Supremo Tribunal Federal

A(s) inconstitucionalidade(s) dos julgamentos virtuais no STF

Antes, durante e depois da pandemia

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Ministro Luiz Fux preside sessão por videoconferência. Crédito: Nelson Jr./SCO/STF

A pandemia do novo coronavírus provocou profundas transformações na sociedade, sobretudo quanto à reunião de pessoas. O Supremo Tribunal Federal (STF) editou, então, a Emenda Regimental (ER) nº 53/20, ampliando indistintamente a modalidade de julgamentos virtuais, mas sem estabelecer data limite para tanto. A partir de agora, “todos os processos de competência do Tribunal” poderão ser apreciados em listas, de forma presencial ou eletrônica (art. 21-B do Regimento Interno do STF – RISTF).

Embora a medida tenha sido apresentada como alternativa para o contexto atual, a falta de vinculação com o fim da pandemia leva a crer que se trata de algo em caráter definitivo. Como alteraria substancialmente a dinâmica da Corte, compartilho reflexões sobre a sua compatibilidade com os princípios, os direitos e as garantias fundamentais previstos na Constituição Federal (CF/88) e na legislação aplicável.

Ausência no Plenário físico sempre foi ausência; no virtual era presença

Começo por uma preocupação que foi afastada há pouquíssimos dias. O ministro Dias Toffoli propôs[1] a alteração de regras dos julgamentos virtuais que contrariavam as normas relativas ao quórum de oito ministros para exame de matéria constitucional (art. 143 parágrafo único do RISTF c/c art. 22 da Lei 9.868/99 c/c art. 8º da Lei n. 9.882/99) e de seis votos para declaração de inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo (art. 97 da CF/88 c/c art. 173 caput do RISTF).

A proposta, aprovada na sessão administrativa encerrada no dia 1º de julho, resultou na Resolução nº 690/20[2]. Até então, a presença dos ministros no ambiente eletrônico era presumida e eventual ausência, isto é, falta de expressa manifestação formal era computada como adesão ao voto do relator.

Isso divergia, por exemplo, da diretriz do art. 173 parágrafo único do RISTF (c/c art. 23 parágrafo único da Lei 9.868/99) que determina a suspensão do julgamento quando as ausências nele puderem influir.

Poucos, contudo, se atentaram para o fato de que o art. 173 parágrafo único do RISTF é norma originária e nos remete à época em que, sob a égide da CF/69, o STF detinha competência normativa primária para dispor sobre direito processual.

Com a CF/88, as disposições do RISTF que não conflitavam com a nova ordem constitucional foram recepcionadas e passaram a vigorar com força de lei, de modo que só podem ser alteradas por lei em sentido formal, observando-se o devido processo legislativo[3].

Assim, não havia dúvida de que também deveria ser observado nos casos de ausência em meio eletrônico, sobretudo diante da “equiparação das competências do plenário virtual e presencial[4]”. É a medida mais consentânea com a CF/88, por conferir maior segurança jurídica, legitimidade e estabilidade às decisões do STF.

O modelo constitucional brasileiro de deliberação

Para avançar no tema, é preciso lembrar que o art. 93, IX reforça que os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos (art. 5º, LX c/c art. 37) e suas decisões fundamentadas.

Acrescenta que apenas a lei pode limitar a presença das partes e de seus advogados ou restringi-la a estes, em vista do interesse público à informação (art. 5º, XIV) e dos princípios da ampla defesa e do contraditório (art. 5º, LV). Encerra dois princípios fundamentais: da publicidade e da motivação das decisões judiciais.

Nem sempre foi assim. Em março de 1978, o professor José Carlos Barbosa Moreira escreveu sobre a importância de ambas as garantias, inerentes ao Estado de Direito, constarem na CF/67 então vigente.

