Carina Quirino

Paulo Samico

Engana-se quem pensa que a telemedicina começou a ser discutida no início da pandemia da COVID-19: o início da construção de seu marco regulatório tem quase vinte anos. A edição da Resolução CFM 1.643/2002 inaugurou o debate sobre a infraestrutura de tecnologia no país, onde o Conselho Federal de Medicina (CFM) dispôs sobre obrigações rigorosas relativas à guarda, manuseio e transmissão de dados, com foco na máxima privacidade e confidencialidade das informações para proteger o sigilo médico e o paciente.
O art. 4º desta Resolução funda um primeiro ponto de atenção: todos os envolvidos na cadeia de atendimento ao paciente respondem na proporção em que contribuírem por eventual dano causado. Diferente do atendimento presencial, para viabilizar o atendimento remoto, o médico necessita do apoio de empresas especializadas para suportá-lo em ferramentas específicas, como provedor de conexão, receituário para prescrição médica e até assinatura digital. Assim, a escolha do melhor parceiro comercial é fundamental para evitar dor de cabeça futura.
<a href="https://www.jota.info/produtos/saude?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Saude_materias"><img class="aligncenter wp-image-292716 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-saude.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
Por meio da Resolução 2.227/2019, o CFM trouxe novos vinte e três artigos para tentar regular a telemedicina. Essa resolução durou pouco tempo, pois a comunidade médica enviou uma série de sugestões e propostas para aperfeiçoar a norma à prática médica. Com a publicação da Resolução 2.228/2019, cai a Resolução 2.227 e volta a vigorar Resolução 1.643, datada de quase 20 anos atrás.
Explicada a confusão normativa e os entraves do CFM para consolidar uma regulação que compusesse o melhor cenário para todos os atores envolvidos, o debate regulatório alcança um novo horizonte em 2020, início da pandemia. O governo federal, por meio da Lei 13.979, institui medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do coronavírus. Em seguida, o Ministério da Saúde edita a Portaria 467/MS, instrumento que institui e traz regras de operacionalização para a telemedicina como medida eficaz no combate à pandemia. O propósito do ato normativo é reduzir a circulação de pessoas e, consequentemente, o contágio.<a href="applewebdata://F6E5BEFE-A781-498D-9115-E8F7613B0D54#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
No que se refere aos regramentos atuais, a Portaria é inovadora: autoriza o atendimento pré-clínico, de suporte assistencial, consulta, monitoramento e diagnóstico. Tanto pelo SUS quanto na saúde suplementar e privada. Preocupa-se com a manutenção do sigilo médico-paciente e, sobretudo, em reduzir a propagação do COVID-19. Os preceitos éticos da beneficência, não-maleficência, sigilo médico e autonomia são lembrados como pilares estruturantes. Afinal, apesar da forma de consulta ser por meio digital, a responsabilidade pelo ato médico não muda. E, nesse ponto, ser repetitivo é fundamental: a responsabilidade pelo ato médico não muda. Independentemente de a consulta ser presencial ou via telemedicina, o médico é responsabilizado pelos seus atos para todos os fins de direito. E é necessário reforçar que todos os envolvidos responderão solidariamente na proporção por eventual dano causado ao paciente, conforme art. 4º da Resolução CFM 1.643/2002. Portanto, o médico precisa ter o melhor no que se refere às ferramentas digitais para suportar suas atividades e evitar possíveis discussões judiciais.
O breve histórico regulatório, ainda que apresente um caminho lento e com tropeços normativos dos reguladores, teve um impacto significativo no mercado. Em uma rápida pesquisa, foi possível identificar mais de vinte novas empresas especializadas no oferecimento de um pacote de soluções voltadas à telemedicina.  Elas oferecem sistemas customizados com módulos de receituário e assinatura digital, pagamento, integração com planos de saúde, conexão segura e criptografada, prontuário personalizado, gravação de áudios e vídeos, painel gerencial com dashboard de métricas e relatórios, agenda, comunicação com pacientes através de marketing inteligente e até termos de consentimento personalizados em atendimento à LGPD, Lei Geral de Proteção de Dados.
