Lucas Caldas Lafayette Stockler

<blockquote>“Eu não gosto da vossa fria justiça, e no olho dos vossos juízes vejo sempre o olho do carrasco, e o frio do seu gládio.”
<footer class="jota-article__quote-cite">Friedrich Nietzsche<a href="#_edn1" name="_ednref1">[1]</a></footer>
</blockquote>
A sabedoria popular não é gentil com os advogados. Mais que isso, ela alcança o paradoxo de ser injusta logo com aqueles cuja indispensabilidade à administração da Justiça provém diretamente da Carta Magna. Decerto, o quão mais diligente e sagaz for o patrono daquele que enfrenta a potência estatal pior, pois, sob a vista de uma maioria míope, esses sim são um obstáculo ao seu ideal de "justiça".
Não é preciso de muito para familiarizar-se com essas impressões. Escuta-se muito sobre como algum advogado, mercenário que é, se aproveitou de um ou outro alguém que, em momento de necessidade, precisou contratar seus serviços.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Também sempre há alguma história sobre o jurista canalha que, aproveitando-se de alguma lacuna contratual, deu a volta em um coitado e lhe tomou os bens, deixando-lhe apenas com um resquício de dignidade. Ora, que jogue a primeira pedra aquele que nunca ouviu – ou quiçá que jamais riu – de uma piada de advogado!
Mais contemporaneamente, a moda é criticar o advogado criminalista. De fato, a esse sempre foi reputada a fama de "amante de bandido", todavia alcunhas mais ofensivas são dirigidas, hoje, àqueles que defendem os que se encontram sob a mira da pretensão punitiva do Estado.
Seja por atravessar uma petição durante o plantão judiciário, exaurir as vias recursais, insistir em uma preliminar ou mesmo reverter uma decisão nitidamente inconstitucional, o advogado responsável por tais estratégias é hoje tido como um vendido, um vilão, quase uma ameaça nacional. A incoerência é, crê-se, flagrante. Não apenas por ser trabalho do advogado se valer de todos os meios lícitos na defesa de seu cliente, mas principalmente por ser assim, valendo-se de todas essas estratégias, que ele resguarda a democracia.
Para compreender a raiz da revolta e a razão da indispensabilidade do advogado, deve-se retornar aos fundamentos da disputa processual. Carnelutti ensinou que “acusador e defensor são, em última análise, dois raciocinadores: constroem e expõem as razões”<a href="#_edn2" name="_ednref2">[2]</a>, de modo que o processo é, analogamente, um duelo de raciocínios em que se busca convencer o juiz que sua forma de enxergar os fatos é a mais justa ou, em outros termos, que suas palavras traduzem a verdade.
A mera concepção da existência de duas verdades já é, conforme sinalizou o jurista italiano<a href="#_edn3" name="_ednref3">[3]</a>, um escândalo; consequentemente, é desse que parte a má-fama dos advogados.
Por natureza, ao estender a mão ao acusado e assumir sua defesa, deve o advogado assumir também suas verdades, tornando-se assim um raciocinador parcial em meio a solene disputa que compõe o processo. À sua parcialidade, no entanto, o sistema impõe um contrapeso lógico na figura do acusador que, para opor-se, deve também ser parcial. É suposto que, a partir do conflito aristotélico entre tese e antítese, nasceria ante o juiz imparcial uma síntese sublime e justa; todavia há um defeito no sistema:
No ordenamento atual do processo penal, o ministério público não é essencialmente um acusador; ao contrário, é concebido diferentemente do defensor, como um raciocinador imparcial; mas aqui, digo, há um erro de construção da máquina, que também por isso funciona mal; de resto, nove sobre dez, a lógica das coisas leva o ministério público a ser aquilo que deve ser: um antagonista do defensor.<a href="#_edn4" name="_ednref4">[4]</a>
Em virtude de sua função primordial de fiscal da lei, recai sobre o membro do ministério público um rótulo de imparcialidade, que mascara seus objetivos acusadores. Ao fim, seu papel como raciocinador termina por ser dividido entre formal e real, imparcial e parcial, efetivamente confundindo não apenas a opinião pública a seu respeito, como também, mais frequentemente do que se gostaria, o próprio juiz.