Segundo ele, asseguravam não só a legitimidade do processo, mas da própria justiça[5]. A CF/88 os explicita, então, como mecanismos de controle das decisões judiciais e evidente limite para a revisão dos atos dos demais Poderes eleitos democraticamente. A máxima se aplica, com maior razão, ao STF.

Restrição de garantias fundamentais por norma regimental?

Sabe-se que os Tribunais podem dispor sobre competência e funcionamento de seus órgãos jurisdicionais e administrativos, desde que observem as normas de processo e as garantias processuais das partes (art. 96, I, “a” da CF/88).

Assim, podem fixar regras sobre o que será julgado por Turma, Seção, Câmara, Órgão ou Corte Especial e Plenário. A dúvida é saber se podem alterar a forma de fazê-lo (virtual ou presencial), especialmente em razão da exigência de publicidade dos julgamentos.

A primeira lei[6] que introduziu a possibilidade de análise no ambiente eletrônico foi o Código de Processo Civil (CPC/15) no art. 945. A norma previa que, “a critério do órgão julgador, o julgamento dos recursos e dos processos de competência originária que não admitem sustentação oral poderá realizar-se por meio eletrônico”.

Antes de entrar em vigor, contudo, foi revogada pela Lei nº 13.256/16, cuja ementa é: “para disciplinar o processo e o julgamento do recurso extraordinário e do recurso especial”.

Havia a intenção de se inaugurar um novo modelo de julgamentos no Brasil, mas foi abandonada logo no nascedouro. Seria precipitada a sua implementação no âmbito do STF e do Superior Tribunal de Justiça (STJ)?

O Congresso Nacional, soberano no juízo de conveniência e oportunidade sobre as alterações na ordem jurídica, entendeu que sim. É certo que a abordagem do assunto requer amplo debate parlamentar.[7]

A matéria é tipicamente processual e, por isso, de competência privativa da União (art. 22, I da CF/88). É o que consta na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 2970[8], relatora ministra Ellen Gracie.

Assim, o STF declarou que as normas regimentais que instituíam sessão secreta de julgamento nas ações criminais perante o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) ofendiam a CF/88.

Além de assegurar a não intromissão de um Poder nas atribuições de outro (art. 2º da CF/88), o Plenário do STF também assentou – de forma unânime – que, “ante a regra fundamental insculpida no art. 5º, LX, da Carta Magna, a publicidade se tornou pressuposto de validade não apenas do ato de julgamento do Tribunal, mas da própria decisão que é tomada por esse órgão jurisdicional”.

Com a revogação do art. 945 do CPC/15, não se pode falar sequer em delegação legislativa aos Tribunais para instituírem esse tipo de regra processual, o que ocorreu em outros 25 (vinte e cinco) artigos[9].

Sem respaldo legal, a adoção dos julgamentos virtuais por iniciativa dos órgãos do Poder Judiciário afrontaria o art. 22, I da CF/88 e – como restringe garantias processuais – também os arts. 93, IX c/c 96, I, “a” da CF/88.

Mecanismos de controle das decisões judiciais

O art. 93, IX da CF/88 foi de tal modo resguardado pelas transmissões ao vivo da TV Justiça (desde 2002) e da Rádio Justiça (desde 2004) que geraram críticas sobre a superexposição da Corte à opinião pública.

Não há, porém, estudos suficientes para medir a influência dessa maior abertura do processo deliberativo do Tribunal. Seja como for, ambas contaram com a participação dos outros Poderes na sua criação[10].

A essa altura, poderia o STF – sozinho e por simples norma regimental – diminuir o alcance dessas garantias, ainda mais sem critério pré-estabelecido, dependendo apenas do designo de cada relator?

Em 2019, o filtro para apreciação no ambiente virtual era a classe processual ou a “jurisprudência dominante”. Atualmente, basta a vontade do relator ou do ministro vistor, com a concordância daquele, para um processo ser excluído da cobertura pela TV ou pela Rádio Justiça.

