José Augusto Fontoura Costa

Quando Pedro Álvares Cabral partiu para Calicute já imaginava chegar a uma nova terra? Com efeito, parece impossível encerrar essa polêmica sobre a viagem que iria dar no Brasil, mas, para os defensores do acaso, a técnica de navegação conhecida por “volta ao mar”, que consistia em rumar substancialmente para oeste depois da passagem por Cabo Verde, ajuda a compreender o quanto estavam próximas, no início do século XVI, África e América. Não deixa de ser instigante, romântico até, imaginar que um pequeno desvio de rota pode ter sido tão significativo para nossa história.
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Apesar do sangue e do idioma que nos unem, o Brasil foi se afastando dos países lusófonos africanos: Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe soam aos brasileiros como nomes distantes e, em geral, pouco sabemos do que ocorre por lá. A situação, porém, é assimétrica, pois todos lá sabem bastante do Brasil, inclusive por meio de novelas e outros produtos culturais, bem como pela presença de grandes empresas brasileiras de setores como mineração e construção civil.
Já aparece, então, um primeiro elemento capaz de chamar a atenção para a aproximação econômica e a potencial criação de um campo jurídico comum, estruturante dos negócios para ambos os lados do Atlântico Sul. À proximidade idiomática soma-se a jurídica, pois os sistemas de lá pertencem à tradição romano-germânica e, geralmente, são muito influenciados pelas leis e juristas portugueses.
Desse modo, sobretudo para negócios complexos mediados por estruturas contratuais sofisticadas, faz sentido a formação de um campo jurídico comum, uma espécie de lex mercatoria especial construída conjuntamente por africanos, brasileiros e portugueses. Sendo outro o caminho, mediado, por hipótese, pela prevalência de instrumentos e formas próprias da tradição do common law, também há espaço para um aprofundamento da cooperação, até porque advogados e árbitros brasileiros já estão bastante habituados com esse modelo.
É importante, nesse sentido, ressaltar um forte movimento dos países africanos em favor da arbitragem internacional. Se a adesão à Convenção de Nova York de 1958 for usada como indicador é importante observa que 4 países se tornaram Partes entre 2001 e 2010 (4 em 17 adesões); 7 entre 2011 e 2020 (7 em 19 adesões), juntando-se aos 20 países que já eram Partes antes de 2001<a href="applewebdata://98CFD774-97C4-4807-9660-BD9C1599289A#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Em 2021, um dos dois aderentes até o momento é o Malauí. Dos países africanos em que o português é idioma oficial, apenas a Guiné-Bissau se mantém fora da mais importante convenção internacional em matéria de arbitragem.
Dentre os que são Partes, apenas Moçambique aderiu antes do presente milênio (1998). Um detalhe interessante: esse é exatamente o único lusófono africano a impor a reserva da eficácia a sentenças arbitrais proferidas em países igualmente Partes da Convenção de Nova York (Artigo 1 (3)). Isso parece indicar uma mudança de tendência para uma percepção mais autonomista da arbitragem internacional, até porque dos 12 aderentes mais recentes (2001 a julho de 2021) apenas dois, a Etiópia e o Malauí, optaram pela declaração de reserva de efeitos convencionais.
Do ponto de vista econômico, o continente africano vem experimentando há duas décadas um crescimento mais acentuado do que o da Europa e das Américas, ficando atrás apenas do asiático, catapultado pela China. Para dar um exemplo, conforme dados do TheGlobalEconomy.com<a href="applewebdata://98CFD774-97C4-4807-9660-BD9C1599289A#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, o crescimento brasileiro foi, nos últimos 20 anos, menor do que o de todos os países africanos lusófonos; em nenhum ano recente o Brasil cresceu mais que Moçambique. Ainda que a economia muitos dos países seja fortemente baseada na exploração de recursos naturais e produção de commodities primárias, é de se esperar uma maior diversificação e complexidade para os próximos anos.
Em termos políticos, parece haver uma tendência ao favorecimento de formas democráticas de governo e adensamento institucional, implicando maior estabilidade. Ao que tudo indica, em termos gerais, é bem possível haver uma reordenação da política em favor de maior estabilidade, pois parece ser muito difícil reeditar o carisma dos líderes da libertação e, ao mesmo tempo, fica mais fácil estabelecer acordos de pacificação com a oposição armada à medida que as pressões da Guerra Fria se esvaziam e as oposições armadas se integram na estrutura política do Estado. Por exemplo, é o que ocorreu com a UNITA após a morte de Savimbi e com a RENAMO, já pouco antes do falecimento de Dhlakama. Por outro lado, há várias tensões religiosas e tribalistas, com muitas variações regionais e nacionais. É um assunto complexo, o qual inspira evidente temor em investidores estrangeiros.
