Bruno Torrano

Edilson Vitorelli sustenta que o art. 20 da LINDB adere a um tipo de consequencialismo pluralista e moderado<a href="#_edn1" name="_ednref1">[i]</a>. Se isso for verdade – e acredito que seja –, então uma conclusão preliminar parece inafastável: a distinção entre princípios e consequências não é de categorias em necessária oposição, e sim de categorias complementáveis.
Ouso, todavia, ir além: em verdade, não existe argumento consequencialista desprovido de uma base principiológica, assim como não existe argumento de princípio desprovido de uma base consequencialista. Consequências práticas são efeitos que sempre podem ser reconduzidos a princípios institucionalizados que informaram a tomada de decisão em um primeiro momento.
Essas consequências, empíricas e substantivas, têm naturezas diversas: de cunho econômico, social, político etc. A grande questão é saber quais são as consequências práticas permitidas dentro do âmbito significativo e normativo de um princípio institucionalizado – e quais não são. Mesmo as consequências práticas não-permitidas, todavia, derivam de princípios. A diferença é que estes outros princípios não fundamentam, ou não podem fundamentar, no caso concreto, a decisão tomada.
<a href="https://conteudo.jota.info/risco-politico"><img class="aligncenter wp-image-244336 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico.png" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
Nessa leitura conciliatória, os termos “princípio” e “consequência” não podem ser encarados de forma monocular. A complexidade inerente às práticas jurídicas demanda que reconheçamos que magistrados que julgam processos criminais, subsidiados pelo princípio da legalidade estrita, não devem agir da mesma forma que magistrados que julgam, por exemplo, processos coletivos, subsidiados pelos princípios da não-taxatividade e da atipicidade, ou, ainda, casos de direito de família ou de direito da criança e do adolescente, subsidiados pelo princípio da afetividade e do melhor interesse da criança e do adolescente. Suas ações devem partir de técnicas decisórias capazes de refletir as necessidades e interesses que estão em jogo<a href="#_edn2" name="_ednref2">[ii]</a>.
Há “camadas” de diferentes princípios que, prima facie, aceitam confirmações por “camadas” correspectivas de consequências. Vejamos:
<ul>
<li>Princípios de Entrincheiramento: há princípios jurídicos que objetivam conservar certas práticas e tradições contra eventuais metas coletivas (v.g. princípio da legalidade estrita no Direito Penal; princípio da legalidade tributária; princípio da atipicidade no Direito Eleitoral etc.). Em regra, apenas consequências que reforcem esse entrincheiramento são compatíveis com tais princípios (consequências de contenção do poder estatal).</li>
<li>Princípios de Proteção Institucional e Social: há princípios jurídicos que objetivam proteger ou fomentar instituições lato sensu como o mercado (princípios da livre iniciativa e da livre concorrência), a democracia, a separação entre as esferas pública e privada, a higidez do patrimônio público lato sensu e a confiabilidade das instituições (princípio da eficiência, princípio da economicidade, princípio republicano, princípios sensíveis, princípio democrático etc.).</li>
<li>Princípios de Inovação: há princípios que objetivam permitir ou fortalecer (i) metas coletivas, (ii) flexibilização de regras jurídicas, (iii) formas atípicas de resolução de conflitos, (iv) evoluções da moral social (v.g. mutação constitucional) ou (v) avanços tecnológicos (v.g. inteligência artificial). A inovação pode ocorrer não apenas dentro da seara do processo judicial, como também implicar a desjudicialização de litígios, com o propósito construir novos vocabulários e práticas destinadas à efetividade das normas constitucionais (v.g. princípio da operabilidade no Direito Civil, princípio da solidariedade social, princípios da não-taxatividade e da atipicidade no Processo Coletivo, princípio do mínimo existencial etc.). Tais princípios são, prima facie, incompatíveis com consequências de contenção.</li>
<li>Princípios de Estabilização Normativa: há princípios que objetivam assegurar expectativas sociais e a estabilidade de decisões anteriormente tomadas, ainda que possam ser reputadas equivocadas (v.g. princípio da segurança jurídica, princípio da confiança legítima, stare decisis ). Encaixam-se, aqui, por exemplo, o sistema de precedentes vinculantes e as teses de modulação de efeitos do controle de constitucionalidade baseadas no argumento consequencialista de que a restituição do status quo ante normativo, mediante aplicação rígida do princípio da nulidade, implicaria caos social, econômico ou jurídico.</li>
<li>Princípios de Equidade lato sensu: há princípios que objetivam estabelecer um equilíbrio entre o conceito de justiça e o conceito de segurança jurídica, mediante balanceamento de interesses e valores relativos aos jogos de linguagem do caso concreto (v.g. princípio da dignidade da pessoa humana em certas hipóteses, princípio da afetividade no Direito de Família, princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, princípio da equidade, tese da derrotabilidade etc.). Não raro, tais princípios permitem o desenvolvimento criativo do direito por parte de seus aplicadores, com o estabelecimento de exceções a regras aparentemente intransigentes, mormente quando esse desenvolvimento objetive a proteção de direitos.</li>
</ul>