O que deve orientar a escolha entre o julgamento presencial, por videoconferência ou virtual? Em qualquer cenário, atrai-se o ônus argumentativo. Do contrário, “a ausência de justificativa pública e institucional para essas escolhas deixa margem para uma grave suposição: de que a opacidade do ambiente eletrônico poderia ser vista pelo Supremo não como um obstáculo, mas como uma oportunidade de escolher quais decisões colegiadas devem ser afastadas da apreciação e do escrutínio públicos[11].

O argumento de que posteriormente as mídias poderiam dar a devida atenção aos temas julgados não convence. Primeiro, porque a CF/88 garante acesso concomitante aos julgamentos ou à prática dos atos processuais.

Isso se torna ainda mais evidente no art. 133 da CF/88 que assenta a indispensabilidade da advocacia à administração da justiça. Por óbvio, o advogado estaria impedido de exercer seu relevante papel e seria reduzido a um mero espectador dos resultados das deliberações do STF.

Entre os instrumentos que lhe asseguram esse dever de contribuir com a atividade jurisdicional destacam-se a realização de sustentação oral após a leitura do relatório, a propositura de questão de ordem para o bom andamento do processo, a intervenção na tribuna para prestar esclarecimento de matéria de fato capaz de influir no resultado do julgamento. No ambiente virtual, isso se artificializa ou simplesmente desaparece.

Deliberação aberta e pública versus fechada ou secreta

Diante da escolha por julgamentos públicos e decisões fundamentadas, o formato aberto de deliberação passa a ser consectário natural e indispensável para assegurar ambas as garantias e, portanto, o devido processo legal.

A opção brasileira difere do modelo fechado ou secreto adotado, por exemplo, pela Corte Constitucional italiana, pelo Tribunal Constitucional Federal alemão e pelo Conselho Constitucional francês.

Na maioria desses países, prevalece a premissa de que o debate constitucional entre os juízes deve ocorrer longe de olhares e pressões externas. Deliberam em espaços fechados, onde cada magistrado tem ampla liberdade para expor o seu ponto de vista e, desse modo, buscar o convencimento dos demais ou um consenso possível. Não se pode dizer que é um formato melhor ou pior. É simplesmente diferente.

No Brasil, outros preceitos jurídicos mereceram maior atenção do constituinte, como consignou o decano do STF, ministro Celso de Mello: “o novo estatuto político brasileiro – que rejeita o poder que oculta e não tolera o poder que se oculta – consagrou a publicidade dos atos e das atividades estatais como valor constitucionalmente assegurado, disciplinando-o, com expressa ressalva para as situações de interesse público, entre os direitos e garantias fundamentais[12].

Até maio de 2020, relatório e votos sequer eram disponibilizados durante a sessão virtual, o que foi corrigido pelo ministro Dias Toffoli[13]. Ainda assim, o atual modelo situa-se entre o pior dos dois mundos (aberto e fechado), porque diminui o acesso aos cidadãos e a efetiva participação dos advogados, sem proporcionar um ambiente mais propício a debates espontâneos e interação concreta entre os ministros.

Decisão colegiada ou simples somatório de posições individuais?

Além das críticas antigas sobre as práticas deliberativas do STF[14], o modelo virtual trouxe novas preocupações. A mais grave talvez seja quanto à dificuldade de se proclamar o resultado dos julgamentos. Houve impasse recentemente na lista nº 103/20 (sessão de 29 de maio a 05 de junho de 2020), diante da ausência do ministro Dias Toffoli, por licença médica, e da fundamentação diversa apresentada pelo ministro Edson Fachin.

Antes de surgir o problema, é possível que tenha havido conversas nos bastidores e o compartilhamento de minutas dos votos, o que sempre existiu na história recente do STF. Ao contrário do que costumava acontecer, porém, não foram capazes de gerar ambiente minimamente maduro para a construção de decisão viável. Está claro que a estrutura dos julgamentos virtuais assim não permite e que a decisão colegiada é resultado de consenso e não simples somatório de posições individuais.