Tem-se, portanto, um contraditório entre verdades que, formalmente, foi maculado. Enfrentam-se um raciocinador parcial e outro, supostamente, imparcial.
A opinião pública, dada a suposta racionalidade e imparcialidade empregada pelo acusador na leitura dos fatos, acaba por tender a favor desse. Em contrapartida, malgrado a necessidade da parcialidade do defensor, essa escandaliza ainda mais os leigos expectadores, que o condenam por dobrar os fatos – lidos e traduzidos pela “imparcialidade” do órgão acusador – em favor de seu cliente.
<blockquote class="jota-article__eye">Nasce, assim, a má-fama do advogado, que apenas atrapalha o manejo da justiça ministerial; essa tão fria e eficaz em sua letalidade que muitos chegam ao cúmulo de questionar a necessidade de existir a figura do defensor.</blockquote>
Deve-se, neste momento, recordar quem é o acusado. Para se referir a ele, Carnelutti usa a alcunha de encarcerado, optando por dar ênfase a dicotomia entre os homens livres, que julgam, e os presos, que estão à sua misericórdia. Segundo ele:
A solenidade, para não dizer à majestade dos homens em toga contrapõe o homem na jaula. Não esquecerei nunca a impressão, que deste tive a primeira vez na qual, ainda adolescente, ingressei na Corte de uma seção penal no Tribunal de Torino. Aqueles, dir-se-ia, sobre o nível do homem; este, embaixo, preso na jaula, como um animal perigoso. Sozinho, pequeno, embora grande de estatura; perdido, ainda que procurasse ser desembaraçado, pobre, carente, necessitado.<a href="#_edn5" name="_ednref5">[5]</a>
Longe de estar errada sua definição, carece ela da crítica descrita pela criminologia contemporânea, que pôde mergulhar mais fundo na origem do encarcerado e, assim, perceber a seletividade de sua criação.
Deve-se atentar, desde já, que o encarcerado não nasce com a conduta delituosa, pois o próprio delito só será reconhecido como tal quando identificado e processado pelos agentes da lei.
A alcunha é dada, portanto, pela autoridade policial e judiciária que, com base nos ditames do legislador, encarcera quem crê que deve ser encarcerado, como quem cola uma etiqueta em uma caixa após rapidamente vislumbrar seu conteúdo ou, pior, olhar de soslaio para seu exterior.
Afinal, segundo ensina Alessandro Baratta:
Na perspectiva da criminologia crítica a criminalidade não é mais uma qualidade ontológica de determinados comportamentos e de determinados indivíduos, mas se revela, principalmente, como um status atribuído a determinados indivíduos, mediante uma dupla seleção: em primeiro lugar, a seleção dos bens protegidos penalmente, e dos comportamentos ofensivos destes bens, descritos nos tipos penais; em segundo lugar, a seleção dos indivíduos estigmatizados entre todos os indivíduos que realizam infrações a normas penalmente sancionadas. A criminalidade é – segundo uma interessante perspectiva já indicada nas páginas anteriores – um “bem negativo”, distribuído desigualmente conforme a hierarquia dos interesses fixada no sistema socioeconômico e conforme a desigualdade social entre os indivíduos. <a style="font-family: inherit; font-style: inherit; font-variant-ligatures: inherit; font-variant-caps: inherit;" href="#_edn6" name="_ednref6">[6]</a> (destaque do original)
Diferentemente do que promete, a lei penal mostra-se desigual por excelência. Elege seus alvos com base nos interesses de uma elite econômica e os processa conforme a disponibilidade do sistema social e a facilidade que esses têm de encaixar em estereótipos seus encarcerados.