Este novo modelo de negócios busca facilitar a experiência do médico e do paciente para a anamnese, pré-avaliação essencial para formar um diagnóstico. Para superar a distância, algumas empresas já disponibilizam gadgets de monitoramento com a promessa de unir humanização ao melhor da tecnologia. Similares a um smartwatch, estas novas ferramentas são disponibilizadas aos pacientes ou colocadas em locais estratégicos e próximos de uma maior concentração de usuários em potencial.
As cabines ou cápsulas tecnológicas de pronto atendimento também prometem ser uma tendência no Brasil. Oferecidas por empresas de tecnologia e já uma realidade na China e na Índia<a href="applewebdata://F6E5BEFE-A781-498D-9115-E8F7613B0D54#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, estas cabines permitem uma leitura instantânea de dados antropométricos que facilitam o raciocínio clínico do médico durante a telemedicina. Estes gadgets geram informações complementares para avaliação do paciente com a precisão que o médico requer, aproximando a telemedicina do padrão-ouro de um atendimento médico presencial, ainda mais quando se trata do primeiro contato com o paciente.
Com a proposta de usar a inteligência de dados no combate ao coronavírus, o aplicativo Dados do Bem<a href="applewebdata://F6E5BEFE-A781-498D-9115-E8F7613B0D54#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> uniu a medicina à tecnologia e exerce um importante papel na análise da evolução imunológica da população. Criado por pesquisadores, infectologistas e uma equipe de inteligência, a ferramenta possui geolocalização e acompanhamento em tempo real da evolução da epidemia, permitindo às autoridades desenvolver melhores estratégias para o enfrentamento da doença.
Ainda sobre a anamnese, o profissional sabe que tal prática está muito além do que formular um mero questionário para o paciente responder. O exame físico de contato é indispensável para qualquer diagnóstico, em especial para algumas especialidades (ausculta pulmonar e exame de toque são bons exemplos). Entretanto, com o avanço da tecnologia e com a ajuda dos gadgets, aplicativos e packs tecnológicos mencionados anteriormente, é possível dar ao médico, no primeiro atendimento, a tranquilidade para avaliar a necessidade de um exame presencial.
A evolução das facilidades tecnológicas caminha para um peculiar diagnóstico: reduz-se, cada dia mais, o custo de oportunidade de procurar um médico diante de uma circunstância adversa. A regulação da telemedicina cria um ambiente de incentivo que afasta o paciente das iniciativas potencialmente perigosas da automedicação. Esse potencial resultado regulatório, que nada mais é do que uma externalidade positiva, poderá ser melhor aproveitado se houver um fortalecimento do canal de diálogos entre todos os atores desse cenário.
Em outras palavras, é fundamental que a sociedade, entidades médicas e instituições se ouçam, de modo a compartilhar as fraquezas do sistema regulatório e potencializá-lo como ganho para todos. O ambiente pode ser incentivado para que se estabeleça a corregulação.
Até que se alcance alguma estabilidade regulatória da prática da telemedicina, muitos percalços interpretativos ainda se passarão. Um dos debates mais confusos sobre a possibilidade de prática da telemedicina decorreu da Resolução 305/2020 do CREMERJ, ao incluir a teleconsulta como mais uma modalidade de telemedicina, definindo-a como “a troca de informações (clínicas, laboratoriais e de imagens) com possibilidade de prescrição e atestado médico”. A norma também proíbe a teleconsulta no primeiro atendimento do paciente com o profissional médico. Já o CREMERS, Conselho do RS, definiu na Resolução 10/2020 que o médico tem autonomia e liberdade contratual para optar por utilizar ou não os serviços via telemedicina, não configurando abandono do paciente se ele não se sentir confortável de seguir dessa forma.
Os Conselhos do Tocantins (2020/1) e do Pará (02/2020) se unem ao posicionamento do Rio Grande do Sul. Ambos lançaram recomendações sobre telemedicina orientando ao médico através de scripts. Estruturada em "recomendações gerais", "pacientes já acompanhados pelo médico” e “em primeira consulta”, há disposição clara sobre o médico evitar o atendimento presencial, reduzindo este ato em menor número possível para evitar propagar o Coronavírus.
