Lockdown

As multas tributárias e a Covid-19

A imposição estatal de lockdown acarretou a supressão das receitas dos contribuintes que serviriam ao pagamento dos tributos

Crédito: Pixabay

Tendo assumido status de pandemia segundo recente declaração da Organização Mundial de Saúde, o vírus conhecido como Covid-19 ou Coronavírus vem abalando o mundo. Cancelamentos de eventos culturais e de aulas presenciais, restrições de deslocamento e graves prejuízos no mercado financeiro são alguns exemplos das graves consequências causadas pelo vírus.

Sob a perspectiva governamental, o Covid-19 tem gerado novos e vultosos gastos com a saúde pública, drenando parcela considerável das receitas públicas antes destinadas a outros fins. Mesmo os sempre rigorosos limites da Lei de Responsabilidade Fiscal e da Lei de Diretrizes Orçamentárias têm sido relativizados para possibilitar o remanejo das receitas públicas pelo Governo, tudo a fim de melhor viabilizar o enfrentamento da pandemia.

A despeito de todos os esforços, os inesperados gastos com a saúde pública têm ocasionado uma profusão de projetos de lei cujo objetivo não é outro senão o de aumentar a arrecadação das receitas tributárias. Neste sentido, foram recentemente apresentados projetos de lei que servem à criação de empréstimo compulsório, do imposto sobre grandes fortunas e ainda sobre a revogação da isenção do imposto de renda incidente sobre os dividendos.

Ocorre, porém, que as medidas de restrição ao convívio social estabelecidas pela União, pelos Estados e Municípios têm reduzido drasticamente as receitas das empresas brasileiras. O chamado lockdown – fechamento dos estabelecimentos comerciais e industriais situados no território nacional, por determinação governamental –, previsto em diversos decretos estaduais e municipais, tem como efeito imediato ocasionar grande redução do faturamento das empresas brasileiras, excetuadas apenas as que estão liberadas para exercer as atividades consideradas essenciais, como farmácias, supermercados e hospitais.

No que aqui importa, a redução da receita das empresas acaba resultando no aumento da inadimplência fiscal. Oprimidas pelas exigências fiscais e por todos os seus demais compromissos – obrigações trabalhistas e com fornecedores, dentre outras-, diante da violenta redução sofrida em seus faturamentos, muitas empresas acabam compelidas ao não pagamento dos tributos.

Transparece, então, o paradoxo surgido no âmbito dos Direitos Financeiro e Tributário: de um lado, a sociedade civil encontra-se paralisada por determinação estatal que visa a reduzir a disseminação do Covid-19, o que lhe impede de produzir novas riquezas; de outro, os Entes Federados buscam diversas e maiores fontes de arrecadação tributária, através da criação de tributos até então inexistentes e/ou do aumento daqueles já existentes.

Diante de tão drástico cenário, surge importante dúvida a respeito da possível cobrança de encargos moratórios pelos Entes Tributantes: em razão do abrupto abalo financeiro que decorre do lockdown imposto pelo Estados e Municípios, os contribuintes que pagarem seus tributos em atraso durante o estado de exceção deverão recolher multa e juros de mora?

A resposta à pergunta passa necessariamente pelo exame do artigo 161 do Código Tributário Nacional. Tendo presente a natureza indenizatória dos juros de mora, prevê o dispositivo legal que os mencionados encargos serão devidos nos casos de atraso no pagamento dos tributos “seja qual for o motivo determinante da falta”. A norma geral surgida pela interpretação do Código Tributário Nacional indica que seja qual for o motivo do descumprimento da obrigação de pagar o tributo, tornando-se inadimplente, o contribuinte terá a obrigação de pagá-lo com o acréscimo de juros moratórios.

Desta forma, mesmo que haja indiscutível nexo de causalidade entre o inadimplemento tributário e o lockdown imposto pelos Estados e Municípios, serão devidos juros de mora pelos contribuintes que deixarem de honrar seus compromissos com o Fisco.

Em relação às multas tributárias, o exame atento do ordenamento jurídico-tributário demonstrará que a conclusão deve ser outra.