Nesse ponto é fundamental compreender o papel da lex mercatoria e da arbitragem internacional no favorecimento da criação de um ambiente de negócios adequado. Por um lado, o isolamento do âmbito negocial em relação às instituições internas tem o sentido de favorecer a maior segurança das operações econômicas por meio de atores e instrumentos (1) com elevada capacidade técnica e conhecimento suficiente para tratar com grande dedicação temas complexos e (2) evitar a influência de pressões políticas inadequadas, potencialmente capazes de fazer a balança da justiça pender para um dos lados na controvérsia.
<blockquote class="jota-article__eye">Já há árbitros brasileiros trabalhando em casos africanos, talvez prenunciando uma participação mais ampla. Decerto, advogados e árbitros brasileiros podem, seguramente, contribuir sobremaneira com formas internacionalizadas de estruturação de operações econômicas e solução de litígios.</blockquote>
Do mesmo modo, sem qualquer demérito às instituições internas africanas, é importante destacar que algum distanciamento da participação na realidade local pode ser essencial para a manutenção da imparcialidade, sobretudo naquelas questões que envolvem o Estado, como na arbitragem de investimentos e nas arbitragens com o Poder Público e suas entidades.
Mais do que a atuação de indivíduos, deve-se ter em vista a força e capacidade organizacional de instituições arbitrais brasileiras ou atuando a partir do Brasil. Embora o amplo uso do instituto seja relativamente recente no país, é fato que uma importante base organizacional já se estabeleceu por aqui. Embora predomine a atuação interna, há várias causas internacionais importantes decididas no âmbito das instituições arbitrais brasileiras, inclusive com algum foco na lex mercatoria como parâmetro interpretativo e bússola ética.
Uma questão constantemente discutida refere-se ao fato de o Brasil, com todas as vantagens que tem, não ter se convertido em um centro internacional de arbitragem, onde podem ser discutidas não apenas causas em que exista um vínculo territorial ou pessoal com o Brasil. Há grande potencial para tanto, considerando a qualidade das instituições, profissionais e serviços, além de um considerável suporte do Judiciário no que se refere à solidez da jurisprudência em favor da arbitragem e, também, dos mecanismos de cooperação entre jurisdições, importante para a eficácia de alguns instrumentos cautelares e probatórios.
Deve-se ter em conta, porém, o caráter incindível da união lusófona para a formação de um espaço comercial, jurídico e arbitral conjunto. Para uma integração que seja, à vez, forte, criativa, segura e sensível à diversidade é fundamental a presença lusitana. De fato, desde sua independência o Brasil tendeu a se afastar da África, até porque o comércio era assunto dos portugueses e, em seguida, a baixa complementariedade entre as economias não tornava a aproximação atrativa. Mas os países africanos lusófonos permaneceram ligados a Portugal, mesmo depois de alguns golpes muito duros no processo de descolonização. Assim, as sinergias de uma construção afro-luso-brasileira são fundamentais nos processos cooperativos e de formação de ideais conjuntos de futuro.
Há, decerto, importantes rotas por serem navegadas. Há aquelas que integram a América Latina, com relação à qual muitos apontam a questão do idioma como obstáculo a ser vencido. Já no âmbito transatlântico, a lusofonia é importante fator facilitador de atuações concertadas entre Brasil, Portugal e países africanos.
No tempo da navegação a vela, a calmaria equatorial se punha como um problema crucial, às vezes até mais crítico que as tormentas que marcavam o contorno meridional da África e da América. Foram exatamente as estratégias para cruzar as zonas de calmaria que podem ter levado ao resultado mais conhecido e celebrado da viagem de Cabral. Tomar cuidado com as calmarias, novamente, pode ser crucial para a conversão do Brasil em um centro de arbitragem lusófona internacional.
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<a href="applewebdata://98CFD774-97C4-4807-9660-BD9C1599289A#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> 1 país em 1959, 5 nos anos 1960, 3 nos 1970, 4 nos 1980 e 7 nos 1990.
<a href="applewebdata://98CFD774-97C4-4807-9660-BD9C1599289A#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> <a href="https://www.theglobaleconomy.com/texts_new.php?page=aboutus" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://www.theglobaleconomy.com/texts_new.php?page=aboutus</a>, consultado aos 07 de julho de 2021.

solução de conflito

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JOTA

Como a lusofonia nos leva a três continentes

Arbitragem africana e novos caminhos atlânticos

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