Francisco Eduardo Carrilho Chaves

Ninguém no Supremo Tribunal Federal (<a href="https://www.jota.info/stf">STF</a>) ou na assessoria jurídica do governo é iletrado em direito. Mas a maioria da população é. A ela direciono este artigo. Viso a dar ao grande público, em linguagem o mais popular possível, condições de aferir nuances da edição do decreto do presidente Jair Bolsonaro que concedeu indulto a Daniel Silveira. Por essas características, de imediato, peço escusas aos puristas do direito pelo uso de algumas expressões de forma tecnicamente não rigorosa, nas quais utilizarei aspas para dar destaque à proposital supressão do estado da arte.
Apresento aqui o que acredito deva ser objeto de discussão, sem a pretensão de afirmar o certo e o errado, somente o que deverá ser ponderado para que alguém, com competência constitucional para tanto, decida. Nenhuma lei é absoluta e livre de interpretação, notadamente a Constituição. O último intérprete dela é o STF, mas deve ser neste caso também?
Tanto defensores quanto detratores do decreto que concedeu o indulto presidencial abordam apenas parcialmente as questões controversas a ele relacionadas, especialmente as prévias. É pitoresco assistir especialistas na mídia, a depender da inclinação editorial do veículo de comunicação, subtraírem de seus discursos o que lhes é inconveniente no momento, buscando “puxar a brasa para a sua sardinha”. Seja ao ignorarem um julgado decorrente de inquérito e processo nos quais se confundem na mesma pessoa/instituição as figuras de vítima, investigador, acusador e julgador, seja ao nem questionar sobre a imunidade parlamentar por opinião, seja olvidando do não cabimento de multa civil em processo penal, seja pelo cerceamento da ampla defesa e do trabalho do advogado, seja pelo esquecimento de que nenhuma norma constitucional pode ser lida isoladamente.
Iniciamos reconhecendo a importância dos precedentes e que a jurisprudência deve ser considerada, mas, via de regra, ela não é vinculante no Brasil e em países que adotam o mesmo sistema jurídico básico, o da civil law <a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, como Alemanha, Itália, Espanha e Portugal. Como se diz: a jurisprudência pode evoluir. Por outro lado, salvo melhor juízo, a situação é inédita no país. Por fim, não cabe em uma discussão jurídica a simples alegação de que, se fulano fez isso, eu posso fazer aquilo. Isso é só para conversas informais em mesas de bar ou em redes sociais.
Entendo que a pedra de toque para descortinar as controvérsias será a harmonização do princípio da impessoalidade com outros mandamentos constitucionais.
A impessoalidade ganhou contornos tupiniquins pitorescos em 1942, uma verdadeira jabuticaba, na ditadura Vargas. O ditador Getúlio editou um decreto-lei para beneficiar Assis Chateaubriand em uma querela familiar. Chatô era seu amigo e homem poderoso na mídia da época. A norma ficou conhecida como “Lei Teresoca”. Assim que Chatô conseguiu o que queria, Vargas revogou o decreto-lei. A história pode ser facilmente encontrada na internet.
Não obstante sua notória importância, o princípio da impessoalidade somente ganhou estatura constitucional com a <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm">Carta Cidadã de 1988</a>. Foi ela a primeira a trazer no texto esse princípio, que, grosso modo, estabelece o dever de imparcialidade na defesa do interesse público, impedindo discriminações e privilégios indevidamente dispensados a particulares no exercício das funções estatais. O administrador deve servir a todos, sem preferência ou aversões pessoais ou partidárias, não podendo haver atos ou ações direcionados especialmente para alguém. O princípio é consonante com outro também constitucional: o da isonomia.
Para ser aplicada, toda e qualquer legislação precisa ser constitucional. Isto é, atender às regras (todas) da Carta de 1988. Normas anteriores aderentes à atual Constituição são por esta recepcionadas. Caso a descumpram, não são acolhidas no novo ordenamento. Neste universo estão o Código Penal (CP) e o Código de Processo Penal (CPP). Em alguns casos de dúvida, essas normas legais podem ser submetidas ao crivo do STF em Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), prevista no §1º do artigo 102 da CF e regulada pela Lei 9.882/1999.
A graça está prevista no inciso II do artigo 107 do CP, o Decreto-lei nº 2848, de 7/12/1940, cuja instrumentalização está disposta no artigo 734 e seguintes do CPP, o Decreto-lei nº 3.689, de 3/10/1941.
<blockquote class="jota-article__citation">"CP: 
Artigo 107. Extingue-se a punibilidade: 
........................................................... 
II - pela anistia, graça ou indulto; 
..........................................................."</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">"CPP: 
Artigo 734. A graça poderá ser provocada por petição do condenado, de qualquer pessoa do povo, do Conselho Penitenciário, ou do Ministério Público, ressalvada, entretanto, ao presidente da República, a faculdade de concedê-la espontaneamente".</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">Conforme visto, as codificações penais, tanto a material quanto a processual, são anteriores à atual Constituição, que concede ao presidente da República somente a possibilidade de conceder indulto (artigo 84, XII).</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">"Artigo 84. Compete privativamente ao presidente da República: 
........................................................... 
XII - conceder indulto e comutar penas, com audiência, se necessário, dos órgãos instituídos em lei; 
..........................................................."</blockquote>
O comando constitucional não cita a graça. Competências constitucionais são expressas, taxativas, não cabendo falar: “se pode isso também pode aquilo”. Não funciona assim. O que se discute primeiro é, portanto, se a graça pode ser entendida como um indulto individual. Desse ponto em diante entra-se na discussão sobre a impessoalidade. Mas vejamos outras coisas antes.