Sobre o tema, registre-se a valiosa contribuição de André Rufino do Vale[15], que afirma ser comum nas Cortes Constitucionais a “busca cooperativa de consensos razoáveis para a tomada de decisão”.

Alerta que há dois métodos para aferir a posição colegiada e que podem levar a resultados distintos, mas – seja ela qual for – será sempre mais vantajosa do que a perspectiva monológica de um só juiz e de sua decisão individual (o que é comprovado, por exemplo, pelo Teorema de Condocet).

O discurso e o papel político do STF

Há muito debate sobre o papel dos juízes constitucionais. Alinho-me ao pensamento de Zagrebeslky[16] de que eles exercem função política, mas sem pertencer à política; e ao de Giovanni Sartori[17] de que o constitucionalismo é uma solução jurídica para um problema político e, por isso, despolitizá-lo seria retirar a política da política. A própria escolha dos ministros do STF evidencia essa característica da Corte.

Daí a importância das garantias fundamentais do art. 93, IX da CF/88 (publicidade dos julgamentos e motivação das decisões judiciais), bem como de se estabelecer práticas transparentes de discurso e de argumentação.

Dessa forma, é possível controlar eventual abuso de poder, resguardar a credibilidade dos pronunciamentos do STF e atestar, ao menos em tese, que foram suficientemente amadurecidos.

Embora os ministros possam reconsiderar seu posicionamento até a proclamação do resultado, uma primeira análise empírica demonstra que poucos acessaram outra vez o sistema de votação virtual para rever o ponto de vista.

É intuitivo lembrar do clássico “12 Homens e uma Sentença” do consagrado cineasta Sidney Lumet, em que um dos jurados, ao expor diferentes interpretações sobre os mesmos fatos, dá ensejo a uma série de reflexões antes ignoradas pelos onze colegas.

Inevitável, ainda, não falar da importância do ministro Marco Aurélio nesse contexto. Com recém completados 30 (trinta) anos de STF, o “Senhor Voto Vencido” nos mostra o quão valiosas são suas contribuições para as decisões construídas no colegiado e como podem acabar se tornando a jurisprudência da Corte.

No julgamento da ADPF 187 (Marcha da Maconha), em que pese não ter divergido, fez importante referência à teoria de Habermas para ressaltar o pluralismo das sociedades contemporâneas[18].

Como transpor essa teoria[19] e também a de Alexy[20], Atienza[21], Dworkin[22], Luhmann[23], Perelman[24], Rawls[25] – citando alguns dos grandes juristas modernos – para a limitada realidade dos julgamentos virtuais?

Algo talvez impossível, na medida em que os pressupostos de cada uma delas parecem não encontrar eco no frio mundo das listas eletrônicas compostas apenas de votos escritos. Essas tentativas de emprestar mais coerência, previsibilidade e racionalidade ao discurso jurídico seriam esvaziadas.

Na verdade, desafios antigos se tornaram ainda mais complexos. Basta pensar nas diferentes variações do mesmo tema: limites à criatividade da função jurisdicional[26], legitimidade das sentenças aditivas[27], mito do legislador negativo, ativismo judicial[28] e dever de autocontenção (self-restraint).

Some-se a isso o fenômeno da judicialização da vida no Brasil, destacado pelo ministro Luis Roberto Barroso[29], e as concepções de Estado de Direito e de constitucionalismo simbólico de Marcelo Neves[30] quanto à realidade sul-americana. Intensificam-se muitas dessas reflexões.

O Plenário virtual não é uma experiência bem-sucedida

O Plenário virtual existe desde 2007 e, além da análise da existência de Repercussão Geral, permite o exame de mérito dos casos de reafirmação de jurisprudência.

