Juliana Oliveira Domingues

Lorenzo Bittencourt Nicoletti

Rodrigo Salton Rotunno Saydelles

Em que casos e sob quais condições a arbitragem pode ser utilizada em questões envolvendo o direito antitruste? Essa tem sido a pergunta recorrente nos principais fóruns de debate no Brasil. Sem buscar esgotar o tema, buscamos trazer uma breve contribuição para fomentar o debate.
A arbitragem é um método de resolução de conflitos cuja utilização cresceu substancialmente, desde a edição da <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9307.htm">Lei 9.307/96</a>. Apesar de resistências iniciais naturais de todo instrumento novo, a arbitragem vem se consagrando como um modo adequado de solução de controvérsias que envolvam direitos patrimoniais e disponíveis em casos concretos de grande relevância. Para além da contínua institucionalização que o instituto vem passando no Brasil, cada vez mais se vislumbra a sua potencialidade de oferecer tutela adequada, tempestiva e efetiva no contexto de variados ramos do ordenamento.
A interseção entre arbitragem e direito da concorrência, no contexto internacional, não é nova. Na União Europeia, por exemplo, se reconhece a arbitrabilidade de litígios concorrenciais desde o julgamento do paradigmático caso Eco Swiss pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias em 1999. Quinze anos depois, em 2014, a Diretiva 2014/104/UE consagrou explicitamente a possibilidade de arbitrar litígios decorrentes de questões concorrenciais.
No Brasil, a relação entre arbitragem e o direito da concorrência nunca foi óbvia na doutrina e pouco se falava dela nos primórdios do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/CADE">CADE</a>. As alterações recentes introduzidas pela Lei 14.470 de 2022, que consolidou o Sistema de Persecução Concorrencial Privada (Private Enforcement) no Brasil, abriram novos horizontes quanto à possibilidade de utilizar a arbitragem para resolver conflitos derivados de danos concorrenciais. O revival dos debates sobre este assunto não se deve apenas à implementação deste sistema e à promoção das ARDCs, mas também ao dispositivo vetado, que previa a arbitragem compulsória nos casos em que fosse celebrado TCC, levantando questões importantes sobre a natureza consensual da submissão a juízos arbitrais, especialmente tendo em vista que o acordo não é celebrado com as partes lesadas, mas entre CADE e parte ofensora.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
Tradicionalmente, a principal objeção levantada à arbitrabilidade de direitos concorrenciais residia no caráter indisponível de questões referentes à concorrência. Não se nega a competência do Estado de zelar pela defesa da concorrência na aplicação da lei antitruste. Contudo, essa posição sofreu temperamentos ao longo do tempo.
De um lado, hoje se reconhece que o direito da concorrência apresenta um conjunto de normas de ordem pública e que, de fato, não podem ser arbitradas (v.g. seria contrário à ordem pública delegar a análise da licitude de um ato de concentração a um tribunal arbitral, por exemplo, ou mesmo parte essencial desta análise, como a definição de Mercado Relevante em Atos de Concentração ou investigações de Condutas Unilaterais<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, tratando-se de competência exclusiva do CADE). No entanto, não há por que subestimar a relevância das questões concorrenciais que ostentam natureza patrimonial e disponível. Para tais questões é admissível o emprego da arbitragem como meio idôneo de solução desses conflitos. É possível apontar três principais grupos de questões concorrenciais em que a jurisdição arbitral pode ser uma valiosa ferramenta de aplicação do direito antitruste.
O primeiro grupo de casos em que a arbitragem já se mostrou como meio adequado para a solução de controvérsias foi no âmbito dos Acordos em Controle de Concentração (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ACC">ACC</a>). Em oportunidades mais recentes, o CADE reconheceu a arbitrabilidade, permitindo um acompanhamento de riscos concorrenciais associados a determinadas operações. O Caso Fosfobrasil e ICL Brasil<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>  e o caso ALL Rumo<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> foram destacados em prever a solução arbitral para dirimir conflitos derivados dos ACC firmados.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>
O segundo grupo de casos diz respeito a questões referentes à análise de validade de cláusulas contratuais quando a demanda é privada. As normas concorrenciais aplicáveis pelo CADE também são balizadoras de outras atividades econômicas, podendo ser utilizadas, inclusive como forma de mitigar conflitos. Nesse sentido, as regras de defesa da concorrência podem ser invocadas tanto como um “escudo” quanto como uma “espada” para defender interesses legítimos dos agentes privados, agindo como causa de pedir para propor demandas autônomas. Nesse contexto, é possível analisar a validade de cláusulas contratuais em cotejo com a legislação antitruste.
Em contratos comerciais privados é relativamente comum a inserção de cláusulas que apresentam impactos concorrenciais – por exemplo, cláusula de exclusividade, cláusula de não competição, cláusula de raio, cláusulas de paridade e cláusulas de preferência em relações verticais entre empresas, e até mesmo condutas anticoncorrenciais com impacto trabalhista, como os acordos de não contratação de trabalhadores (no-poach agreements)<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>, dentre outras. É possível analisar a licitude (e, portanto, a validade) de tais cláusulas sob a ótica de normas concorrenciais e jurisprudência do CADE. Caso haja inserção de cláusula compromissória nos contratos em que tais cláusulas são inseridas, nada impede que se debata a validade destes ajustes em sede de arbitragem. Isso sem contar o debate que decorrer de multas por gun jumping e as antigas multas por intempestividade que precisam ser pagas pelas partes: ao CADE não cabe definir quem deve pagar e quanto cada um deve pagar.
