Branca Cicci

Nas últimas semanas, diversas empresas deixaram de atuar em território russo em decorrência da guerra iniciada contra a Ucrânia. Os exemplos mais marcantes e divulgados foram de empresas norte-americanas, como McDonald’s e Coca-Cola, que saíram da Rússia por pressão do presidente estadunidense, Joe Biden.
Além dos EUA, países da União Europeia também aplicaram sanções econômicas e territoriais ao povo russo. As restrições vão desde a área mercantil, com limitação de comércio relativo ao ferro, aço, produtos de luxo, até efetivas suspensões de investimentos no setor de energia, proibições definitivas de importação e congelamento de ativos do Banco Central russo, entre outras.
Em resposta, a Rússia também aplicou medidas restritivas contra os EUA e países da UE. Entre elas estão a proibição de entrada do presidente Biden e outros membros do alto escalão norte-americano em território russo, mudança de contratos firmados com a Europa relativos ao fornecimento de gás, com alteração da moeda de pagamento para rublos, e expulsão de diplomatas norte-americanos que atuavam na Rússia.
Historicamente, não é a primeira vez que guerras ou diferenças políticas geram sanções econômicas para os países envolvidos. Pelo contrário: só os Estados Unidos, desde 1993, contabilizam ao menos 40 sanções econômicas aplicadas a 36 diferentes países. Exemplos são os embargos realizados a pessoas físicas e empresas pró-Maduro na Venezuela, os notórios embargos à Cuba, em vigor desde 1958, em razão do processo de nacionalização e independência do país. Mesmo na União Europeia, a prática também é comum: em 2018, o bloco parou de comercializar armas com Mianmar e aplicou sanções contra seus militares, por conta do golpe militar e subsequente repressão da democracia.
Na realidade, desavenças ideológicas e represálias contra a realização de guerras sempre foram motivos de sanções de diferentes naturezas. Mas mesmo que a prática seja comum, a pressão do governo dos EUA para que empresas norte-americanas saiam da Rússia desencadeou uma nova série de questionamentos no âmbito internacional, dessa vez de ordem ética, diante da possível saída de empresas farmacêuticas. Afinal, a indústria norte-americana sozinha é responsável por cerca de 47% do mercado farmacêutico global<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> e sua retirada da Rússia pode trazer imensuráveis consequências para a saúde e sobrevivência da população.
<h3>Os impactos das sanções para a saúde da população russa</h3>
As doenças mais comuns na Rússia são câncer, doenças cardiovasculares e derrame<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. O tratamento do câncer e a busca pela sua cura são alvo de inúmeras pesquisas e investimentos em inovação. Consequentemente, todos os medicamentos recém-descobertos são protegidos por patentes farmacêuticas, para garantir à empresa que os produz o devido retorno financeiro de seus investimentos e pesquisa.
Apenas para fins exemplificativos da importância do setor inovativo no Brasil, foram lançados 58 medicamentos referência de tratamento contra os diversos tipos de câncer nos últimos dez anos, sendo que cada uma das moléculas que compõem seus princípios ativos é exclusiva no mercado. Em média, são gastos US$ 1,2 bilhão<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> em cada pesquisa bem-sucedida de uma nova substância que chegará como medicamento de referência à população.
Nesse sentido, delimitada a importância das inovações tecnológicas e farmacêuticas no combate às doenças, as consequências das sanções ocidentais no fornecimento de medicamentos já podem ser sentidas pelo povo russo, que já enfrentam dificuldade em encontrar certos remédios nas farmácias. De acordo com um fórum online russo de funcionários do setor da saúde, desde o meio de março deste ano já se nota certa indisponibilidade de mais de 80 tipos de medicamentos, entre eles anti-inflamatórios, remédios gastrointestinais, antiepilépticos e anticonvulsivantes, além de antidepressivos e antipsicóticos. Não fosse o suficiente, recentemente a Rússia vem também estocando equipamentos para diagnóstico de câncer e radioterapia, mas não é claro por mais quanto tempo o país pode funcionar sem peças de reposição e manutenção de alto nível.
Devido ao alto índice de corrupção e falta de transparência dos dados internos da Rússia<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, fatores estes que devem se agravar com o andamento da guerra, é difícil mensurar a capacidade da indústria interna e sua capacidade de abastecimento. De acordo com dados disponibilizados pelo governo dos EUA, o sistema de saúde russo é financiado pelo governo federal, gastos sociais e o Fundo Federal de Seguros Obrigatórios (FOMS), sendo que este último é composto por empresas pagando por seus funcionários e o governo federal pagando pelos desempregados.
A partir de 2016, a Rússia adotou políticas de desenvolvimento da indústria farmacêutica interna, visando a aumentar em 46,5% a capacidade produtiva interna. Ainda assim, continuava sendo um mercado rentável para as indústrias norte-americanas, a partir de licenciamentos voluntários e transferências de tecnologia, além da exportação de medicamentos patenteados.
Na Ucrânia, por outro lado, os bombardeios russos podem interromper os tratamentos de saúde da população. O tratamento de HIV, que vem apresentando grande progresso, pode ser comprometido, já que diversas clínicas estão fechando ou diminuindo suas atividades em cidades ucranianas, além do potencial risco de desabastecimento de medicamentos antirretrovirais para a doença. Especialistas em doenças infecciosas entendem que a guerra pode desencadear uma crise de saúde pública na Ucrânia e em países vizinhos, com potenciais surtos de HIV, hepatite C, tuberculose e dependência de opioides.
