Paulo Fernando Pinheiro Machado

<blockquote class="jota-article__quote">Hoy resulta que es lo mismo ser derecho que traidor 
Ignorante, sabio o chorro, pretencioso estafador 
Todo es igual, nada es mejor 
Lo mismo un burro que un gran profesor 
- Enrique Santos Discépolo, “Cambalache”.</blockquote>
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O curso da história normalmente é marcado por alterações fluidas. Na maioria das vezes, as mudanças se operam de maneira lenta e quase imperceptível, e somente as percebemos quando olhamos para trás e nos surpreendemos com o trajeto percorrido. Como quando nos deparamos com uma foto antiga e o estilo da roupa e dos cabelos nos parece inexoravelmente atado às brumas do tempo.
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Em alguns momentos específicos, contudo, o curso da história é radicalmente alterado por uma ruptura drástica, uma revolução, uma guerra, uma epidemia, evento singular, enfim, que, com data e hora marcadas, altera para sempre o mundo em que vivemos. A deposição do imperador Rômulo Augusto em 4 de setembro de 476, a Queda de Constantinopla em 29 de maio de 1453 e a Tomada da Bastilha em 14 de julho de 1789 são exemplos de momentos singulares, cujos eventos do dia marcaram o fim de uma era e o início de outra. A história é repleta de cisnes negros.
E nesta semana completaram-se 50 anos da ocorrência de um outro cisne negro: o “Choque de Nixon”. Em 15 de agosto de 1971, o então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, anunciou a retirada unilateral dos EUA do Padrão Ouro-Dólar, isto é, a partir daquele momento, o dólar norte-americano não mais seria convertido em ouro, passando a valer apenas “fugazis”, que é como Matthew McConaughey denomina um elemento para o qual não há referência na tabela periódica. O “Choque de Nixon”, cara leitora, iniciou a primeira experiência humana em que a unidade monetária de referência não está expressa em uma commodity. Trata-se de uma era de instabilidade monetária e de especulação financeira como jamais visto na história da humanidade. Era o início do cambalache geral.
O Sistema de Bretton Woods era o arranjo financeiro internacional acordado ao final da Segunda Guerra Mundial. Em julho de 1944, representantes das 44 nações aliadas durante a guerra reuniram-se para redesenhar o sistema financeiro e monetário internacional. O Acordo de Bretton Woods buscava garantir a estabilidade do sistema, pela adoção de regimes cambiais fixos, pelo qual as moedas nacionais, atreladas ao ouro, não variariam para além de uma banda de 1%. Esse sistema era garantido por três instituições-chave: o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) e o Banco Mundial, que atuariam para resolver problemas temporários de balanço de pagamentos dos estados-parte. Note, cara leitora, que, na Conferência de Bretton Woods, a política norte-americana era a da defesa intransigente do padrão-ouro e da utilização do dólar como moeda de referência internacional. Os EUA, na época, detinham cerca de dois terços das reservas mundiais de ouro.
Como sói acontecer, cara leitora, o feitiço voltou-se contra o feiticeiro. Como moeda de referência internacional, o dólar padecia do “Dilema de Triffin”, segundo o qual haveria um conflito de interesse entre a sua política monetária interna e a sua política monetária externa. Explico. Uma moeda de referência internacional possui uma demanda externa maior do que a demanda interna da sua economia-base, forçando-a a uma política de deficits em sua conta de transações correntes e a um desequilíbrio geral no seu balanço de pagamentos. Isso porque, em um padrão de convertibilidade fixo ao ouro, os EUA teriam de imprimir uma quantidade maior de dólares para atender a sua demanda externa, o que, atrelado ao metal de referência, fatalmente faria com que o dólar ficasse artificialmente sobrevalorizado, incentivando, por sua vez, uma corrida internacional às reservas de ouro dos EUA, solapando a base mesma do sistema. Era um típico caso de se ficar o bicho come, se correr o bicho pega.
