Eduardo Augusto de Oliveira Ramires

Nina Nobrega Martins Rodrigues

“Morte civil” é uma pena dos sistemas legais da antiguidade clássica e do medievo aplicada às pessoas condenadas por determinados crimes, em geral contra o próprio Estado ou a religião. Consiste em retirar da pessoa seus direitos civis, confiscar seu patrimônio ou transmiti-lo aos seus herdeiros, como se tivesse morrido.
Embora permaneça viva, a pessoa perde seu status de cidadão e de titular de direitos. Trata-se de um instituto arcaico e incompatível com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, adotada na quase totalidade dos sistemas jurídico ocidentais.
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Entretanto, com base na Lei de Improbidade, tem sido corriqueiro que acusados de ilícitos civis tenham todo o seu patrimônio congelado por tempo indefinido. Decisões dessa gravidade, contudo, não são o corolário de uma condenação por crime, ou pelo ilícito civil de que são acusados, mas ocorrem em decisão cautelar, frequentemente concedida sem que seja descrita a conduta ímproba específica do acusado ou apontado o prejuízo que teria sido causado ao erário.
Em outras palavras, estamos convivendo com uma verdadeira pena temporária de morte civil dos acusados de improbidade, por medida de simples cautela na defesa do erário.
Nesse sentido, a decretação de indisponibilidade de bens (art. 7º da Lei de Improbidade Administrativa, Lei nº 8.429/92) nas ações civis públicas por improbidade administrativa tem sido cada vez mais habitual.
Nestas, é comum que o autor público sequer dimensione, em seu pedido ao Judiciário, o suposto dano ao erário e o alegado enriquecimento ilícito dos agentes envolvidos, sendo praxe que a medida constritiva utilize como parâmetro o valor total dos contratos públicos impugnados, independentemente de terem sido concluídos ou não.
É também praxe que os pedidos desta natureza elenquem numerosos réus, entre servidores, ex-administradores, empresários, proprietários de empresas, sem qualquer preocupação em descrever as condutas individuais ou mesmo a indicação dos benefícios recebidos.
Todas essas tarefas processuais se admite que sejam francamente negligenciadas quando competem aos “defensores do erário”, contrariando francamente o princípio da paridade de armas que deveria presidir o processo civil brasileiro.
<h3>Desproporcional</h3>
Isso significa dizer que, sob o pretexto da necessária garantia do resultado útil do processo, vem se construindo um entendimento jurisprudencial de que é possível se presumir o prejuízo quando o potencial lesado é o erário (periculum in mora em modalidade presumida, <a href="https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&amp;tipo_pesquisa=T&amp;sg_classe=REsp&amp;num_processo_classe=1366721" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Tema 701 do STJ</a>), levando a situações em que o patrimônio do réu fica sujeito a um integral congelamento, sem qualquer possibilidade de limitação ao valor do prejuízo – simplesmente porque não se exige que o autor civil público defina o montante do dano – fato que é extremamente gravoso para qualquer pessoa física ou jurídica que figure no polo passivo das ações civis públicas que versam sobre tal matéria.
<blockquote class="jota-article__eye">Em hipóteses como as citadas acima, interessante pensar na desproporção da medida, vez que ausente qualquer comprovação aprofundada acerca da suposta conduta individual, ilícita e dotada de elemento subjetivo por parte do agente.</blockquote>
Do mesmo modo, tampouco é conhecida a quantificação do dano aduzido pelo autor público, em geral o Ministério Público e muito menos se demonstra o nexo causal entre aquela ação e o alegado resultado prejudicial.
Sem conduta, quantia certa, liame e, por vezes, sem o próprio recebimento da ação, a presunção de inocência (art. 5º, LVII da Constituição Federal) se flexibiliza por prazo indeterminado e o réu passa à condição de morto-vivo.
Nesse contexto de excesso acautelatório, o réu pessoa física sofre uma verdadeira pena de morte civil por prazo indeterminado. Um processo complexo, envolvendo diversos réus, estende-se facilmente por 5, 10, 15 anos. Alijado de sua vida econômica e de sua capacidade empreendedora, o réu se vê incapaz de gerir, movimentar e liquidar seus bens, inclusive, para o pagamento das custas e despesas processuais de sua própria defesa.
A inexistência de limitação temporal expressa para a manutenção da indisponibilidade tem como consequência um estado de exacerbação punitiva antecipada, que é legitimado pelo próprio ordenamento e pela jurisprudência nacional, contrariando princípios essenciais à justificação e ao funcionamento do sistema judiciário.
<h3>Limites</h3>
Essa grave distorção da persecução civil da improbidade administrativa não pode seguir ocorrendo. Não apenas porque atenta contra princípios básicos do estatuto das liberdades como direito de defesa, presunção de inocência, legalidade) e do processo civil – paridade de armas, motivação, proporcionalidade –, mas porque é inócua e danosa para o interesse público, na exata medida em que provoca danos desproporcionais e injustificáveis aos réus e suas famílias, além de retirar da circulação econômica bens e recursos, o que acaba por inibir a atividade econômica em prejuízo da comunidade e do próprio erário.
Para se compreender o caráter inócuo da medida basta considerar que a incapacidade do autor de identificar as condutas ímprobas específicas e os danos concretos e efetivos serve apenas para superestimar os valores que estariam supostamente em causa, mas que nem por isso guardam qualquer correspondência com os patrimônios congelados por medida de cautela.
Se o fracasso das pretensões mirabolantes dos autores públicos não lhes repercute em nada, o mesmo não se diga do estrago que tais medidas causam aos réus, muitos deles colhidos de maneira inadvertida, e subtraídos do patrimônio do qual retiravam o sustento.
Esse breve exercício reflexivo serve para demonstrar o quão é importante revestir medidas da gravidade da indisponibilidade patrimonial com os requisitos indispensáveis e proporcionais às consequências de sua repercussão na vida civil e na economia nacional.
A começar por se rejeitar o tratamento desastrosamente complacente com a acusação vaga e incipiente que nunca chega a esclarecer o prejuízo causado pelo agente ou o benefício que teria sido ilegalmente auferido, aceitando-se presunções convenientes no lugar do exercício da persecução civil pública rigorosa e imparcial.
Não é razoável admitir que o Ministério Público descure de seu dever da demonstração fundada, por critérios objetivos, da extensão do dano ao erário ou do locupletamento ilegal que alega, de modo que a indisponibilidade ostente proporcionalidade e justa parametrização, apenas e somente quando cabível.
Além disso, imprescindível a limitação temporal da vigência da indisponibilidade, tendo em vista que, como já visto, as ações civis públicas por improbidade administrativa podem ter longuíssima duração, ao passo que o seu resultado útil se torna cada vez mais improvável, enquanto os danos aos réus tornam-se definitivos.
Uma medida de tal gravidade não pode, simplesmente, ser confundida com a pena final de perdimento dos bens ou com a reinstituição da pena de morte civil ad cautelam.
<hr />
O episódio 50 do podcast Sem Precedentes faz uma análise da decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal nesta semana e que pode acelerar a aplicação de vacinas contra a Covid-19. Ouça:
https://youtu.be/b9z7dDRHnrg

40659468354_2e841921eb_z

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Estamos convivendo com uma verdadeira pena temporária de morte civil dos acusados de improbidade

Aplicação da pena de morte civil temporária para suspeitos de improbidade

Estamos convivendo com uma verdadeira pena temporária de morte civil dos acusados de improbidade