Fernanda Guttmann

Em 1984, a Apple lança o Macintosh. O plano era entrar de cabeça no mercado de computadores pessoais, naquele momento amplamente dominado pela IBM. A peça publicitária, produzida para o lançamento, retratava um cenário distópico, numa clara referencia à obra “1984”, de George Orwell.
Numa época em que a hegemonia do setor estava concentrada nas mãos de uma única empresa, a Apple apareceu como um personagem símbolo da resistência ao conformismo e à submissão. Aquele momento marcou o surgimento da companhia de Steve Jobs como a conhecemos até hoje – uma empresa inovadora e inconformada com o conservadorismo.
Atualmente, a Apple se vê em uma disputa que envolve o sofisticado mercado de aplicativos. Uma frente de negócios que movimenta diversos setores da economia, especialmente na área de transportes, alimentação, mídia e entretenimento.
<a href="https://conteudo.jota.info/risco-politico"><img class="aligncenter wp-image-244336 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico.png" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
<h3>Como esse mercado funciona</h3>
A oferta de aplicativos para aparelhos móveis limita-se basicamente às lojas oficiais da Apple e do Google, nos seus respectivos sistemas operacionais. Para estar presente nesse ecossistema, os desenvolvedores de apps necessitam firmar contratos com regras rígidas, que incluem a distribuição exclusiva e o processamento do pagamento a partir da App Store e Google Play.
Esse sistema impositivo e, até certo ponto, inflexível passou a incomodar as empresas desenvolvedoras que buscam taxas mais flexíveis de comissionamento e relacionamento mais próximo com os usuários. Uma delas resolveu desafiar a Apple e deu início a uma disputa judicial. Trata-se da Epic Games.
A Epic Games produz jogos para múltiplas plataformas. Atualmente, seu jogo mais popular é o Fortnite – um fenômeno mundial com 350 milhões de jogadores registrados. O jogo é gratuito para download, com opções de compras dentro do app. São as microtransações que financiam o jogo e fazem dele um negócio lucrativo.
<h3>O início de um conflito</h3>
A disputa começou em junho deste ano quando Tim Sweeney, CEO e fundador da Epic, encaminha um e-mail diretamente aos executivos da Apple. Sweeney solicita a isenção da taxa de comissão, a possibilidade de utilizar outros meios de pagamento, além da oportunidade da Epic criar a sua própria loja de aplicativos móveis no sistema iOS. Suspeitando desse movimento, o departamento jurídico da Apple entrou na conversa<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Em documento formal, a Apple comunicou, dentre outas coisas, que não abriria mão de políticas e investimentos que asseguram um ambiente o qual, simultaneamente, cria oportunidades de negócio para os desenvolvedores e privacidade, segurança e qualidade para os usuários, e que desta forma não atenderia ao pedido da Epic.
Em 13 de agosto deste ano, a Epic Games cria uma alternativa de pagamento fora da App Store e do Google Play. Pela quebra de contrato, o jogo é excluído das duas lojas. Ainda neste mesmo dia, a desenvolvedora de jogos ingressa com uma ação judicial contra ambas as empresas.
Tudo indica que a Epic deverá concentrar seus esforços na ação que move contra a Apple, uma vez que o ecossistema do Android, por ser aberto, permite que os desenvolvedores distribuam seus aplicativos a partir de múltiplas lojas.
A tática do criador do Fortnite é ressignificar a mensagem de "1984", colocando a Apple como a vilã da história.
<h3>A Ação</h3>
A ação está centrada em práticas supostamente anticompetitivas adotadas pela Apple em dois mercados: o de distribuição de aplicativos iOS e o de processamento de pagamentos no sistema operacional.
A autora alega que o modelo em vigor impede distribuidores e serviços de meios de pagamentos de competir com a App Store em matéria de preço e variedade de produtos e serviços. Afirma que o ambiente de negócios no mercado de PCs é mais competitivo.
Nele não existem restrições à oferta de aplicativos e as tarifas derivadas das transações chegam a ser quase 10 vezes menores do que aquelas cobradas no ambiente mobile pela Apple. Com isso, argumenta que sofreu e continuará a sofrer danos irreparáveis até que uma liminar dê fim às práticas impostas aos desenvolvedores.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
Em sua defesa, a ré sustenta que a distribuição e o processamento de pagamento constituem uma única transação. Ressalta que a forma como estrutura a App Store e formula suas políticas não constituem conduta anticompetitiva.
A comissão reflete o valor investido em tecnologia para o desenvolvimento, teste e distribuição de aplicativos, sendo devida apenas quando o desenvolvedor realiza transações na loja. Ainda segundo a Apple, o Fortnite alcançou o sucesso por meio de múltiplos canais de distribuição, além da App Store, como consoles de videogame, PCs e outras lojas de aplicativos.
O ponto alto da defesa, porém, girou em torno da relação comercial estabelecida com a autora. Nesse aspecto, foi destacada a atitude intencional e premeditada da mesma em violar o acordo mantido entre as partes.