O direito positivo brasileiro não diferencia objetivamente indulto e graça. A doutrina os separa conceitualmente, assim como a anistia. Pelo CP, todas são causas extintivas da punibilidade. Ainda que haja controvérsias acerca da diferenciação entre extinguir a pena e extinguir a punibilidade, para os fins deste trabalho, mantém-se a posição do CP: extingue-se a punibilidade.
Impossibilidade de punir difere de injuridicidade, que é a conduta ser contrária ao direito. A primeira exclui a possibilidade de o Estado sancionar, mas não “legaliza” uma conduta ilegal. Em outras palavras, não se pode punir, mas o que foi feito não pode ser qualificado como “correto”. Extinguir a punibilidade não é absolver. Por isso, também é importante o momento da concessão do indulto para a aferição das suas consequências, especialmente se a matéria transitou em julgado ou não.
O artigo 107 do CP define outras formas de extinção da punibilidade, e.g.: a morte do agente infrator e a retroatividade da lei mais benéfica.
Os doutrinadores diferem o indulto da graça, basicamente, pelo primeiro ser concedido genericamente, para todos os indivíduos que se encontram na mesma situação jurídica. A graça seria uma espécie de indulto individual, dado a uma pessoa.
Na Lei Fundamental, somente o inciso XLIII do artigo 5º cita a graça, e o já referido artigo 84, XII, restringe-se a indulto como algo que compete somente ao presidente da República conceder, podendo delegar essa atribuição.
<blockquote class="jota-article__citation">"Artigo 5º ........................................................................................................... 
XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem; 
............................................" [grifos neste artigo].</blockquote>
É compreensível que se estranhe e reprove a falta de técnica do constituinte, mas a realidade precisa ser enfrentada. Para isso existe a hermenêutica.
Assim, o cerne da discussão está em avaliar se a Constituição Federal de 1988 recepcionou a graça, entendendo-a como indulto individual, tendo em contraponto a existência do princípio da impessoalidade (artigo 37), cuja obediência é obrigatória por todos integrantes e em todos os atos da administração pública, inclusive na produção e na aplicação das normas jurídicas:
<blockquote class="jota-article__citation">"Artigo 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte".</blockquote>
O indulto coletivo é pacífico. Nele, se prevê uma situação genérica em que vários indivíduos, não nominalmente identificados, podem ser enquadrados. Estão presentes os atributos de generalidade e abstração da norma jurídica, o que, de plano, afasta a pecha da pessoalidade.
Assim o intérprete se verá na obrigação de sopesar o princípio da impessoalidade em face dos fundamentos constitucionais alegados pelo presidente da República para editar o decreto do último dia 21 de abril:
<ul>
<li>a) manutenção do Estado democrático de Direito, inspirado em valores compartilhados por uma sociedade fraterna, justa e responsável;</li>
<li>b) liberdade de expressão como pilar essencial da sociedade em todas as suas manifestações;</li>
<li>c) inviolabilidade de opinião de membro do Parlamento;</li>
<li>d) manutenção do mecanismo tradicional de freios e contrapesos na tripartição de Poderes; e</li>
<li>e) zelo pelo interesse público.</li>
</ul>
Antes de encerrar, julgo imprescindível provocar mais uma ponderação. Neste ponto, ouso defender a única posição firme deste artigo. Deveria mesmo o STF poder aferir algum aspecto do decreto e, ainda, lhe recusar eficácia?
Em uma tripartição de Poderes estatais na qual, de fato, há checks and balances, parece-me um contrassenso o STF sequer ter a prerrogativa de avaliar – quanto mais poder impedir a produção de efeitos – do ato do Executivo que, de certa forma, cassou ato que o próprio tribunal produziu.
Não se tem dúvida de que é uma situação de tensão institucional, mas o que vai contra qualquer ideia de controle real e efetivo é o controlado poder controlar o controlador. Ou seja, o controlador não controla nada.
Tal concerto de coisas se afigura desconexo com o Estado democrático de Direito em uma República na qual, de fato, os Poderes sejam independentes e harmônicos, todos tendo, entre si, instrumentos que freiem, erijam alguma barreira a desmandos ou excessos dos demais. É isso, e somente isso, o que expressa e corporifica o tão caro, desejado e elogiado sistema de pesos e contrapesos. Nesse limite, nem mesmo o STF pode tudo, sob pena de nos rendermos à ideia de que se vive, realmente, em uma ditadura do Judiciário. É mais do que tempo de se fazer uma concreta reflexão sobre isso.
Espero haver contribuído para que a sociedade brasileira tenha uma melhor aproximação da matéria e possa acompanhar as inevitáveis futuras discussões e narrativas envolvendo o decreto presidencial que indultou Daniel Silveira.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> O outro grande sistema jurídico vigente no mundo ocidental é o da common law, adotado por EUA, Reino Unido e Canadá, por exemplo. Esse sistema é baseado em decisões proferidas pelos tribunais, fazendo com que o operador jurídico tenha que se orientar pela jurisprudência e pelos costumes. No sistema da civil law, impera o direito codificado (normas legais produzidas), sendo ele e a sua interpretação que orientam a atuação do operador do direito.

daniel silveira deputado

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JOTA

Deveria mesmo o STF poder aferir algum aspecto do decreto e, ainda, lhe recusar eficácia?

Apontamentos sobre o decreto de indulto individual a Daniel Silveira

Deveria mesmo o Supremo Tribunal Federal (STF) poder aferir algum aspecto do decreto de indulto a Daniel Silveira e lhe recusar eficácia?