Multas tributárias são sanções administrativas pecuniárias impostas pelos Entes Tributantes frente ao descumprimento de alguma obrigação tributária principal ou acessória. O descumprimento das obrigações tributárias pode ser descrito como um ilícito passível de punição e a multa tributária pode ser prescrita como a consequência decorrente de sua realização – tudo a depender apenas da existência de lei que assim estabeleça (tipicidade). No âmbito federal, por exemplo, havendo o inadimplemento da obrigação de pagar os tributos, o artigo 61 da Lei 9.430/96 prevê a cobrança de multa moratória limitada a 20%.

No atinente às multas, porém, os motivos subjacentes ao inadimplemento da obrigação de pagar o tributo são muitíssimo importantes. Sendo uma sanção e por isso tendo por finalidade a punição da infração e o desestímulo de sua repetição, a aplicação das multas tributárias exige um fato típico, antijurídico e reprovável (culpabilidade)[1].

Num Estado de Direito, a aplicação de quaisquer sanções, sejam penais, sejam administrativas, exige a presença dos referidos elementos – o que inclusive demonstra a superação das antigas teorias que sustentavam, a partir da interpretação do artigo 136 do Código Tributário Nacional, a existência de responsabilidade tributária objetiva. Desta forma, sendo imprescindível para a aplicação das sanções tributárias a ocorrência de um fato antijurídico, típico e reprovável, não há como evitar a necessária consideração das respectivas excludentes no atinente às multas tributárias.

As excludentes de tipicidade, de antijuridicidade e mesmo de culpabilidade, deste modo, devem ser consideradas não apenas no âmbito do Direito Penal, mas também no do Direito Tributário Sancionador. Obviamente, em razão da diferença que há entre sanções restritivas de liberdade típicas do Direito Penal e sanções pecuniárias típicas do Direito Tributário Sancionador, nem todas as excludentes poderão ser aplicadas como limitações de sanções administrativo- tributárias – difícil pensar na aplicação da legítima defesa como excludente da aplicação de multas tributárias, por exemplo.

Dentre as excludentes que podem ser aplicadas no âmbito das sanções tributárias, importa destacar o caso fortuito e a força maior. Não obstante exista ainda discussão doutrinária sobre os respectivos conceitos e mesmo sobre a possível identidade entre ambos – o que resta amainado pela coincidência de seus efeitos jurídicos, há consenso no sentido de que os dois institutos tratam de fatos não determinados pelas partes, supervenientes e inevitáveis.

Na seara penal, caso fortuito e força maior muitas vezes têm atuado como excludentes de tipicidade, por afetarem à chamada imputação objetiva. Em outras oportunidades, por se entender que afetam à exigibilidade de conduta diversa, têm servido como excludentes de culpabilidade. Não obstante em qualquer dos casos sirvam como impedimento de aplicação das sanções, parece-nos mais acertada a ideia de que o caso fortuito e a força maior devem ser compreendidos como fatores que interferem na tipificação da conduta, de modo a impedir sua punição.

Tratando-se de um fato não determinado pelos contribuintes, sendo superveniente e inevitável, o lockdown imposto pelo Estado enquadra-se nos conceitos de caso fortuito e força maior. Surpreendidos pela determinação estatal de que deveriam parar suas atividades econômicas, os contribuintes viram obstada qualquer possibilidade de auferir receitas.

A imposição estatal de lockdown –verdadeiro “Fato do Príncipe”, segundo a doutrina tradicional[2]– acarretou a supressão das receitas dos contribuintes que serviriam ao pagamento dos tributos. A interrupção das atividades econômicas impostas pelos Estados e Municípios, portanto, impediu o adimplemento dos tributos devidos pelas empresas, devendo por essa razão atuar como verdadeira excludente de tipicidade em relação às sanções que poderiam ser impostas em face do descumprimento da obrigação tributárias, inclusive e especialmente em relação às multas moratórias.

Em conclusão, não poderão ser aplicadas quaisquer multas tributárias pela União, pelos Estados e/ou pelos Municípios em razão do descumprimento da obrigação dos contribuintes de pagar seus tributos dentro dos respectivos vencimentos, durante o período em que perdurar o impedimento ao exercício de suas atividades econômicas.

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[1] MASINA, Gustavo. Sanções tributárias: definição e limites. São Paulo: Malheiros. 2019. p.72.

[2] MELO, Osvaldo Aranha Bandeira de. Princípios gerais de Direito Administrativo: Vol. I. 3ª ed. São Paulo: Malheiros. 2007. p. 680.