Beatriz de Sousa Gonçalves

Qualquer cidadão do Estado do Rio de Janeiro que tenha acompanhado os últimos meses de notícias jornalísticas tem se deparado com um cenário bastante usual: a exposição diária das dificuldades de gestão das grandes concessões estaduais no período pós-pandêmico. Se o cobertor era curto antes da pandemia da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/covid-19">Covid-19</a>, a situação que se seguiu trouxe à tona desequilíbrios econômico-financeiros absolutamente complexos. Afinal de contas, antes que alguém diga que “é só colocar mais dinheiro público na concessão”, precisamos lembrar que o Estado do Rio de Janeiro ainda está inserido no Regime de Recuperação Fiscal – o que, em regra, coloca amarras muito mais duras no aumento de despesas para o ente público.
Nesse ambiente de dificuldades financeiras e, consequentemente, operacionais, não é de se espantar que já se escute a bons sons – sobretudo nos jornais que cobrem o dia a dia do carioca – que concessionárias de serviços públicos têm demonstrado o interesse de “entregar” a concessão de volta ao estado. Veja bem, talvez no telespectador que não conheça o funcionamento da legislação administrativa essa notícia não cause tamanho espanto. Qual empresário, em perfeito juízo, gostaria de permanecer exercendo uma atividade empresarial que não dá lucro ou, pior que isso, que pode gerar a sua responsabilização pessoal pela qualidade precária do serviço? Obviamente, nenhum que não queira perder dinheiro.
O problema, porém, é que não estamos falando de vida comum, quaisquer serviços e empresas desvinculadas de um propósito maior. Precisamos lembrar que, ao tratarmos de concessões comuns, necessariamente estamos lidando com serviços públicos, ou seja, serviços de extrema importância para a coletividade e que, por isso, atraem a incidência de um regime público (em que os interesses que devem prevalecer são públicos, em detrimento dos puramente privados).
Ademais, há de se reconhecer que, ainda que o Poder Judiciário brasileiro tenha se encantado pela noção de normatividade de princípios, assim como a doutrina administrativista mais moderna tenha flexibilizado bastante a noção tradicional de exorbitância da Administração Pública em suas relações contratuais, é bastante difícil – ou pelo menos deveria ser – conseguir superar a noção basilar de que a Administração Pública tem a sua atuação limitada pela lei. Perceba-se que, mesmo que se compreenda que a autorização que a lei dá ao atuar da Administração Pública pode ser expressa ou implícita, em se tratando desta última hipótese, ainda é imperativo que, ao menos, a lei delineie quais são os postulados que devem ser seguidos pela Administração Pública<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Nessa esteira, se formos analisar as hipóteses que a <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8987cons.htm">Lei Federal 8.987/1995</a> (“Lei Geral de Concessão”) elenca como formas de extinção da concessão<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, podemos facilmente observar que a “devolução” não está listada no dispositivo em questão. Além dessa ausência eloquente na Lei Geral de Concessão, deve-se ter em mente que a noção de “devolução” de concessões somente teve espaço na rotina administrativa recentemente, com a edição da Medida Provisória 752/2016, que veio a ser convertida na Lei 13.448, de 5 de junho de 2017 (“Lei de Relicitação”).
A Lei de Relicitação, portanto, em que pese tenha acrescido uma hipótese de rescisão amigável àquelas previstas na Lei Geral de Concessão e, em certa medida, ter trazido um possível desembaraço à gestão de concessões problemáticas, precisa ser interpretada de acordo com os limites fixados em seu art. 1º, qual seja, (i) a de ser um mecanismo limitado aos contratos de concessão dos setores rodoviário, ferroviário e aeroportuário, qualificados no âmbito do Programa de Parceria de Investimentos (PPI) e, sobretudo, (ii) a de ser um instrumento aplicável apenas à Administração Pública federal.
Não por outro motivo, me parece que, por mais que possa existir interesse mútuo na “devolução” de concessões pelas concessionárias de serviço público ao Estado do Rio de Janeiro, tal situação não encontra respaldo normativo-jurídico no âmbito estadual, já que, até o presente momento, não foi editada qualquer lei que preveja hipóteses de relicitações estaduais. Assim, tão certo como dois mais dois são quatro, sem lei autorizativa, não há que se pretender extrapolar o rol exaustivo do art. 35 da Lei Geral de Concessão.
No mais, se o interesse político for o de aproveitar a lacuna normativa e transformá-la em uma janela de oportunidade, parece interessante que o Estado do Rio de Janeiro busque desde logo aprimorar o exemplo federal, tentando concretizar a celeridade almejada pelo modelo proposto pela União, mas que não tem sido efetivada<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Se o Rio de Janeiro quiser superar positivamente a premissa de que “nada se cria, tudo se copia”, uma boa orientação seria a de, ao editar ato normativo regulamentador da legislação estadual, se preocupar principalmente em (i) estabelecer parâmetros objetivos para configurar os casos em que seja possível relicitar uma concessão (ex.: fixar os setores em que a relicitação seria possível, determinar a competência da Secretaria de Estado responsável pela licitação original para gerir o processo de relicitação; determinar que a participação da Agência Reguladora se limita à apuração de desequilíbrio econômico-financeiro do contrato ou, ainda, prever um patamar mínimo de desequilíbrio econômico-financeiro em favor da concessionária para que se possa cogitar da relicitação); (ii) fixar um prazo determinado para a conclusão do processo administrativo de relicitação; e (iii) não se admitir prorrogações sucessivas desse prazo.
Ao fim e ao cabo, admitir que as concessões são contratos complexos e que, por isso mesmo, demandam soluções complexas é apenas o ponto de partida. Se apropriar da experiência comparada da União e aprimorar o modelo de relicitação federal, por sua vez, parece ser o passo mais adequado e proveitoso ao Estado do Rio de Janeiro, que, por meio da edição de regulação específica, pode afastar dúvidas sobre a juridicidade da “devolução” de concessões problemáticas, melhorar a prestação do serviço público e, sobretudo, concretizar a noção de efetividade da gestão da coisa pública – que, sejamos honestos, mesmo que sempre seja lembrada, tem dificuldades reais de ser alcançada.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> CAVALCANTI, Francisco de Queiroz Bezerra. A reserva de densificação normativa da lei para preservação do princípio da legalidade. In: BRANDÃO, Cláudio; CAVALCANTI, Francisco; ADEODATO, João Maurício. Princípio da legalidade: da dogmática jurídica à teoria do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> “Art. 35. Extingue-se a concessão por: I - advento do termo contratual; II - encampação; III - caducidade;
IV - rescisão; V - anulação; e VI - falência ou extinção da empresa concessionária e falecimento ou incapacidade do titular, no caso de empresa individual”.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> VORONOFF, Alice; TEIXEIRA, Jeaninny. Relicitação, promessa não realizada e a busca de alternativas pela ANTT. Disponível em: &lt; http://www.gbalaw.com.br/relicitacao-promessa-nao-realizada-e-a-busca-de-alternativas-pela-antt/&gt;. Acesso em: 22 mai. 2023.

Comunidade do Vidigal, no Leblon, na zona sul do Rio de Janeiro

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JOTA

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