Selecionados e ingressados no sistema, torna-se fácil para a maioria, incluindo o próprio magistrado e seu acusador, acreditar e fazer acreditar que o negro sentado sob sua tribuna é certamente só mais um traficante, o pobre mais um ladrão, o empresário mais um sonegador, o policial mais um corrupto e o inocente mais um condenado.
Conforme apontado por Vera Malaguti Batista:
No começo do século, analisando as soldadas, a impressão é de que não havia escapatória possível para aqueles destinos: uma vez “caídas” no sistema, não havia como fugir dos asilos, da polícia, do juiz ou das soldadas. Esta impressão permanece no final deste século. O sistema em si constitui-se numa armadilha. Através do discurso de “recuperação, da ressocialização e da reeducação”, o que se percebe são os objetivos bem claros: medidas de contenção social elaboradas com critérios bem explícitos na sua seletividade.<a href="#_edn7" name="_ednref7">[7]</a>
O trabalho do advogado se prova, deste modo, ingrato. Isto, pois cabe ao defensor lutar uma batalha colina acima, contra dez vezes mais inimigos que aliados. Como se não bastasse a disparidade do próprio processo, seu cliente fora condenado antes mesmo de sentar-se à tribuna e luta-se para reverter uma batalha que já começou perdida. Questiona-se a necessidade do defensor no processo, pois, para aqueles que lhe opõem, a condenação do encarcerado é certa desde a edição da lei. Cada vitória sua será motivo de ultraje popular e cada recurso interposto razão para crítica generalizada. A “experiência do advogado está sob o signo da humilhação. Ele veste, porém, a toga; ele colabora, entretanto, para a administração da justiça; mas seu lugar é mais embaixo; não no alto. Ele divide com o acusado a necessidade de pedir e de ser julgado”<a href="#_edn8" name="_ednref8">[8]</a>.
Todavia, é pelo mesmo motivo que a atividade advocatícia se mostra absolutamente essencial à democracia. Ao pedir aquilo a qual se faz direito, o advogado protege mais que seu cliente, ele recorda ao poder público a existência do direito.
Por lutar para fazer valer as leis, ele luta também para que o acusador abandone sua falsa imparcialidade, para que o magistrado se atente à razão e o povo acalme sua ira. Desta forma, ainda que através de uma única vitória, o advogado garante que os próximos acusados encontrarão um tribunal mais justo, pautado no Estado de Direito, e não simplesmente um cadafalso e um colegiado de carrascos.
Segundo Nietzsche, fora às tarântulas a quem Zaratustra assim asseverou, todavia parece certo que poderia ser o discurso de um advogado aos seus adversos:
Trazes a vingança na alma; no lugar onde mordes, cresce uma pústula negra; para te vingares, o teu veneno faz rodopiar a alma. Falar-vos-ei assim por imagens, a vós que fazeis rodopiar as almas, a vós, pregadores da igualdade! Para mim sois tarântulas e habita em vós vinganças secretas! Mas os vossos redutos, vou agora desmascará-los; por isso vos rio na cara, com o meu riso dos altos cumes. Por isso dilacero a vossa teia, para expurgar do vosso antro as mentiras e para fazer surgir por trás da vossa palavra para a “justiça” a vossa vingança. Que o homem, efetivamente, seja resgatado da vingança, isto é para mim a ponte que leva à esperança mais elevada, o arco-íris que vem depois das grandes tempestades.<a href="#_edn9" name="_ednref9">[9]</a> (destaques do original)
Ademais, deve-se mais uma vez ressaltar que em cada processo o advogado encontra com um acusado, um encarcerado, detentor de um direito esquecido frente aos clamores de "justiça" de seus opositores. Ele se encontra, conforme já assinalado, perdido, abandonado, necessitado – necessidade essa que advém diretamente da solidão do cárcere e do medo daqueles que sobre ele se avultam, sedentos por vingança. Ao advogado cabe ser não apenas a última linha de defesa do encarcerado, mas também a única. “As pessoas não sabem, tampouco os juristas, que aquilo que se pede ao advogado é a dádiva da amizade antes de qualquer outra coisa”<a href="#_edn10" name="_ednref10">[10]</a>.