Por essa razão, durante a conferência mesma de Bretton Woods, vários economistas, com John Maynard Keynes à frente, defendiam a adoção de uma moeda neutra de referência, o “Bancor”, emitida por um banco central internacional, proposta que, como se sabe, acabou não adotada. O fundamental é que, aliado aos deficits externos crescentes dos EUA, com as guerras da Coréia e do Vietnã e com o crescente inchaço da máquina estatal interna, o “Dilema de Triffin”, ao final dos anos 1960, levou a uma grave crise de confiança no dólar como moeda de referência internacional. Ninguém acreditava que os EUA fossem colocar as contas em dia e todos corriam para trocar os dólares supervalorizados por ouro. Uma crise financeira internacional, com inflação em alta, tensão nas bolsas e disparada do ouro se anunciava desde o início de 1971. Era a crônica de uma morte anunciada.
Foi nesse contexto, então, que em um domingo à noite, no dia 15 de agosto de 1971, o presidente Richard Nixon entrou em cadeia nacional de televisão, interrompendo a transmissão do popular programa “Bonanza”. Ironias da história. Cômico não fora trágico. Repare, cara leitora, que o presidente Nixon, sem a menor cerimônia, culpou o resto do mundo pela galopante inflação norte-americana e anunciou a suspensão “temporária” (sim, é isso mesmo) da conversibilidade do dólar em ouro, além de uma taxa extra de 10% em todas as importações e de controles de preços e salários. Para o professor Gerald Epstein, em bom português, foi um baita de um calote. Mas não um calote comum, e, sim, tecnicamente, rolagem de ajustes estruturais da economia doméstica norte-americana e a socialização internacional dos custos dessa rolagem.
E não é só isso. A rolagem que era “temporária”, tornou-se “permanente”. O “Choque de Nixon” iniciou a era da especulação financeira que tem submetido a economia internacional a crises frequentes, aprofundando os problemas estruturais que não foram resolvidos em 1971. Mais especificamente, o “Choque de Nixon” inaugurou uma era marcada pela transição do sistema capitalista, de um modelo baseado na produção e na poupança, para outro modelo baseado no endividamento e no consumo. Isso porque, em um sistema monetário de livre-flutuação cambial, ou de fiat currencies, o sistema somente se sustenta se houver um crescimento constante e infinito, isto é, um processo inflacionário sem fim. É como se em 1971 o balão da economia internacional houvesse furado e a comunidade internacional resolvesse enfrentar o problema não construindo um outro balão, mas assoprando mais forte do que o ar que vazava pelo buraco. Tem sido assim desde então. Haja fôlego.
Vivemos, cara leitora, em uma enorme bolha. Antigamente, as pessoas poupavam, isto é, guardavam dinheiro porque ele valia alguma coisa, mais especificamente, ouro. Guardavam e investiam em produção e em bens de raiz. Sempre fora assim. No cambalache atual, ninguém quer guardar dinheiro, porque ele não vale nada e a inflação vai devorá-lo. Todos os agentes, assim, precisam trocar suas moedas nacionais, rapidamente, em investimentos que são em sua maioria especulativos. “Savers are losers”. Daí a enorme popularização dos fundos e investimentos em bolsa de valores, considerados veículos para experts até os anos 1960. Essa a razão da enorme volatilidade e das constantes e frequentes crises a que o sistema está submetido.
Esse quadro de tensões se agrava diante da atual pandemia e da maior injeção de liquidez monetária da história da humanidade que foi efetivada nos últimos 18 meses. Os quatro principais bancos centrais do mundo injetaram cerca US$ 7,8 trilhões, expandindo em cerca de 50% o conjunto dos seus balanços de pagamentos desde o início de 2021. Trata-se da maior bolha financeira da história humana. As bolsas estão em altas históricas, os imóveis estão em altas históricas, as commodities estão em altas históricas, ao passo em que os salários, a produtividade e a velocidade de circulação da moeda estão em baixas históricas. Qual é a mágica? Rolagem. Empurrar o ajuste para a posteridade. Como diria o saudoso Groucho Marx, “mas por que eu deveria me preocupar com a posteridade? O que a posteridade fez por mim?”
Completaram-se, enfim, no último dia 15, meio século de cambalache financeiro internacional, com a maior bolha global da história da humanidade. Obra do velho “Tricky Dicky”. Em algum momento a bolha vai estourar e, no longo prazo, alguém vai ter que pagar a conta. Mas, como diria Keynes, “no longo prazo estaremos todos mortos”. Parem o mundo que eu quero descer.
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