Umberto Abreu Noce

Encerrado o pleito eleitoral com vitória da chapa de oposição, a única certeza que se tem é que o governo a tomar posse em 1º de janeiro terá muito trabalho para, além das tarefas óbvias, restaurar a civilidade política no país. Dito isso, há um desafio concreto que me parece dos mais prementes: o de desarmar a população civil. Falo da retirada de circulação de milhões de armas de fogo, cujo registro, posse e porte foram ilegalmente concedidos nos últimos quatro anos.  
Durante o mandato do atual governo o <a href="https://www.cartacapital.com.br/sociedade/registro-de-armas-de-fogo-cresce-474-no-governo-bolsonaro/">registro de armas de fogo cresceu 474%, passando de 638 mil para 1,5 milhão</a>. <a href="https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2022/08/31/em-3-anos-numero-de-armas-registradas-por-cacadores-colecionadores-e-atiradores-quase-triplica-e-chega-a-1-milhao.ghtml">Estima-se haver mais de 1 milhão de autodeclarados Colecionadores, Atiradores e Caçadores (CACs</a>) — número superior ao contingente de todas as forças policiais do Brasil somadas —, cujas armas por mais de uma vez foram parar nas <a href="https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2022/07/25/politica-de-bolsonaro-permite-que-pcc-compre-armas-legalmente-diz-jornal.htm">mãos do crime organizado</a>. O Exército brasileiro, muito ocupado em fiscalizar urnas eletrônicas, <a href="https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2022/09/15/exercito-diz-nao-saber-tamanho-do-arsenal-de-cacs-em-cada-cidade-brasileira.htm">admitiu não ter conhecimento da quantidade de armas em circulação</a>.  
Não faltam estudos a comprovar a relação direta entre o aumento da criminalidade e a circulação de armas de fogo e, apesar da propaganda governamental e do lobby da indústria, <a href="https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2022/05/5011954-datafolha-72-dos-brasileiros-nao-acreditam-que-armas-trazem-mais-seguranca.html">pesquisas mostram que a maioria da população brasileira rechaça a política de armar a sociedade civil</a>. Tanto que o governo recém-eleito teve o desarmamento como plataforma de campanha e a equipe de transição demonstra que atuará para retirar armas de circulação. A pergunta é se há fundamento jurídico para tal.
A Lei 10.826/03, conhecida como <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/estatuto-do-desarmamento">Estatuto de Desarmamento</a>, dispõe em seu artigo 4º que o interessado em adquirir arma de fogo de uso permitido deverá, dentre outros, declarar a efetiva necessidade da sua aquisição. Como o Estatuto é do Desarmamento, e não do Armamento, tradicionalmente as normas infralegais que regularam esta lei dispunham que a efetiva necessidade deveria ser comprovada de forma inequívoca pelo requerente.  
Ocorre que a partir de 2019 as normas editadas sobre o tema passaram a dispor que esta efetiva necessidade deveria ser interpretada como presumivelmente verdadeira, invertendo o ônus da prova na relação entre particular e poder público. Em outras palavras, a alegação do indivíduo acerca da necessidade de possuir uma arma deveria ser encarada como verdadeira e caberia ao Estado, caso não concedesse a autorização, comprovar que o requerente não possuía razões para adquirir armamento.  
A ilegalidade desta inversão foi prontamente reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), como também diversas outras medidas relacionadas com o “escancaramento da situação das armas”, frase dita pelo próprio chefe do Poder Executivo em fatídica reunião ministerial tornada pública. Dentre elas, <a href="https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=464027&amp;ori=1">destaque-se algumas:</a> 
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<li data-leveltext="%1)" data-font="Calibri" data-listid="1" data-list-defn-props="{&quot;335552541&quot;:0,&quot;335559684&quot;:-1,&quot;335559685&quot;:1069,&quot;335559991&quot;:360,&quot;469769242&quot;:[65533,4],&quot;469777803&quot;:&quot;left&quot;,&quot;469777804&quot;:&quot;%1)&quot;,&quot;469777815&quot;:&quot;hybridMultilevel&quot;}" aria-setsize="-1" data-aria-posinset="1" data-aria-level="1">Autorização para a prática de tiro recreativo em entidades e clubes de tiro, independentemente de prévio registro dos praticantes; </li>
<li data-leveltext="%1)" data-font="Calibri" data-listid="1" data-list-defn-props="{&quot;335552541&quot;:0,&quot;335559684&quot;:-1,&quot;335559685&quot;:1069,&quot;335559991&quot;:360,&quot;469769242&quot;:[65533,4],&quot;469777803&quot;:&quot;left&quot;,&quot;469777804&quot;:&quot;%1)&quot;,&quot;469777815&quot;:&quot;hybridMultilevel&quot;}" aria-setsize="-1" data-aria-posinset="1" data-aria-level="1">Comprovação pelos CACs da capacidade técnica para o manuseio de armas de fogo por laudo de instrutor de tiro desportivo; </li>
<li data-leveltext="%1)" data-font="Calibri" data-listid="1" data-list-defn-props="{&quot;335552541&quot;:0,&quot;335559684&quot;:-1,&quot;335559685&quot;:1069,&quot;335559991&quot;:360,&quot;469769242&quot;:[65533,4],&quot;469777803&quot;:&quot;left&quot;,&quot;469777804&quot;:&quot;%1)&quot;,&quot;469777815&quot;:&quot;hybridMultilevel&quot;}" aria-setsize="-1" data-aria-posinset="1" data-aria-level="1">Comprovação pelos CACs da aptidão psicológica para aquisição de arma mediante laudo fornecido por psicólogo, dispensado o credenciamento na Polícia Federal; </li>