<blockquote class="jota-article__eye">Em que pese o estímulo, as recomendações dos conselhos regionais não deixam de proteger o médico na nova atividade. Orientam a gravação da consulta e a guarda do arquivo da forma mais segura possível, lembrando que ao fim do atendimento, o médico deve solicitar ao paciente, por mensagem, que informe se compreendeu todas as informações passadas.</blockquote>
Há ainda a recomendação de solicitar o consentimento do paciente para atendê-lo via plataforma e, se for necessária a realização de exames complementares, os limites do atendimento à distância devem ser reforçados. Todas as normas consultadas alertam que em caso de urgência ou emergência, paciente e médico devem buscar o serviço de saúde presencial para avaliação do caso através de exames complementares.
Ademais, há uma particularidade importante: os conselhos regionais possuem poder normativo limitado e não podem regular nenhum assunto sem um posicionamento prévio do conselho federal. A explicação jurídica e clássica pode ser iniciada na repartição constitucional de competências, pois só podem ser criadas restrições por lei federal ou, no máximo, norma de autarquia federal. O art. 22, XVI da Constituição preleciona essa competência privativa da União de legislar sobre a organização do sistema nacional de emprego e condições para o exercício de profissões, esvaziando o poder normativo dos conselhos regionais sobre estes pontos, razão pela qual o primeiro atendimento do paciente com o médico através da telemedicina não pode ser proibido.
A escolha das recomendações de dois estados da região norte para este artigo, Tocantins e Pará, não foi um acaso. A telemedicina e todas as ferramentas tecnológicas são essenciais em um país com proporções continentais e locais afastados de grandes centros urbanos que necessitam do melhor que a medicina pode dispor a um baixo custo. A regulação no pós-pandemia precisa ser responsável e condizente com a realidade, eliminando por completo o autoatendimento através de pesquisas na internet e em sites de procedência duvidosa. Quem deve orientar e prestar atendimento é o médico, único profissional apto, capaz e legalmente autorizado para diagnosticar doenças e tratar pessoas. E eles precisam contar com um ambiente harmônico de corregulação para que possam exercer sua profissão com segurança.
Sem dúvidas, após a pandemia, a telemedicina deve ganhar força. Com este entendimento, os conselhos de classe e a própria ANS certamente devem propor uma regulação geral para a atividade. A interação com médicos via tecnologia não substituirá a avaliação clássica e sim, será adequada à nova realidade. A ANS já entende por não incorporar a prática da telemedicina expressamente no rol de cobertura obrigatória dos planos por não se tratar de um novo procedimento, mas uma modalidade diferenciada de prestação de serviço de saúde<a href="applewebdata://F6E5BEFE-A781-498D-9115-E8F7613B0D54#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. De certa forma, este posicionamento pode levar ao entendimento de que a regulação será específica por especialidade, já que estará inerente a ela.
Cabe um importante papel à saúde suplementar no fortalecimento da telemedicina: garantir acesso aos beneficiários, oportunizar o melhor diagnóstico e efetivar o melhor tratamento. Essa é a única postura capaz de robustecer a telemedicina, uma vez que não se viu grandes avanços em modalidades específicas<a href="applewebdata://F6E5BEFE-A781-498D-9115-E8F7613B0D54#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
Diversos são os debates regulatórios que continuarão se desenvolvendo e milhares serão os novos ajustes necessários para institucionalizar, de forma permanente, a telemedicina no cenário brasileiro. Os últimos parágrafos escritos dão a tônica da profundidade dos debates – que sequer foram elencados exaustivamente aqui – e que estão muito longe ainda de terminarem. É preciso fôlego e espírito institucional para que a telemedicina possa avançar, com a dosagem correta de segurança jurídica para todos.