O terceiro grupo de casos diz respeito a demandas indenizatórias por violação das normas concorrenciais. A Lei 14.470 de 2022 modernizou a sistemática do direito de ação referente a questões concorrenciais. O artigo 47 da Lei Brasileira de Defesa da Concorrência passou a prever que os prejudicados pela violação de normas concorrenciais poderão ingressar em juízo para defesa de seus interesses individuais, ou para obter a cessação de práticas que constituam infração da ordem econômica, bem como para obter o recebimento de indenização por perdas e danos sofridos. A disciplina legislativa inovou ao prever que o direito de ação independe do inquérito ou processo administrativo. Com a modificação legislativa, reconheceu-se expressamente tanto a possibilidade de tutela indenizatória (perdas e danos) quanto inibitória (cessão ou remoção do ilícito concorrencial). A vertente indenizatória decorrente da violação de normas concorrenciais é eminentemente patrimonial e disponível, e, portanto, suscetível de ser submetida à arbitragem.
A liberdade de concorrência é princípio conformador da ordem jurídica da Economia Brasileira, conforme enuncia a Constituição Federal no artigo 170. É direito de todas as empresas concorrerem em um mercado estruturado conforme os ditames da ordem econômica. Contudo, nada adianta conferir direitos sem que se assegure também meios para a sua efetivação. Nesse contexto, a arbitragem, por suas características, possibilita tutela mais célere, realizada em procedimento flexível e adaptado às necessidades com decisão proferida por julgador escolhido pelas partes, muito provavelmente um especialista no tema. Assim, o instrumento  soluciona, ao menos para os conflitos submetidos a juízo arbitral, a problemática da não especialização das varas judiciais em concorrência ou comércio internacional<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>
Entende-se que ao longo dos últimos anos passaram a ser superados alguns “fantasmas” e questões teóricas inicialmente apontadas (i.e ausência de arbitrabilidade objetiva por conta da indisponibilidade das normas concorrenciais). Assim, a arbitragem no antitruste se tornou um dos temas mais debatidos dos últimos meses, uma vez que passou a ser percebida como uma opção importante para dar concretude às prerrogativas concorrenciais conferidas aos agentes privados.
Seja por meio de cláusulas compromissórias em ACC, seja por meio da utilização de normas concorrenciais como parâmetro de validade de cláusulas contratuais ou, ainda, por meio de tutela indenizatória ou inibitória decorrente da prática de ilícitos concorrenciais, a jurisdição arbitral apresenta potencial para contribuir para a efetivação das regras referentes à defesa da concorrência, dando concretude às garantias consagradas quer no plano constitucional, quer pela legislação concorrencial.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Sobre esse assunto conferir DOMINGUES, Juliana Oliveira; NICOLETTI, Lorenzo Bittencourt; NATIVIDADE, João Pedro Kostin Felipe de. Reflexões sobre a Lei 14470/2022 e seus impactos sobre o regime das Ações Reparatórias de Dano Concorrencial (ARDCs). No prelo.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Diferentemente do que já ocorreu na jurisdição norte-americana no Caso Novelis, em que o DOJ  e as partes concordaram em lançar mão da arbitragem para resolver a definição de mercado relevante. Para mais ver: SU, Henry C. The US DoJ submits a market definition question to the binding arbitration (Novelis / Aleris Corporation). e-Competitions Automobile, Paris, Art. N° 91908, Sep. 2019. Disponível em: https://www.concurrences.com/en/bulletin/special-issues/automobile-en/competition-policy-and-connected-cars/the-us-doj-submits-a-market-definition-question-to-the-binding-arbitration-novelis. Acesso em: 01 abr. 2023.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> CADE. Ato de Concentração 08700.000344/2014-47. Bromisa Indústria e Comercial Ltda., ILC Brasil Ltda. e Vale Fertilizantes S.A.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> CADE.  Acordo  em  Controle  de  Concentrações  nº  08700.000871/2015-32. RumoLogística Operadora Multimodal S/A e ALL –América Latina Logística S.A.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Para mais ver: CAVALCANTI, Rodrigo de Camargo. Acordos em Controle de Concentrações e o Instituto da Arbitragem. RDC, Vol. 3, nº 2, Novembro 2015, pp. 28-45. Ver também: SAYDELLES, Rodrigo Salton Rotunno. A Arbitrabilidade do Direito Concorrencial: uma análise a partir do caso Eco Swiss. Res Severa Verum Gaudium, Vol. 6, n. 1, 2021.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Ainda poderia se citar os cartéis de fixação salarial (wage-fixing cartels), as cláusulas de não concorrência nos contratos de trabalho e a própria troca de informações sensíveis entre concorrentes sobre termos e condições de trabalho. Sobre o tema ver: RIVERA, Amanda Athayde Linhares Martins; DOMINGUES, Juliana Oliveira; SOUZA, Nayara Mendonça Silva e. O improvável encontro do Direito Trabalhista com o Direito Antitruste. Revista do IBRAC, São Paulo, v. 24, n. 2, p. 65-93, 2018. Disponível em: https://bdjur.stj.jus.br/jspui/handle/2011/141576. Acesso em: 01 abr. 2023.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> GABAN, Eduardo Molan. Justiça Especializada para Combate a Cartéis. Coluna Web Advocacy, 17 mar. 2022. Disponível em: https://webadvocacy.com.br/2022/03/17/justica-especializada-para-combate-a-carteis/. Acesso em: 13 abr. 2023.

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