Guilherme Reisdorfer

O art. 190 da Lei 14.133/21 dispõe que “o contrato cujo instrumento tenha sido assinado antes da entrada em vigor desta Lei continuará a ser regido de acordo com as regras previstas na legislação revogada”.
Essa proteção, de fundo constitucional (art. 5º, inc. XXXVI, da CF/88), abrange mesmo contratos que venham a ser celebrados após o término de vigência das leis sucedidas pela Lei 14.133, caso a licitação correspondente esteja baseada naqueles regramentos. É o que prevê o parágrafo único do art. 191. Portanto, as Leis 8.666/93, 10.520/02 e 11.462/11 permanecerão aplicáveis nessas situações, mesmo após a sua revogação se tornar eficaz.
Essas previsões constituem cláusulas de garantia. Impedem a incidência de gravames ou restrições supervenientes que possam interferir nos direitos e obrigações contratados.
Mas a garantia não implica vedação à aplicação da Lei 14.133 a contratos regidos pela legislação anterior. Especificamente, não obsta que alterações diversas sejam pactuadas para imprimir maior eficiência à execução do contrato e ao relacionamento entre as partes como um todo, desde que a modificação não desnature o objeto contratado, nem frustre a licitação originária. Pode-se até estabelecer um paralelo com a prática de admitir que concessionários exerçam o direito de aderir a regulamentos supervenientes, para melhorar e modernizar os seus contratos.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> De igual modo, a Lei 14.133 pode operar como suporte e reforço de legitimação à adoção de novos mecanismos e práticas que, em alguns casos, já eram antes admissíveis.
De forma exemplificativa, é possível cogitar a aplicação da Lei 14.133 em algumas hipóteses gerais: (1) para aperfeiçoamento de aspectos organizacionais e procedimentais instrumentais ao desenvolvimento da relação contratual (como a divulgação de novos aditivos no PNCP, conforme o art. 91, p. ex. – o que, a rigor, nem constitui alteração contratual); (2) para aprimorar a sistemática de execução contratual, com aproveitamento de mecanismos como os de transferência dos encargos de desapropriação e licenciamento ao particular contratado, quando tal sistemática se mostrar mais eficiente em face das circunstâncias contratuais – art. 25, § 5º); (3) para incorporar ao contrato novos mecanismos de solução de controvérsias, conforme o art. 153; e (4) para aplicação de normas mais benéficas, sobretudo em matéria sancionatória.
As proposições acima não são inovadoras. Há muito se admitia, por exemplo, a possibilidade de inclusão de mecanismos de solução de controvérsias em contratos públicos independentemente de previsão legal específica ou editalícia anterior.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
À exceção das regras sancionatórias mais benéficas, o emprego de soluções materiais previstas na Lei 14.133 em contratos baseados na legislação anterior pressuporá aditamento formal, observando as exigências de reequilíbrio e de reorganização de aspectos contratuais pertinentes, conforme o caso.
Embora não tratando propriamente de hipótese de alteração contratual, o TCU examinou no Acórdão 1912/23 (Plenário, Rel. Min. Benjamin Zymler, j. 13.09.2023) questão relacionada às considerações acima expostas. Considerou regular contratação integrada regida pela Lei 12.462 que havia incumbido o contratado de providências relativas à obtenção de licenciamento ambiental, apesar da ausência de previsão autorizadora na Lei 12.462.
Entre outras razões, o entendimento foi justificado com (1) apontamento da compatibilidade da previsão contratual com a lógica da contratação integrada e (2) referência à “superveniente edição da Lei 14.133/2021 admitindo a atribuição do licenciamento ambiental ao particular”. O TCU não atribuiu eficácia normativa à Lei 14.133, mas a utilizou como elemento confirmatório da validade do contrato.
O acórdão é relevante por três razões principais.
Em primeiro lugar, por representar inovação em face do entendimento anterior do TCU sobre a questão do licenciamento, manifestado no Acórdão 2725/16 (Plenário, Rel. Min. Walton Alencar Rodrigues, j. 29.10.2016). Referida decisão havia rejeitado proposta do DNIT consistente em remeter o licenciamento ambiental de contratações integradas à fase contratual atinente à elaboração de projetos. Naquela ocasião, o DNIT sustentou que tal solução propiciaria maior celeridade e eficiência. O Acórdão 1912/23 levou essas implicações práticas em conta, destacando “as dificuldades notórias” enfrentadas pela administração pública para viabilizar o licenciamento com base apenas no anteprojeto. A nova orientação servirá de parâmetro para orientar a elaboração da matriz de alocação de riscos nas contratações integradas (arts. 22, § 3º, e 25, § 5º, da Lei 14.133).
Em segundo lugar, por ilustrar uma visão pragmática sobre a abordagem da validade dos contratos administrativos, em linha com a LINDB. <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/publicistas/o-futuro-chegou-ao-direito-administrativo-17102023">O tema foi tratado com excelência em recente texto de Vera Monteiro publicado aqui no Jota</a>.
Em terceiro lugar, o novo acórdão sinaliza que o TCU admite que o gestor público pode (e circunstancialmente deve) ir além do que a legislação prevê no tocante aos arranjos contratuais. A arquitetura contratual deve ser pautada pela adequação às circunstâncias concretas, o que pressupõe espaço para experimentalismo e adoção de soluções inovadoras eficientes. Embora não caiba ao legislador listar quais sejam essas soluções, algumas delas podem ser buscadas a partir da consideração sistemática da legislação sobre licitações e contratos administrativos. Essa visão sistêmica implica levar em conta inclusive novas regras que se revelem compatíveis com contratos preexistentes.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Entre outros exemplos, podem-se citar as previsões contidas na Resolução 6.000/22 da ANTT, que compõe o Regulamento das Concessões Rodoviárias que vem sendo construído por aquela Agência.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> STJ, REsp 904.813/PR, 3ª Turma, relatora Ministra Nancy Andrighi, DJe 28.2.2012.

tcu Lei 14133

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JOTA

O exemplo do licenciamento ambiental e o Acórdão 1912/23 do TCU

Aplicação da Lei 14.133/21 a contratos regidos pela legislação anterior

Artigo 190 da Lei 14.133/21 estabelece que contrato assinado antes de ela entrar em vigor continuará com as regras anteriores