
Em que momento generais têm o direito de criticar homens públicos por se envolverem em temas militares, nos quais estes não teriam competência? Em que momento políticos têm o direito de censurar generais por se envolverem em assuntos jurídicos e institucionais, uma vez que os militares carecem de formação adequada nesse campo?
Essas duas indagações foram suscitadas por Raymond Aron (1905-1983) para discutir as crises que costumam surgir nas relações entre exército e poder civil. Intitulado “O fuzil-metralhadora, o carro de assalto e a ideia”, seu ensaio tem como palco problemas surgidos na França na década de 1940, durante a Segunda Guerra Mundial, e na década de 1950, durante os acontecimentos que levaram à guerra colonial da Argélia. Apesar do tempo decorrido, as conclusões de Aron parecem atuais nestes tempos em que comandantes das Forças Armadas lançam manifestos políticos e quando ex-comandantes do exército divulgam tuítes afirmando que as manifestações em frente aos quartéis são protagonizadas por pessoas “identificadas com o verde-amarelo que orgulhosamente ostentam” e que estão “pedindo socorro”.
Em princípio, o Estado detém o monopólio da violência legítima e seu exército tem por função combater o inimigo externo, e não impor sua própria vontade à nação. O problema é que, se do ponto de vista teórico esta fórmula clássica continua válida, do ponto de vista prático ela é de aplicação difícil, diz Aron. “Ora o exército tem preferências ideológicas, ora o Estado, disputado por partidos, parece se dissolver e o exército se pergunta qual é o Estado que ele tem o dever de servir. Ou, então, o inimigo que o exército tem por missão combater é ele próprio ideológico, resultante da libertação nacional ou de revolução social, e o exército se sente incapaz de triunfar sobre um inimigo ideológico com uma força neutra”, conclui.
Subjacente a essa argumentação há uma questão muito discutida no período histórico em que Aron escreveu seu ensaio e que está na essência de suas conclusões. Trata-se da profissionalização das Forças Armadas. Para politicólogos conservadores, como o então influente Samuel Huntington (1927-2008), autor de “The Soldier and the State: the theory and politics of civil-military relations”, quanto mais elas se profissionalizassem, menos tenderiam a intervir na política. No que era rebatido por especialistas em sociologia militar, como Morris Janowitz (1919-1988). Autor de um clássico, “The professional Soldier”, ele previa que, quanto mais as Forças Armadas se profissionalizassem, mais tenderiam a ganhar autonomia com relação às sociedades em que estavam inseridas, o que lhes daria motivação para intervir na política e desqualificar governantes civis.
Tanto os argumentos de Aron quanto as teses de Huntington e de Janowitz têm um contraponto com o Brasil dos anos 1960. Em meio à guerra fria no plano externo, no âmbito interno a industrialização e a urbanização da década anterior haviam deflagrado um processo de expansão do populismo e do nacionalismo, de polarização ideológica e de acirramento político. Face a um maior protagonismo de sindicatos trabalhistas e de movimentos populares na vida política, os setores sociais mais conservadores reagiram e a luta contra o “comunismo” serviu de pretexto para que os militares dessem o golpe em março de 1964.
Alguns pontos se destacam nesse período. De saída, o primeiro governo da ditadura adotou um sistema de cotas compulsórias, limitando o tempo em que os generais pudessem permanecer nos postos mais altos da carreira. Foi o passo inicial para aprofundar a profissionalização das Forças Armadas. O segundo passo foi a limitação do período de permanência de oficiais militares fora da corporação, para exercer funções civis. O terceiro passo foi a imposição de um rodízio dos oficiais nos diferentes postos de um país com território continental. O quarto passo foi aumentar a taxa de renovação dos militares de maior patente, o que lhes permitia ascensão mais rápida ao generalato, por um lado, mas sem aumentar o quadro de generais em relação à dimensão da tropa, dada a reforma compulsória.
Além dessas medidas profissionalizantes, também foram tomadas iniciativas seja para aumentar a capacitação do oficialato, por meio das Escolas de Aperfeiçoamento de Oficiais e de Comando e Estado-Maior do Exército, cujos cursos são obrigatórios, seja para preparar uma elite dirigente e capaz de “interpretar as aspirações e os interesses nacionais”, formulando políticas correspondentes, por meio da Escola Superior de Guerra, cujo curso é opcional. Essas iniciativas chegaram a ser objeto de uma aula inaugural dada na ESG 12 anos depois, durante o quarto governo da ditadura, pelo então ministro-chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, general Antônio Jorge Correia.