Apesar disso, o acervo atual do STF segue com 29.193 (vinte e nove mil cento e noventa e três) processos[31], dos quais 15.039 (quinze mil e trinta e nove) são Agravos de Instrumento (AI), Recursos Extraordinários (RE) e RE com Agravo (ARE).

O fato de que – de 2010 a 2019 – o número de recursos (AI, RE e ARE) providos tenha sido inferior a 5% é bastante significativo[32]. Invertendo a lógica, demonstra que 95% dos casos já haviam recebido, pelo menos em tese, uma decisão justa[33].

Essa verificação certamente não caberia ao STF em todos os casos, o que evidencia a falta de critérios objetivos (legais e regimentais) para seleção de casos representativos da controvérsia constitucional, afetação e julgamento no Plenário virtual.

Com a recentíssima ER nº 54/20, de 1º de julho, a possibilidade de rever a existência de Repercussão Geral agora consta no art. 323-B do RISTF[34]. O que foi criado para objetivar a gestão, passou a ser só mais uma instância de revisão. Essa é apenas uma das sugestões antigas[35] (e polêmicas) que também virou norma regimental.

As novas tecnologias deveriam interferir no resultado das deliberações e não no meio de fazê-las. Os Plenários físico e virtual já não teriam examinado número suficiente de casos para orientar boa parte dos subsequentes? Por que não utilizar a inteligência artificial para identificar, com precisão, a ratio decidendi de todos esses leading cases?

Constitucionalidade circunstancial?

A despeito dos questionamentos feitos, não se desconhece que o momento é singular. Enquanto durar a pandemia, vale refletir se – em alguma medida – poderíamos considerar os julgamentos virtuais no STF compatíveis com a CF/88.

A ideia surge a partir de fenômeno defendido recentemente, o da inconstitucionalidade circunstancial: “uma lei pode ser inconstitucional em razão de sua incompatibilidade com a realidade vivida em determinado momento, o que faz com que ela não se amolde ou passe a não mais se amoldar às exigências constitucionais, ainda que momentaneamente[36].

Houve um contraponto, refutando-se a sua viabilidade no direito brasileiro[37]. Junto-me ao debate para dizer que me parece algo defensável e necessário, mas reforço que se trata de técnica de decisão a ser aplicada apenas em situações excepcionais como a que estamos vivendo.

Durante a normalidade, devemos seguir utilizando as técnicas comuns, compatíveis com o “meio-termo” aristotélico entre o excesso e a falta. Ou, simplesmente, “as normas”. Nas palavras do ministro Eros Grau, relembrando os ensinamentos de Carl Schmitt, elas “só valem para as situações normais[38].

Essa criatividade interpretativa, como alguns preferirão chamar, não denota desapego ao texto constitucional. Ao contrário, assegura-lhe a capacidade de enfrentamento de questões mais sensíveis, que a própria CF/88 privilegia, no contexto atual.

A abertura para um recorte temporal de compatibilidade de normas com a lei fundamental tem respaldo ao menos no Título V que trata “da defesa do Estado e das instituições democráticas” em casos de calamidade pública, estado de defesa e do estado de sítio.

A lógica em relação aos julgamentos virtuais no STF seria a mesma. Em que pese o STF não ter fixado um marco temporal acerca da sua ampliação indiscriminada (e sem critérios objetivos), entendo que a medida – pensada para um contexto de exceção – poderia ser, de algum modo, compatível com a CF/88. Para tanto, as restrições devem ser no limite do estritamente necessário e de forma proporcional ao fim almejado.

Conclusão

Embora se pudesse antever a ruptura do modelo constitucional de deliberação, a pandemia empurrou-nos definitivamente para uma nova era. Os julgamentos virtuais, porém, desafiam profundas reflexões como a sua introdução por meio do RISTF.

Há muitas questões sensíveis em jogo, sobretudo os princípios da publicidade e da motivação das decisões judiciais; as garantias da ampla defesa e do contraditório; a indispensabilidade do advogado à administração da justiça; o interesse público à informação e, inclusive, a harmonia e a separação dos Poderes.

