. Deriva de relações de fato, mais do que da aplicação do Direito. Seu reconhecimento jurídico e o estabelecimento de regras capazes de conformar um regime privado podem ser bastante úteis, sobretudo em matérias nas quais a universalidade de um patrimônio deve ser considerada, como nas recuperações judiciais, sucessões e divórcios.
Nesse sentido, os Princípios da Unidroit sobre Ativos Digitais e Direito Privado podem servir como um importante subsídio e um ponto de partida conceitual para a discussão dos ativos digitais, possibilitando uma abordagem sistemática e estrutura, com vantagens sobre tratamentos ad hoc e meramente pragmáticos.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> <a href="https://www.unidroit.org/wp-content/uploads/2023/01/Draft-Principles-and-Commentary-Public-Consultation.pdf">https://www.unidroit.org/wp-content/uploads/2023/01/Draft-Principles-and-Commentary-Public-Consultation.pdf</a>, consultado em 13 de fevereiro de 2023.

criptomoedas

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Como a proposta do Unidroit oferece pontos de partida para o debate brasileiro sobre o tema

Ativos digitais: sentido técnico, econômico e jurídico

Como a proposta do Unidroit oferece pontos de partida para o debate brasileiro sobre ativos digitais