Etienne Jacintho

Minha vontade é começar o texto com um palavrão. E depois escrever um outro. Isso tudo para dizer que os britânicos são mesmo muito surpreendentes, habilidosos e incríveis nesse negócio de fazer série. Tenho a coleção de DVDs do ‘Flying Circus’, do ‘Monty Python’, só porque esse é um dos melhores programas de tevê de todos os tempos. E morro de saudades das ‘Absolutely Fabulous’. Os britânicos têm, mais do que apenas sarcasmo em suas críticas, uma forma peculiar de abordar temas polêmicos com convicção de ideias. Não há nada em cima do muro. As críticas são feitas de um modo que não sobra muita brecha para controvérsias. E não importa se a tela está mostrando algo sobre o passado ou fazendo uma projeção do futuro. Não importa nem mesmo se a obra está baseada em fatos reais ou se é puramente uma ficção.
A Netflix colocou na rede, no fim do ano que passou, duas joias: as novas temporadas de ‘The Crown’ e de ‘Black Mirror’. E eu, devorando as duas atrações, cheguei a pensar o que aconteceria se a tecnologia estivesse tão avançada na época da juventude da Rainha Elizabeth II. Certamente, toda a pompa e a tradição da família real já teria se acabado e os caminhos percorridos por seus membros seriam, sim, bem diferentes. Provavelmente, a Princesa de Gales, Diana, não teria sido a primeira vítima fatal da perseguição ávida de uma mídia sedenta por notícias dos ricos, chiques e famosos. As estripulias juvenis dos herdeiros Harry e William também não teriam sido as primeiras a serem fotografadas e distribuídas mundo afora em questão de minutos.
Imagine se a Rainha Elizabeth tivesse um equipamento eletrônico que monitorasse tudo o que o pequeno príncipe Charles visse? Certamente, ele não teria passado mais do que uma semana na escola que seu pai, o príncipe Philip, frequentou. Indo mais longe, capaz que Charles não tivesse nem tido a chance de se casar com Diana, uma plebeia, e muito menos de ter uma amante como Camilla e com ela ficar. Pelo que vejo em ‘The Crown’, Elizabeth não sairia do pé do coitado do Charles nem por um segundo... Tudo em nome da tradição e do peso da Coroa.
Já outros membros da família real, querendo justamente fugir desse tal peso da Coroa, seriam, sem dúvida, viciados em jogos de realidade virtual e fariam de tudo para, em um mundo paralelo, terem uma vida bem diferente. Uma vida que pudesse ser vivida à escolha do jogador. Sem títulos, sem lastro e, principalmente, sem etiquetas e regras antiquadas. No mundo virtual, Charles talvez fosse um rei tirano ou um reles mortal; um professor universitário ou um agricultor orgânico. E a falecida princesa Margaret? Em outra vida, ela poderia ter escolhido ser mais feliz, com seus romances todos mantidos longe da especulação da mídia e do moralismo da irmã.
Hoje, com a internet, a realeza britânica já está bem mais próxima do chão. Os príncipes William e, principalmente, Harry não conseguem ter privacidade e, claro, fotos comprometedoras vivem aparecendo por aí. Problemas com drogas, com álcool, gafes em festas, namoricos... Hoje a gente sabe que a família real encara questões como as de qualquer família. Em sua segunda temporada, a série tem ótimos episódios, como o que explora a infância do príncipe Philip e como ela influenciou a educação e a formação do príncipe Charles.
‘The Crown’ é uma atração irrepreensível na forma e na estética. Os atores vestem seus papéis de forma muito humana. Os roteiros mostram que, títulos à parte, todas as famílias são iguais. Além de quebrar essa bolha do glamour, outro mérito de ‘The Crown’ é mostrar o fato com olhos críticos, mesmo que não aparente ser nada disso – e mesmo que haja certo floreio na realidade.
Já ‘Black Mirror’ chega com um chute no estômago. Até porque, para superar a terceira temporada, o criador da série, Charlie Brooker, teria de suar. O primeiro episódio não é um dos melhores – diferentemente da temporada anterior que já chegou arrasando –, mas não é fraco. Já a segunda história é bem boa, começa cheia de boas intenções e vai virando aos poucos, acompanhando uma obsessão. O capítulo tem direção de Jodie Foster. Já o terceiro é terrível de forte, com um fim esmagador.
&nbsp;
[caption id="attachment_107924" align="aligncenter" width="980"]<a href="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2018/01/blackmirror4.jpg"><img class="wp-image-107924 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2018/01/blackmirror4.jpg" alt="" width="980" height="490" /></a> Black Mirror. Divulgação[/caption]
&nbsp;
Em ‘Black Mirror’, você nunca sabe o que vai encontrar. Ora assiste a um episódio que mostra um futuro certamente muito próximo e até palpável. Ora retrata um futuro distante e difícil de acreditar que possa se tornar realidade. O quarto capítulo é desses apocalípticos, num futuro de escassez e violência.
Seja como for, ‘Black Mirror’ faz a gente pensar. Será que, no âmbito social, a tecnologia tem ajudado ou atrapalhado a relação entre as pessoas? As redes sociais servem mesmo para criar comunidades e facilitar a interação social? Às vezes parece que elas servem para afastar ainda mais o contato social no mundo real. Enfim, até que ponto a tecnologia ajuda as pessoas sem criar dependência? O mundo atual não tem gerado pessoas cada vez mais solitárias presas à correria das metrópoles, aos hábitos de consumo e ao (ab)uso da tecnologia? Penso em tudo isso sem ver ‘Black Mirror’. Porém, quando uma temporada nova aparece, arrisco dizer que meu questionamento vira medo. E, dependendo do episódio que vejo, o medo se torna pânico.

thecrowns2margaret

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

O que aconteceria se ‘The Crown’ encontrasse ‘Black Mirror’?

As joias da Coroa

O que aconteceria se ‘The Crown’ encontrasse ‘Black Mirror’?