Espera-se do STF, órgão de cúpula do Poder Judiciário, guardião da CF/88, única ou última palavra no controle de constitucionalidade, qualidade e não quantidade. Afinal, “o Direito é a arte do bom e do justo”, como ensina Celso desde a época dos romanos.

Como produto humano (ars), o direito (ius) não extrai sua característica fundamental da estrutura formal da norma, como na concepção kelseniana, mas do seu conteúdo de valor (bonum et aequm)[39].

Essa estreita relação entre Direito, sociedade e moral é que deve orientar o uso de novas tecnologias no mundo jurídico. É preciso ser receptivo a elas, mas não perder de vista princípios, direitos e garantias fundamentais.

 


[1] Atende ao apelo da OAB no Ofício nº 42/2020-PCO, assinado pelo presidente Felipe Santa Cruz e pelo Presidente da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais Marcus Vinicius Furtado Coêlho.

[2] Altera a Resolução n. 642/19 sobre julgamentos em lista nas sessões presenciais e virtuais do STF.

[3] STF, Tribunal Pleno, AP 470 AgR-vigésimo sexto/MG, Relator Ministro JOAQUIM BARBOSA, Relator p/ acórdão Ministro ROBERTO BARROSO, DJe de 17/02/2014.

[4] Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/julgamento-eletronico-no-plenario-virtual-do-stf-reflexos-para-a-advocacia-22042020>.

[5] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A motivação das decisões judiciais como garantia inerente ao Estado de Direito. Temas de Direito Processual (segunda série). São Paulo: Saraiva, 1980, p. 95.

[6] O Plenário Virtual, que existe desde 2007, não foi criado por lei; está disciplinado nos arts. 322 e seguintes do RISTF. De todo modo, não é dele que se trata (embora algumas reflexões possam servir).

[7] Há quem defenda que os julgamentos virtuais estariam autorizados pela Lei nº 11.419/06, o que é facilmente refutado pela simples leitura do art. 1º, pois vincula o uso do meio eletrônico apenas à “tramitação de processos judiciais”, isto é, “comunicação de atos e transmissão de peças processuais”. Ademais, não usa – em nenhum dos 22 (vinte e dois) artigos – o termo “apreciar”, “julgar”, “julgamento”.

[8] “(…) são normas de direito processual as relativas às garantias do contraditório, do devido processo legal, dos poderes, direitos e ônus que constituem a relação processual, como também as normas que regulem os atos destinados a realizar a causa finalis da jurisdição”. STF, Tribunal Pleno, ADI 2970/DF, Relatora Ministra ELLEN GRACIE, DJ 12/05/2006.

[9] OLIVEIRA, Paulo Mendes de. O poder normativo dos tribunais. Regimentos internos como fonte de normas processuais. In Civil Procedure Review, v. 11, n. 2, mai-ago. 2020, p. 53.

[10] A criação da TV Justiça foi prevista pela Lei nº 10.461/02. A Rádio Justiça, por sua vez, tem origem em um documento assinado entre o STF, a Radiobrás e um órgão do Governo Federal da época.

[11] Disponível em: <https://www.jota.info/stf/supra/opacidade-plenario-virtual-zika-censura-escolas-12052020>.

[12] STF, Tribunal Pleno, MI 284/DF, Relator p/ acórdão Ministro CELSO DE MELLO, DJ 26/06/1992.

[13] A mudança veio com a Resolução nº 675/20, igualmente em razão de um pleito formulado pela OAB – Ofício nº 16/2020-PCO, assinado pelo presidente Felipe Santa Cruz.

[14] MENDES, Conrado Hübner. Onze ilhas. Folha de São Paulo, Opinião, 01 de fevereiro de 2010. <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz0102201008.htm>.