De acordo com comunicado da EFPIA, IFPMA e PhRMA, a indústria farmacêutica tem obrigação humanitária de disponibilizar remédios e vacinas aos pacientes, não importando onde eles estão. O mesmo foi afirmado por Joe Wolk, diretor financeiro da Johnson &amp; Johnson.
A Pfizer expediu um comunicado em 14 de março, informando que continuará fornecendo medicamentos para a Rússia, pois entende que a pausa voluntária de fornecimento seria uma clara violação do princípio da empresa de colocar os pacientes em primeiro lugar. Entretanto, afirma que as relações comerciais com a Rússia não continuarão as mesmas, suspendendo novos testes clínicos no país e o recrutamento de novos pacientes para testes clínicos em vigor, além de doar todo o lucro da subsidiária russa às ajudas humanitárias ao povo ucraniano. Outras empresas atuantes no setor, como Bayer, Roche, AmerisourceBergen e Johnson &amp; Johnson também emitiram comunicados no mesmo sentido.
Além das manifestações das empresas farmacêuticas, a ACTO, associação atuante na organização de testes clínicos na Rússia, pediu a suspensão de inscrições em testes clínicos e novos projetos, e a Sociedade Europeia de Cardiologia cortou relações com médicos russos.
Assim, conclui-se que cabe às farmacêuticas decidir se seguirão as diretrizes da União Europeia e/ou do governo dos EUA de deixar a Rússia, ou se prosseguirão com os negócios. Conforme demonstrado acima, algumas empresas continuam negociando com a Rússia nos mesmos níveis prévios ao início da guerra e outras optaram por reduzir seu envolvimento de diversas formas, como a suspensão de publicidade, adiar novos investimentos ou pausar novos testes clínicos no país. De qualquer forma, os riscos e consequências aparentam ser sopesados pela indústria, que reconhece seu papel e importância para a população dependente de seus produtos.
Já a postura dos países ocidentais, que pressionam pela saída de empresas dos mais variados setores da Rússia sob o pretexto de condenar a guerra iniciada contra a Ucrânia, se mostra insensível ao povo russo e sua sobrevivência. Se a pressão persistir, cada vez mais ficará evidente a indivisibilidade entre Putin e o povo russo aos olhos do Ocidente, prejudicando toda a sociedade e criando ainda mais miséria sem grandes incentivos para o fim da guerra.
Ainda que os dados disponíveis não sejam 100% acurados, é indiscutível que nem todos os russos apoiam a guerra, sendo injusto que todos sofram com o desabastecimento de remédios necessários à sua sobrevivência. Vale ressaltar aqui a diferença entre os mais diversos tipos de desabastecimento e o impacto que se busca com eles. Os EUA e a UE buscam, através de suas sanções, isolar a economia russa do mercado global, fazendo com que a Rússia perca espaço no ambiente internacional para que esta não tenha outra opção a não ser parar a guerra e voltar a firmar acordos comerciais com o Ocidente, para ter acesso a exportações e tecnologia de ponta.
Entretanto, é diferente o corte de fornecimento de medicamentos dos que ocorrem em outros setores, como ferro, aço, fast food, refrigerante, óleo e gás. Não só por se tratar de uma guerra em que as pessoas necessitam de cuidados e medicamento, mas porque o povo russo continua lidando com doenças não relacionadas à guerra, conforme demonstrado acima.
Diferentemente do que acontece com um Big Mac ou uma Coca-Cola com gelo e limão, a população russa não consegue sobreviver sem fornecimento de medicamentos. A Declaração Universal dos Direitos Humanos prevê o direito à saúde como direito indissociável do direito à vida, e todos os países-membros da ONU buscam, como parte dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, a cobertura universal de saúde, isto é, promoção de saúde, até a prevenção, tratamento, reabilitação e cuidados paliativos.
Resta demonstrada, portanto, a importância do acesso à saúde e tratamentos como forma de desenvolvimento em escala mundial. A manutenção do fornecimento de medicamentos para a Rússia não é política, e sim questão humanitária e de saúde pública.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Conforme dados disponíveis em <a href="https://www.statista.com/statistics/266547/total-value-of-world-pharmaceutical-market-by-submarket-since-2006/">https://www.statista.com/statistics/266547/total-value-of-world-pharmaceutical-market-by-submarket-since-2006/</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Disponível em <a href="https://www.healthdata.org/russia">https://www.healthdata.org/russia</a>
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> <a href="https://www.interfarma.org.br/app/uploads/2021/04/data-protection-ptbr.pdf">https://www.interfarma.org.br/app/uploads/2021/04/data-protection-ptbr.pdf</a>
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Disponível em <a href="https://www.coe.int/en/web/corruption/completed-projects/enpi/newsroom-enpi/-/asset_publisher/F0LygN4lv4rX/content/russia-ranks-135thout-of-180-in-transparency-international-s-world-corruption-index?inheritRedirect=false">https://www.coe.int/en/web/corruption/completed-projects/enpi/newsroom-enpi/-/asset_publisher/F0LygN4lv4rX/content/russia-ranks-135thout-of-180-in-transparency-international-s-world-corruption-index?inheritRedirect=false</a>

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JOTA

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