Mas, afinal, com quais tipos de consequências esses princípios podem ser correspectivos? Para os presentes fins, valem as “sete esferas de consequências” mencionadas por Edilson Vitorelli<a href="#_edn3" name="_ednref3">[iii]</a>:
1) Microconsequências: referem-se aos destinatários diretos da decisão; 2) Macroconsequências: referem-se a pessoas ou grupos que serão impactados, mas não são destinatários diretos. 3) Distribuição temporal: predição das consequências a curto, médio ou longo prazo; 4) Maximização do bem-estar à luz das alternativas: grau de promoção do bem-estar do grupo social e dos indivíduos afetados, em comparação com alternativas viáveis; 5) Representatividade: desejabilidade do ato pelo grupo social por ele afetado; 6) Distribuição social: repartição das consequências sobre os grupos sociais afetados, com especial atenção aos grupos vulneráveis; 7) Economicidade: ponderação sobre as consequências econômicas da decisão em face de alternativas, de direitos materiais do grupo social afetado pelo ato, e do orçamento disponível.
Cada uma dessas espécies de consequências pode, a depender do contexto, interlaçar-se às categorias de princípios antes expostas. Na prática jurídica, todavia, a pertinência temática entre quais são os princípios aplicáveis e quais são as respectivas consequências não raro se mostra nebulosa ou mesmo inconclusiva. Caso, conforme perspicaz crítica de Stanley Fish<a href="#_edn4" name="_ednref4">[iv]</a>, não queiramos ser como Ronald Dworkin, isto é, uma líder de torcida do direito, calha reconhecer que esforços teóricos são insuficientes para antecipar a complexidade real que exsurge das admissíveis combinações entre princípios e consequências<a href="#_edn5" name="_ednref5">[v]</a>.
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O Sem Precedentes desta semana analisa <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/bolsonaro-indica-kassio-nunes-stf-01102020" target="_blank" rel="noopener noreferrer">surpreendente indicação</a> de Kassio Nunes Marques, hoje desembargador do Tribunal Regional Federal da Primeira Região (TRF1), para o Supremo Tribunal Federal (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">STF</a>). Ouça:
https://www.youtube.com/watch?v=6UbopF1SKqA&amp;feature=emb_title
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<a href="#_ednref1" name="_edn1">[i]</a> Cf. VITORELLI, Edilson. A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro e a ampliação dos parâmetros de controle dos atos administrativos discricionários: o direito na era do consequencialismo. In: Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 279, n. 2, p. 79-112, maio/ago, 2020. Registre-se que autores da corrente filosófica denominada “Deontologia Consequencializada” sustentam ideia parecida com a defendida neste meu artigo: instituições deontológicas permitem interpretações em termos de consequências (BETZLER, Monika; SCHROTH, Jörg. The Good of Consequentialized Deontology. In: SEIDEL, Christian (ed.). Consequentialism: New Directions, New Problems. p. 122. New York: Oxford University Press, 2019.). De toda forma, ergo a tese da inseparabilidade entre princípios e consequências sobre o ensinamento de Stanley Fish de que não existem práticas e instituições humanas, como o direito, sem princípios sedimentados. FISH, Stanley. Doing what comes naturally. Durham and London: Duke University Press, 1989, p. 13.
<a href="#_ednref2" name="_edn2">[ii]</a> O raciocínio sobre complexidade das técnicas decisórias tem como base a ideia de “economia da confiança”. Sobre o assunto cf. SHAPIRO, Scott. Legality. Cambridge: Harvard University Press, 2011; TORRANO, Bruno. Direito como planejamento compartilhado: a teoria de Scott Shapiro. In: TORRANO, Bruno; OMMATI, José Emílio Medauar. Positivismo jurídico no século XXI. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019; TORRANO, Bruno. Democracia e Respeito à Lei: entre Positivismo Jurídico, Pós-Positivismo e Pragmatismo. 2. Ed. Belo Horizonte: Fórum, 2019.
<a href="#_ednref3" name="_edn3">[iii]</a> VITORELLI, Edilson. Ob. Cit. p. 93-94.
<a href="#_ednref4" name="_edn4">[iv]</a> “Se a pretensão de Dworkin é a de estar conferindo direções à tomada de decisão judicial, então se trata de uma pretensão fracassada, e o melhor que ele consegue ser é uma líder de torcida (Vamos lá, colegas, façam o seu melhor)” (FISH, Stanley. Ob. Cit. p. 392).
<a href="#_ednref5" name="_edn5">[v]</a> A complexidade do direito não pode ser plastificada em páginas de livros. Os tipos de princípios acima delineados podem, em casos concretos, colidir. Havendo colisão, haverá necessidade de balancear não apenas esses princípios, como também as consequências correspectivas. No mais, tendo como premissa essa viabilidade de colisão, nada do que foi exposto impede, para citar dois exemplos, o desenvolvimento de teses como a dos professores Douglas Fischer e Eugenio Pacelli, no sentido da aceitação excepcionalíssima de prova ilícita no processo penal, à luz do princípio da proporcionalidade, ou como a de que a execução antecipada da pena criminal é viável, ao fundamento de ser impensável, à luz da Constituição e de qualquer filosofia política normativa, um sistema penal ineficaz.

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JOTA

Os termos 'princípio' e 'consequência' não podem ser encarados de forma monocular

Art. 20 da LINDB: princípios com consequências e vice-versa

Os termos 'princípio' e 'consequência' não podem ser encarados de forma monocular