<li data-leveltext="%1)" data-font="Calibri" data-listid="1" data-list-defn-props="{&quot;335552541&quot;:0,&quot;335559684&quot;:-1,&quot;335559685&quot;:1069,&quot;335559991&quot;:360,&quot;469769242&quot;:[65533,4],&quot;469777803&quot;:&quot;left&quot;,&quot;469777804&quot;:&quot;%1)&quot;,&quot;469777815&quot;:&quot;hybridMultilevel&quot;}" aria-setsize="-1" data-aria-posinset="1" data-aria-level="1">Prática de tiro desportivo por adolescentes a partir dos 14 nos de idade completos; </li>
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<li data-leveltext="%1)" data-font="Calibri" data-listid="1" data-list-defn-props="{&quot;335552541&quot;:0,&quot;335559684&quot;:-1,&quot;335559685&quot;:1069,&quot;335559991&quot;:360,&quot;469769242&quot;:[65533,4],&quot;469777803&quot;:&quot;left&quot;,&quot;469777804&quot;:&quot;%1)&quot;,&quot;469777815&quot;:&quot;hybridMultilevel&quot;}" aria-setsize="-1" data-aria-posinset="1" data-aria-level="1">Porte simultâneo de até duas armas de fogo por cidadãos. </li>
</ol>
As decisões do STF e sobre o tema demonstram de forma clara que os decretos do atual presidente são contrários à lei que visava a regular, qual seja, o Estatuto de Desarmamento. Por arrastamento, ofendeu-se também a Constituição Federal.
Assim, vislumbro três hipóteses relativamente simples e que trariam fundamento jurídico suficiente para reanálise das autorizações para posse e porte de arma que tenham sido concedidas neste período e, caso verificado ter sido concedidas contra legem, sejam extintas. As hipóteses mencionadas seriam a anulação, revogação ou caducidade destas autorizações. 
Sabe-se que a autorização é administrativa e discricionária, portanto precária e cuja reapreciação insere-se no juízo de mérito do administrador público. Não bastasse, é sabido que normas infralegais devem observar os limites da lei que visam a regular, devendo coerência com as finalidades do estatuto regulamentado. 
Neste sentido, é possível dizer que as previsões contidas nos decretos e portarias editadas desde 2019 são ilegais. Por consequência, todas as autorizações concedidas com base nestas normas também o são. Considerando que atos ilegais não originam direitos (súmula 473 do STF), a anulação destas autorizações teria efeito ex tunc, a dispensar inclusive qualquer dever de indenização.  
Todavia, como as decisões do STF ainda não julgaram o mérito dos decretos e portarias, e considerando os impactos da declaração de nulidade pela própria Administração Pública, resta disponível a possibilidade de revogação destas autorizações. Como ato discricionário, estas autorizações são manifestações unilaterais e precárias da Administração Pública, podendo a qualquer tempo serem revogadas, conforme juízo de mérito da autoridade competente.  
Sendo assim, à luz de mudanças de circunstâncias fáticas ou jurídicas, é dado à autoridade pública revisitar estas autorizações e, considerando não haver mais conveniência e/ou oportunidade para sua manutenção, revogá-las. Por certo que a revogação possui efeito ex nunc, de maneira que a recompra das armas parece ser medida mais consentânea com o ordenamento jurídico.  
Por fim, caso o governo eleito cumpra suas promessas e edite normas mais rigorosas a respeito do tema, haverá extinção dos atos autorizativos por caducidade. A caducidade de ato ocorre quando norma nova torna incompatível a manutenção de um ato administrativo editado sob égide de norma antiga. Ou seja, independe se o ato era legal em sua origem, o certo é que em razão da nova norma não há mais como o ato ser mantido no mundo jurídico, razão pela qual é extinto.  
Dessa forma o professor Rafael Oliveira explica a caducidade: 
<blockquote class="jota-article__citation">"A caducidade é a extinção do ato administrativo quando a situação nele contemplada não é mais tolerada pela nova legislação. O ato administrativo, no caso, é editado regularmente, mas torna-se ilegal em virtude da alteração legislativa. Vale dizer: a caducidade justifica-se pela ilegalidade superveniente que não é imputada à atuação do administrado (ex.: caducidade da autorização de uso da calçada em favor de determinado restaurante quando a nova legislação proíbe o uso privativo da calçada por estabelecimentos comerciais" [1].  </blockquote>
Sendo certo que a caducidade somente pode ocorrer com relação a atos discricionários, uma vez que os atos vinculados geram direito adquirido e os discricionários não, é plenamente possível que a edição de novos regulamentos opere a caducidade das autorizações para posse e porte de armas editadas a partir de 2019, quando as normas infralegais que as regularam eram mais frouxas.  
Assim, parece-me que estas medidas podem ser adotadas pela nova administração federal a partir de 1º de janeiro do próximo ano. Desde que acompanhada de providências materiais, como a fiscalização intensa sobre os clubes de tiro abertos no país que, dada a sua profusão, podem esconder estabelecimentos de fachada, vejo a possibilidade de, sem maiores traumas jurídicos, reversão da lamentável tendência de armamento da população civil verificada nos últimos anos. 
Como de atos ilegais não decorrem direitos, e as portarias são absolutamente contra legem, não há dúvidas de que, juridicamente, é possível a anulação das autorizações concedidas nos últimos anos, inclusive sem indenização. No entanto, se politicamente é uma medida complexa, sugere-se a revogação ou declaração de caducidade destas autorizações, acompanhadas de uma política de recompra destas armas pelo Estado, como autorizam os artigos 31 e 32 do Estatuto de Desarmamento.
<hr />
[1] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de direito administrativo. 9ª. Ed. Rio de Janeiro: Método, 2021, p. 289.

porte de armas no brasil

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JOTA

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