Alex Assis de Mendonça

Maria de Fátima Dias de Souza

Em 05 de dezembro de 2016, o Poder Executivo apresentou na Câmara dos Deputados a PEC nº 287/2006, que trata da mais nova versão da Reforma da Previdência Social, a terceira grande modificação constitucional no desenho da Previdência Social pública desde o advento da atual Constituição.
Em função do incremento da austeridade nos requisitos necessários para a concessão dos benefícios previdenciários, o que pode levar, a depender do caso concreto e dada a heterogeneidade da realidade brasileira, a inviabilizar a própria fruição do direito futuro à aposentadoria e à pensão por morte, a sociedade, nas suas mais diversas vertentes, finalmente começou, ainda que tardiamente, a debater sobre qual modelo de previdência social é possível reservar ao trabalhador brasileiro. Esse talvez seja o ponto positivo da PEC – estimular a reflexão sobre o modelo de proteção previdenciária viável para a realidade do país.
No entanto, antes de reduzir direitos, é imperioso tratar de temas sem os quais não há como saber qual deve ser a “calibragem” da Reforma que se pretende implementar, uma vez que para se equilibrar receitas e despesas, que é o que se pretende em qualquer regime previdenciário, não basta reduzir despesas (como busca a PEC). É necessário, primeiro, saber quais receitas e despesas devem ser consideradas nessa conta, ou seja, qual metodologia deve ser aplicada e, segundo, como está a dinâmica de captação e preservação das receitas previdenciárias, por meio dos processos administrativo fiscal (PAF) e judicial (execução fiscal), bem como pela revisão das desonerações tributárias que impactam o orçamento da Seguridade Social.
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Atualmente, no que se refere a essa metodologia, existem, ao menos, duas vertentes que duelam entre si. A primeira, sustentada pelo Governo e não constante na exposição de motivos da PEC, afirma ser deficitária a Previdência Social. A segunda, defendida há mais de dez anos pela Associação Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil (ANFIP), que afirma ser superavitária a Seguridade Social. A primeira supõe ser possível destacar a Previdência Social da Seguridade Social. A segunda parte da premissa de que a Previdência Social, como parte integrante do sistema da Seguridade Social, é incindível desta. Mas, qual das duas metodologias é a correta? Qual parâmetro pode ser usado para se aferir tal correção?
Para responder a essas questões é preciso conhecer o modelo de proteção previdenciária adotado no Brasil. Antes de 1988, os trabalhadores rurais eram aposentados recebendo apenas metade do valor do salário-mínimo. Com o advento da atual Constituição, os trabalhadores urbanos e rurais passaram a ter os mesmos direitos (art. 7º). Com isso, todos os benefícios dos trabalhadores rurais tiveram um reajuste de 100%, sem, contudo, ter havido o prévio custeio para tal.
O Constituinte de 1988, sabendo disso, instituiu um sistema novo de proteção social, fundado na solidariedade, denominado de “Seguridade Social”, compreendendo, de forma integrada, a Previdência Social, a Assistência Social e a Saúde. Assim, criou contribuições sociais (sobre a receita, faturamento, lucro e receita de concursos de prognósticos) que financiam concorrentemente essas três áreas e reservou, desta feita exclusivamente para o custeio da Previdência Social (art. 167, inciso XI), as contribuições sociais previdenciárias (incidentes sobre a folha de pagamento ou remuneração).
Dessa forma, dada a incindibilidade de parte das fontes de custeio, não há como destacar a Previdência Social da Seguridade Social, sendo certo que o melhor parâmetro para verificar a correção da metodologia é o sistema inaugurado pelo próprio texto constitucional de 1988. E segundo esse parâmetro, o método mais adequado é o utilizado pela ANFIP, uma vez que o apresentado pelo Governo<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> mistura o RGPS, que é parte integrante da Seguridade Social (arts. 194 a 204), com o Regime Próprio dos Servidores Públicos - RPPS (previsto no art. 40) e com o regime previdenciário dos militares (art. 142), computando, portanto, na conta do RGPS, receitas e despesas desses dois últimos regimes previdenciários, que lhe são estranhos.