O maior dos méritos do advogado surge, assim, de sua empatia; da capacidade que tem de sentar-se ao lado do acusado e com ele dividir sua dor. Jamais se tratou de uma competição de egos ou de uma sede gananciosa de vencer um processo, como creem muitos que veem a profissão de fora.
Na defesa dos interesses de seu cliente, o defensor se vale de todas as estratégias, pois compreende que ali existem mais que direitos sendo violados, há uma pessoa precisando de ajuda e cujos pleitos de socorro caem somente em ouvidos surdos.
<blockquote class="jota-article__eye">Portanto, mesmo sendo alvo de escárnio, de críticas e de zombarias, faz questão o advogado de atravessar todos os argumentos e recursos ao seu dispor para garantir um mínimo de alívio aquele que tem apenas nele um amigo.</blockquote>
Decerto, é uma profissão ingrata, que se sagra sob o signo da humilhação. Porquanto, por melhor que seja o direito, não raramente se bate em vão na porta de um juiz e, mesmo quando se tem o pedido atendido, receber-se-á mais insultos que elogios.
Contudo, por mais diminuta que seja sua recompensa, ela é suficiente para o bom defensor, pois é no exercício da humanidade que o advogado encontra o amor por seu ofício. Ainda que pequena cada vitória ao quadro geral da democracia, todo caso vencido é também uma vida salva, repercutindo seu sucesso em infinitos níveis da sociedade. É desta forma que, com o pouco bem que faz, um caso de cada vez, o advogado se faz indispensável à administração da verdadeira justiça.
Por fim, deve-se retornar a Carnelutti, a quem melhor definiu os advogados:
A ver se bem, eles são os Cireneus da sociedade: carregam a cruz por um outro, e esta é a nobreza deles. Se me pedisse para a Ordem dos Advogados um lema, proporia o virgiliano “sic vos non vobis”. Somos aradores do campo da justiça e não recolhemos os frutos.<a href="#_edn11" name="_ednref11">[11]</a>
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}, 3000);
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<hr />
Notas
<a href="#_ednref1" name="_edn1">[1]</a> Cf. NIETZSCHE, Friedrich. Escritos sobre Direito. 2ª ed. Rio de Janeiro: PUC-Rio. São Paulo: Ed. Loyola, 2009, p. 107.
<a href="#_ednref2" name="_edn2">[2]</a> Cf. CARNELUTTI, Francesco. As Misérias do Processo Penal. 1ª ed. São Paulo: VidaLivros, 2012; p. 28.
<a href="#_ednref3" name="_edn3">[3]</a> Cf. CARNELUTTI, Francesco. op cit. p. 30.
<a href="#_ednref4" name="_edn4">[4]</a> Cf. CARNELUTTI, Francesco. op cit. p. 29.
<a href="#_ednref5" name="_edn5">[5]</a> Cf. CARNELUTTI, Francesco. op cit. p. 15.
<a href="#_ednref6" name="_edn6">[6]</a> Cf. BARATTA. Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. 6ª ed. Rio de Janeiro: Revan. 2002, p. 161.
<a href="#_ednref7" name="_edn7">[7]</a> Cf. BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis Ganhos Fáceis. 2ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 130.
<a href="#_ednref8" name="_edn8">[8]</a> Cf. CARNELUTTI, Francesco. op cit. p. 21.
<a href="#_ednref9" name="_edn9">[9]</a> Cf. NIETZSCHE, Friedrich. op. cit. p. 108.
<a href="#_ednref10" name="_edn10">[10]</a> Cf. CARNELUTTI, Francesco. op cit. p. 19.
<a href="#_ednref11" name="_edn11">[11]</a> Cf. CARNELUTTI, Francesco. op cit. p. 31.

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JOTA

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