[15] VALE, André Rufino do. Argumentação constitucional: um estudo sobre a deliberação nos tribunais constitucionais. 2015. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade de Brasília, Universidad de Alicante, Brasília, 2015, p. 151; 347-348. <https://repositorio.unb.br/handle/10482/18043>.

[16] ZAGREBELSKY, Gustavo. Principios y votos. El Tribunal Constitucional y la política. Madrid: Trotta, 2008, p. 11.

[17] SARTORI, Giovanni. Constitutionalism: a preliminary discussion. In The American Political Science Review, vol. 56, n. 4, Dec. 1962, p. 853-864. <https://www.jstor.org/stable/1952788>.

[18] STF, Tribunal Pleno, ADPF 187/DF, Relator Ministro CELSO DE MELLO, DJe 29/05/2014.

[19] HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez. Sobre el derecho y el Estado democrático de derecho en términos de teoría del discurso. 6a Ed. Madrid: Editorial Trotta, 2010.

[20] ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da fundamentação jurídica. Tradução Zilda Hutchinson Schild Silva. Revisão técnica da tradução e apresentação à edição brasileira: Cláudia Toledo. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.

[21] ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teoria da argumentação jurídica. Tradução Maria Cristina Guimarães Cupertino. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016.

[22] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução: Nelson Boeira. 3ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.

[23] LUHMANN, Niklas. Law as a social system. New York: Oxford University Press, 2004.

[24] PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica. 3ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014.

[25] RAWLS, John. A lei dos povos e a ideia de razão pública revisitada. Lisboa: Edições 70, 2014.

[26] Cabe mencionar, no ponto, o clássico: CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Tradução Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Fabris, 1993.

[27] A própria sentença norte-americana que deu origem ao modelo de controle difuso (judicial review) – Marbury v. Madison – é considerada como aditiva sui generis.

[28] Não por acaso, surgiram termos como “supremocracia”. Nessa linha, leia-se: VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. São Paulo: Revista Direito GV, vol. 4, n. 2, jul-dez 2008, p. 441-463.

[29] BARROSO, Luís Roberto. A judicialização da vida e o papel do Supremo Tribunal Federal. Belo Horizonte: Fórum, 2018.

[30] NEVES, Marcelo. La concepción de Estado de derecho y su vigencia práctica en Suramérica, con especial referencia a la fuerza normativa de un derecho supranacional. In Heidelberg: Instituto Max Planck de Derecho Comparado y Derecho Público Internacional, 2009, p. 51-78.

[31] Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/publicacaoBOInternet/anexo/acervostf2.pdf>.

[32] Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/textos/verTexto.asp?servico=estatistica&pagina=competenciarecursal>.

[33] Pressupõe a combinação de valores associados a três critérios autônomos. Confira-se: TARUFFO, Michele. Verso la decisione giusta. Torino: G. Giappichelli Editore, 2020, p. 367.

[34] Já era possível rever a sua existência: RE 584247 QO/RR, Relator Ministro ROBERTO BARROSO, DJe 02/05/2017; RE 607607 ED/RS, Relator Ministro LUIZ FUX, DJe 12/05/2014.

[35] Sobre o tema: BARROSO, Luís Roberto; REGO, Frederico Montedonio. Como salvar o sistema de repercussão geral: transparência, eficiência e realismo na escolha do que o Supremo Tribunal Federal vai julgar. Revista Brasileira de Políticas Públicas. Brasília, v. 7, n. 3, dez. 2017, p. 696-713.

[36] Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-fenomeno-da-inconstitucionalidade-circunstancial-25042020>.

[37] Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/existe-uma-inconstitucionalidade-circunstancial-06052020>.

[38] STF, Tribunal Pleno, Rcl 3034 AgR/PB, Relator Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, DJ 27/10/2006.

[39] CARDILLI, Riccardo. Bona fides tra storia e sistema. Torino: G. Giappichelli Editore, 2014, p. 2.

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