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<a href="applewebdata://F6E5BEFE-A781-498D-9115-E8F7613B0D54#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Sua criação foi realizada com base no Ofício 1.756/2020 expedido pelo CFM, documento onde se reconhece a eticidade e a possibilidade da utilização da telemedicina em caráter excepcional, enquanto durar a batalha de combate ao contágio da COVID-19. Pelo ofício, a telemedicina estaria dividida em três pilares: a teleorientação (orientação e encaminhamento de pacientes em isolamento); telemonitoramento (monitoramento do paciente à distância) e, finalmente, a teleinterconsulta (ato exclusivo entre médicos, com o objetivo de trocar informações e opiniões para auxílio diagnóstico).
<a href="applewebdata://F6E5BEFE-A781-498D-9115-E8F7613B0D54#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> &lt;https://academiamedica.com.br/hil/inovacao-em-saude-e-incrivel-ate-deixar-de-ser-futuro-alternativo-da-telemedicina&gt;. Acessado em 10/06/2021.
<a href="applewebdata://F6E5BEFE-A781-498D-9115-E8F7613B0D54#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Maiores informações disponíveis em &lt;https://dadosdobem.com.br/&gt;
<a href="applewebdata://F6E5BEFE-A781-498D-9115-E8F7613B0D54#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Pelas Notas Técnicas nº 6/2020/GGRAS/DIRAD-DIPRO/DIPRO e nº 10/2020/DIRAD-DIFIS/DIFIS, a ANS entende que não se faz necessário nem adequado atualizar o Rol de Procedimentos e Eventos de Saúde no que tange à inclusão de procedimentos e/ou alteração de diretrizes de utilização, nem tampouco às regras de cobertura já dispostas, devendo-se considerar que os atendimentos por meio de telessaúde já são de cobertura obrigatória, na medida em que cumprem as orientações normativas dos Conselhos Profissionais de Saúde e/ou do Ministério da Saúde. O mesmo entendimento foi reforçado pelo Comunicado Nº 01/2020/2020/PRESI, onde a ANS esclarece que as consultas médicas via telemedicina não se caracterizam como novos procedimentos, mas apenas como uma modalidade de atendimento não presencial, na intenção de cumprimento das coberturas obrigatórias, devendo sua execução sempre obedecer ao disposto nos normativos editados pelo CFM, pelo Ministério da Saúde e pelo Poder Legislativo, regulamentação que abrange, inclusive, os serviços prestados no âmbito da Saúde Suplementar. Sendo assim, em resumo, os recursos de telemedicina poderão ser utilizados na execução de procedimentos e eventos em saúde já previstos no rol vigente, desde que respeitados os limites impostos pela lei e legislação infralegal. Estes atos normativos podem ser encontrados em &lt;https://www.sbd.org.br/mm/cms/2020/04/01/nt-telessaude.pdf&gt;, &lt;https://www.ans.gov.br/images/stories/noticias/pdf/Nota_10.pdf&gt; e &lt;http://www.ans.gov.br/images/Comunicado_Telessa%C3%BAde.pdf&gt;, com acesso realizado em 09/06/2021.
<a href="applewebdata://F6E5BEFE-A781-498D-9115-E8F7613B0D54#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Mesmo com o fim da pandemia, a telemedicina persistirá. Imaginando que as operadoras de saúde suplementar já estivessem com uma legislação que regulassem suas atividades e fossem igualmente esclarecedoras aos seus médicos, o setor apresenta alguns números interessantes. A United Health Group estima que 20.548 toneladas de CO2 não foram emitidas na atmosfera, já que as mais de 590 mil consultas por chamada de vídeo evitaram deslocamentos dos pacientes até os médicos (dados de novembro de 2020. Para compensar a emissão do gás carbônico, a empresa alega que seria necessário o plantio de mais de 130 mil árvores. Outro dado interessante da mesma operadora é que 80% dos atendimentos foram resolvidos com a consulta virtual, o que contribui para a diminuição de filas nos prontos-socorros, garantindo o atendimento de segurança na casa do paciente e evitando exposição desnecessária ao contágio em tempos de pandemia (dados de março de 2021).

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JOTA

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