Ele deixou claro que os militares daquela época tinham a intenção de promover alterações estruturais em seu papel e de rever suas funções dentro da burocracia estatal. Queriam deixar de serem “árbitros” do processo político para se converterem em policy makers. Ou seja, formuladores de um projeto de Nação, mediante a implementação e execução de políticas públicas concebidas com o objetivo de assegurar o crescimento econômico e reduzir as tensões sociais. Isso ficou particularmente claro quando o quarto presidente da ditadura militar, general Ernesto Geisel, lançou o II Plano Nacional de Desenvolvimento, o mais ambicioso do regime militar. Por isso, profissionalização e qualificação eram as condições necessárias – ainda que não suficientes – para “assegurar o avanço do Brasil à condição de potência”, como disse o general Antônio Jorge Correia.
Mais de quatro décadas e meia após essa palestra, e levando em conta as indagações de Aron e sua análise do equilíbrio entre Forças Armadas e poder civil, como interpretar as ambíguas notas por elas recentemente lançadas no contexto político, econômico, social e cultural atual?
Por um lado, elas falam em democracia. Mas, por outro, flertam com protestos antidemocráticos em frente aos quartéis (chamando-os de “manifestações populares”). Também invocam a liberdade de expressão para defender o direito de manifestações golpistas que impedem a liberdade de locomoção dos brasileiros. Sua notas contêm recados indiretos ao Judiciário, o Poder cuja função é zelar pela ordem constitucional e pela normalidade institucional, dando a entender que as decisões dos juízes são “condenáveis” por restringirem direitos individuais e coletivos. As notas ainda sugerem aos manifestantes golpistas que apresentem suas reivindicações ao Congresso, descrito como “Casa do Povo, destinatário natural dos anseios e pleitos da população, em nome da qual legisla e atua”.
Não é só a ambiguidade que caracteriza essas notas. A ausência de uma sólida de fundamentação política, o modo pedestre como a normalidade institucional é encarada e a falta de uma interpretação dos direitos e liberdades constitucionais com base em rigor hermenêutico também se sobressaem. O mesmo ocorre quando as notas louvam a “atuação moderadora” das Forças Armadas. Esse “poder moderador” nunca foi previsto pelas Constituições promulgadas nos períodos democráticos do país. Na verdade, é uma presunção que decorre do fato de o Império ter sido substituído pela República por meio de um golpe militar – “origem que viciou o regime desde seu início (…), criando entre os militares a ideia de que eles são os responsáveis pela República e herdaram o direito, enquanto corporação, de intervir na vida política quando assim o desejarem”, como afirma o historiador José Murilo de Carvalho.
Ao comparar o ocorrido em 1964 e os acontecimentos atuais fica claro que as Forças Armadas brasileiras têm “preferências ideológicas”, para retomar a expressão de Aron. Também fica evidente que a profissionalização e a capacitação de seus membros levou, na época, as corporações a ganharem autonomia com relação à sociedade e a desqualificarem os governantes civis, conforme advertia Janowitz. A ponto de a ditadura por eles imposta ter fechado os partidos, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal, além de não estabelecer prazo para a restauração do poder civil, por meio de eleições livres.
A pergunta a se fazer é saber o que os militares de hoje têm na cabeça e por que passam a imagem de serem profissionais toscos em matéria de formação, abrutalhados pela caserna e com uma visão de mundo estreita, baseando-se na ideia de que só o patriotismo salva a nação e se negando a ver a realidade – isto é, a heterogeneidade, o pluralismo e a diversidade da sociedade brasileira. Os militares de 1964 tinham um projeto autoritário para o Brasil. Falavam em modernização e em rompimento do imobilismo institucional, ao mesmo tempo em que desqualificavam os políticos acusando-os de corrupção ou subversão da ordem. A história mostrou que aquele autoritarismo foi estéril e que o projeto de grande potência ficou muito longe do que era esperado por seus idealizadores.
Os militares de hoje não conseguem compreender que a história já enterrou os valores e os embates ideológicos dos anos de 1960, como o combate comunismo. Mais grave ainda, se deixaram levar por um governo que acaba de ser derrotado democraticamente, e cuja gestão desestruturou a máquina estatal, colocou milhares de militares em cargos civis, com vantagens previdenciárias e vencimentos acima dos limites constitucionais, desmanchou o sistema de educação pública, negou a ciência e estimulou o armamento da população. O que de fato pretendem os militares de 2022, cuja formação – pelo que se vê de suas manifestações – é nitidamente inferior quando comparada à dos militares de quase seis décadas atrás?