Pelos dados do Governo, em 2012, o déficit foi de 40,8 bilhões; em 2013, 49,9 bilhões; em 2014, 56,7 bilhões; em 2015, 85,8 bilhões; e, em 2016, 149,7 bilhões. Contudo, nesse mesmo período, seguindo a metodologia do próprio Governo, se separarmos trabalhadores urbanos e rurais, verificaremos que a previdência dos primeiros foi superavitária até 2015 e, apenas em 2016, tornou-se deficitária. Segundo tais dados<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, a aposentadoria rural - que embora considerada benefício previdenciário, possui, em essência, natureza assistencial - responde por mais da metade do déficit da Previdência.
Essa equivocada metodologia, além de computar na previdência benefícios que não possuem custeio correspondente e de incluir receitas e despesas estranhas ao RGPS, ainda não registra como receita a compensação pela perda de “caixa” criada pelo legislador constituinte derivado em duas oportunidades distintas: a primeira, desde, ao menos, o ano 2000, conhecida como Desvinculação das Receitas da União (DRU), instituída pela EC nº 27 e que, desde então, vem retirando da Seguridade Social 20% das contribuições sociais que também são destinadas ao custeio da previdência social (desvinculação que foi recentemente elevada para 30% pela EC nº 93 de 2016); e a segunda, autorizada pela EC nº 42, de 2003, e instituída pela MP nº 540, de 2011 (posteriormente convertida na Lei nº 12.546, de 2011), conhecida como a “desoneração da folha de pagamento”, que vem subtraindo, desde final de 2011, recursos relevantes da Previdência Social.
Assim, considerando as contas que deveriam constar na apuração do resultado da Seguridade Social como um todo, como a Constituição determina, ou seja, todas as receitas e despesas da Seguridade Social, constitucionais e legais, segundo os dados da Análise da Seguridade Social de 2015, da Fundação Anfip<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, a Seguridade Social tem apresentado resultado superavitário há mais de dez anos. Em 2012, o superávit foi de 53 bilhões; em 2013, 76 bilhões; em 2014, 54 bilhões; e, em 2015, 11 bilhões.
Por essa segunda metodologia, mais compatível com a Constituição da República, embora o resultado da Seguridade Social não indique déficit, ele também evidencia que as despesas estão crescendo acima das receitas e que, talvez em 2016, o resultado já seja negativo, o que demonstra que ajustes no sistema, para conter despesas ou aumentar receitas, precisam ser feitos, mas não necessariamente os apresentados pela PEC nº 287.
Em agosto de 2016, havia apenas no CARF (órgão colegiado administrativo do Ministério da Fazenda de segunda instância), 613 bilhões de reais em créditos tributários aguardando julgamento. Não há divulgação de quanto desse total há para receber de contribuições sociais destinadas a Seguridade Social (CSLL, PIS/PASEP, COFINS e contribuições previdenciárias), mas, certamente, alguns bilhões de reais deixam de ser arrecadados para o sistema com a prontidão necessária, dada a morosidade e incongruências do processo.
A captação de receitas pelo processo judicial, por meio da execução fiscal, necessita igualmente de reparos. Segundos dados da PGFN<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, em janeiro de 2017, o estoque da divida ativa previdenciária alcançou a irreal quantia de 432,9 bilhões de reais. Desse total, apenas 4 bilhões são recuperados anualmente e a dívida cresce 15% ao ano.
Além do redesenho desses processos, impõe-se atuar na preservação das receitas já existentes, reduzindo as desonerações, imunidades ou isenções, único aspecto que encontrou eco, em parte, na atual Administração Pública.
Iniciada pela MP n º 540, de 2011, posteriormente convertida na Lei nº 12.546, de 2011, a “desoneração da folha de pagamento” representou uma renúncia fiscal por parte da União de R$ 68,710 bilhões entre 2012 e 2016<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, sem contudo concretizar seus dois maiores objetivos: aumentar a empregabilidade e proporcionar o crescimento econômico dos setores envolvidos. Apenas bem recentemente propôs-se um ajuste, com o advento da MP nº 774, de 30 de março de 2017, que trará, a partir de primeiro de julho de 2017, uma substancial redução da sua abrangência. Isso, caso essa matéria seja mantida nos termos atuais quando for convertida em lei.