Com isso, não haveria que se falar em dano irreparável já que as circunstâncias atuais são um reflexo da decisão unilateral da autora de quebrar o contrato e que, portanto, não caberia liminar. Para a Apple, a real intenção da Epic é favorecer-se da inovação, da propriedade intelectual e da confiança do seu usuário, sem ter que pagar nada por isso.
<blockquote class="jota-article__eye">Em decisão preliminar, a juíza do caso concordou com o fato de que a Epic escolheu estrategicamente quebrar o contrato, sendo incapaz de demonstrar dano irreparável.</blockquote>
Por um outro lado, a decisão limitou-se apenas à exclusão do jogo Fortnite, ficando a Apple proibida de retirar também a ferramenta Unreal Engine, cuja permanência na App Store estava ameaçada.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>
O Unreal Engine é o software da Epic Games que permite a criação de jogos e gráficos com maior realismo. É bastante popular entre desenvolvedores de jogos e amplamente utilizada por estúdios de cinema. Neste caso, a análise da juíza baseou-se no fato de que a Epic não violou esse acordo específico e que uma medida drástica prejudicaria outras partes não envolvidas na ação. A próxima audiência foi marcada para o dia 28 de setembro.
Nessa primeira fase da disputa, a Apple levou uma pequena vantagem, já que a Epic não conseguiu a flexibilidade que buscava. O resultado inicial da ação levanta dúvidas sobre se a estratégia processual da Autora em descumprir o contrato entre as Partes foi a mais acertada.
<h3>Possíveis desdobramentos</h3>
O fato é que a Epic não está sozinha nesta batalha. No ano passado, o Spotify entrou com uma reclamação no órgão antitruste da União Europeia, que, há pouco tempo, abriu investigações para avaliar se a conduta da Apple viola as regras de concorrência<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
A Suprema Corte Americana já decidiu que consumidores podem acionar a Apple para questionar, na justiça, condutas anticompetitivas envolvendo a App Store no caso Apple, Inc. v. Pepper. Fora da esfera judicial, o mercado editorial, por meio da sua associação, está buscando condições mais favoráveis, de acordo com uma correspondência endereçada à Apple, no mês passado. Se o documento abre caminho para uma nova ação, somente o futuro dirá<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
Os movimentos liderados pelas diversas indústrias e as batalhas que a Apple vem enfrentando nos dois lados do Atlântico sugerem um desequilíbrio nas relações estabelecidas com seus parceiros. Seja pela pressão do próprio mercado ou por uma eventual derrota processual, chegará o momento em que a Apple, e o próprio Google, poderão se ver forçados a rever suas políticas de distribuição de aplicativos. Qualquer medida visando uma solução deverá buscar um ambiente onde a competitividade e a proteção à propriedade intelectual possam continuar lado a lado promovendo inovação e criatividade.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> STATT, Nick. Read the emails between Epic and Apple that led to Fortnite’s App Store ban. The Verge. 21 de agosto de 2020. Disponível em: &lt;<a href="https://www.theverge.com/2020/8/21/21396313/apple-fortnite-lawsuit-emails-app-store-ban-epic">https://www.theverge.com/2020/8/21/21396313/apple-fortnite-lawsuit-emails-app-store-ban-epic</a>&gt;. Acesso em 31 de agosto de 2020.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Petições juntadas pela Epic e Apple no processo disponíveis em: &lt;<a href="https://cdn2.unrealengine.com/apple-complaint-734589783.pdf">https://cdn2.unrealengine.com/apple-complaint-734589783.pdf</a>&gt;; &lt;<a href="https://cdn2.unrealengine.com/epic-v-apple-8-17-20-768927327.pdf">https://cdn2.unrealengine.com/epic-v-apple-8-17-20-768927327.pdf</a>&gt; e &lt;<a href="https://www.scribd.com/document/473208761/Epic-v-Apple-4-20-cv-05640-YGR-8-21-20">https://www.scribd.com/document/473208761/Epic-v-Apple-4-20-cv-05640-YGR-8-21-20</a>&gt;. Acesso em 31 de agosto de 2020.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Epic Games v. Apple Inc., Case No. 4:20-cv-05640-YGR (N.D. Cal. Aug. 24, 2020). Disponível em: &lt;<a href="https://cdn.vox-cdn.com/uploads/chorus_asset/file/21814075/cf2dcbbf_4f0b_4762_94fc_6b0f42ede3ff.pdf">https://cdn.vox-cdn.com/uploads/chorus_asset/file/21814075/cf2dcbbf_4f0b_4762_94fc_6b0f42ede3ff.pdf</a>&gt;. Acesso em 31 de agosto de 2020.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Antitrust: Commission opens investigations into Apple's App Store rules. 16 de junho de 2020. Disponível em: &lt;<a href="https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/en/ip_20_1073">https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/en/ip_20_1073</a>&gt;. Acesso em 1o de setembro de 2020.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> SEN, Anirban. News Publishers Push Back Against Apple Over App Store Terms. 20 de agosto de 2020.. Disponível em: &lt;<a href="https://www.nytimes.com/reuters/2020/08/20/business/20reuters-apple-app-store.html">https://www.nytimes.com/reuters/2020/08/20/business/20reuters-apple-app-store.html</a>&gt;. Acesso em 1o de setembro de 2020.

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JOTA

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