Nesse sentido, de reduzir as renúncias previdenciárias, a PEC nº 287 traz, ao menos, uma modificação positiva, pois retira do campo da imunidade a incidência das contribuições sociais sobre as receitas decorrentes de exportação, quando se tratam de contribuições sociais previdenciárias.
Diversamente, no entanto, aumentando a renúncia, destaca-se a expansão crescente dos setores econômicos que passam a poder optar pelo Simples Nacional, o que pode ser percebido nas duas últimas alterações legais ocorridas na LC nº 123, de 2006, a penúltima trazida pela LC nº 147, de 2014, vigente em parte desde janeiro de 2015, e a última, que somente se tornará eficaz a partir de 01 de janeiro de 2018, publicada pela LC nº 155, de 2016.
Essa redução da liquidez do sistema da Seguridade Social será ainda mais aprofundada caso não haja a modulação dos efeitos, pela recente decisão do STF, em repercussão geral (tema 32), no RE 566622 da relatoria do Ministro Marco Aurélio, que considerou serem os requisitos para a fruição da imunidade devida pelas entidades beneficentes de assistência social – EBAS, quanto às contribuições previdenciárias patronais, disciplináveis apenas por lei complementar.
Não se pode perder de vista que toda renúncia tributária deve ser razoável e representar um ganho efetivo para a sociedade. Ocorre, todavia, que a renúncia, ainda que relevante, quando atinge a Seguridade Social, há que ser muito ponderada, sob pena de reduzir a efetividade dos direitos sociais à Previdência Social, à Assistência Social e à Saúde.
Dessa forma, fazer reforma da previdência não significa apenas fazer reforma nas despesas (nos direitos), mas, acima de tudo, remodelar todo o sistema de receitas e saber o que deve ser considerado como receita e o que deve ser considerado como despesa, pois só assim é possível mensurar o limite das despesas às quais a sociedade pode ser submetida.
São essas “reformas” antes da Reforma, que apesar de saltarem aos olhos do bom senso, seguem confortáveis na penumbra do descaso. Sem seguir essa ordem, estaremos nos preocupando em demasia com o “custo da proteção”, enxergando o ser humano não como um titular de direitos, mas como um “centro de custos”, e esquecendo que a desproteção também tem o seu custo e que este poderá superar em muito o da proteção.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Conforme o Anuário Estatístico da Previdência Social – AEPS 2015, disponível em  <a href="http://www.previdencia.gov.br/wp-content/uploads/2015/08/AEPS-2015-FINAL.pdf">http://www.previdencia.gov.br/wp-content/uploads/2015/08/AEPS-2015-FINAL.pdf</a>, acessado em 17.04.2017.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Dados publicado em 16.04.2017 no endereço <a href="http://oglobo.globo.com/economia/previdencia-rural-em-4-anos-37-mil-beneficios-irregulares-foram-cancelados-21214112">http://oglobo.globo.com/economia/previdencia-rural-em-4-anos-37-mil-beneficios-irregulares-foram-cancelados-21214112</a>, acessado em 17.04.2017.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Disponível em <a href="http://fundacaoanfip.org.br/site/wp-content/uploads/2016/10/Analise-da-Seguridade-Social-2015_13-10-2016.pdf">http://fundacaoanfip.org.br/site/wp-content/uploads/2016/10/Analise-da-Seguridade-Social-2015_13-10-2016.pdf</a>, acessado em 19/04/2017.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> http://www.pgfn.fazenda.gov.br/noticias_carrossel/pgfn-recupera-mais-de-r-22-bilhoes-em-creditos-previdenciarios, data: 09/03/2017, acesso em 27.03.2017
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> <a href="http://epocanegocios.globo.com/Economia/noticia/2017/03/uniao-abriu-mao-de-r-687-bi-com-desoneracao-da-folha-em-5-anos.html">http://epocanegocios.globo.com/Economia/noticia/2017/03/uniao-abriu-mao-de-r-687-bi-com-desoneracao-da-folha-em-5-anos.html</a>, acesso em 19/04/2017.

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