O aniversariante – que veio ao mundo no Palácio Príncipe Max von Baden (“Prinz-Max-Palais”), em Karlsruhe, a 7 de setembro de 1951 e foi batizado em cerimônia festiva três semanas depois, em 28 de setembro – representa, em perspectiva constitucional comparada tanto diacrônica quanto sincrônica, provavelmente mais que qualquer outra instituição o modelo – então totalmente revolucionário – consistente em confiar a atualização, concretização e efetivação da constituição em última instância a um tribunal especializado nesta tarefa.
Esta ascensão ao Olimpo da jurisdição constitucional não se mostrava, contudo, de forma alguma tão claramente reconhecível ou mesmo previsível desde o princípio. É verdade que quando o Conselho Parlamentar (“Parlamentarischer Rat”) concluíra os seus trabalhos e a Lei Fundamental (“Grundgesetz”) entrou em vigor, em 24 de maio de 1949, a decisão por uma jurisdição constitucional moderna e especializada, dotada de amplas competências de controle inclusive com relação ao legislador, já havia sido essencialmente tomada – em nítido distanciamento do modelo Weimariano. Faltavam ainda, todavia, fatores decisivos que responde(ria)m pelas posição e reputação destacadas do TCF (“BVerfG”) como tribunal de direitos fundamentais (“Grundrechtsgericht”).
Assim, por exemplo, um Supremo Tribunal Federal – jamais instalado –, que como guardião da unidade do direito (federal) teria invariavelmente entrado em concorrência com o TCF, ainda estava previsto no artigo 95 do texto original da constituição. A relação com a justiça ordinária estava definida exclusivamente no que diz respeito à suspensão dos processos pelas cortes ordinárias e respectiva submissão de questões prejudiciais sobre a inconstitucionalidade de normas ao tribunal constitucional, isto é, ao incidente de inconstitucionalidade (“Richtervorlage”) (Art. 100 (1) Lei FundamentalNT); o Conselho Parlamentar não havia ainda se convencido da previsão de uma reclamação constitucional (“(Urteils-)Verfassungsbeschwerde”), base constitutiva do chamado modelo piramidal, com o poder jurisdicional do TCF acima de todos os demais tribunais.
Tal previsão foi instituída primeiro por via de legislação ordinária, com a Lei Orgânica do Tribunal Constitucional Federal (“BVerfGG”) de 1951, e somente em 1969 por via constitucional. E, mesmo quando da implementação da reclamação constitucional, legislador e TCF não tinham dimensão exata dos desdobramentos que haviam sido com isso desencadeados nem do significado que a específica reclamação de direitos fundamentais viria a adquirir, hoje representando cerca de 97% de todos os aproximadamente 250.000 processos pendentes perante o TCF.
Isso é algo evidenciado de modo especialmente sensível pela distância que se abriu na década inicial de funcionamento da corte entre a repartição normativa (alternativo-paritária) de tipos de procedimento entre os dois Senados, por um lado, e a distribuição efetiva de novos casos em conformidade com tipo procedimental, por outro: enquanto o Segundo Senado – como Senado competente em matéria de organização estatal (“Staatsgerichtsbarkeitssenat”) – registrou durante os cinco primeiros anos (1951–1955) consequentemente menos de 10 novos casos anuais e, nos anos seguintes, até 1959, jamais alcançou a marca anual de 100 casos, o Primeiro Senado, concebido como Senado competente em matéria de direitos fundamentais e controle de normas, viu-se desde o primeiro dia confrontado com uma onda processual de reclamações constitucionais que, nos anos entre 1951 e 1959, oscilou entre 476 (número referente aos quatro meses de 1951 em que a corte funcionou) e 1190 novos casos.
Esta oneração desigual foi resolvida apenas em 1960, quando o Segundo Senado passou a ser envolvido na decisão de incidentes de inconstitucionalidade e, sobretudo, de reclamações constitucionais. Last but no least: em virtude da ausência de experiências nacionais e internacionais correspondentes, em 1949/1951 a forma como o TCF viria a moldar interpretativamente e a conferir efetividade à constituição, em geral, e aos direitos fundamentais, em particular, não era nem previsível nem imaginável.
Se se quisesse reduzir a receita de sucesso da judicatura de Karlsruhe ao longo de sete décadas a um único indicador, então seria possível apontar a materialização da integração – voltada para o futuro – da Alemanha do pós-guerra, a se erguer das ruínas totalitárias, por meio da constituição. E isso tanto em um sentido sociopolítico mais abrangente, que se expressa na constitucionalização do discurso político tipicamente alemã (na República de Bonn), quanto em um sentido jurídico mais estreito, que se manifesta na constitucionalização do restante do ordenamento jurídico interno.
No sentido mais abrangente, o TCF construiu para si uma reputação de tribunal cidadão estadista, sempre esforçado em conciliar a capacidade funcional do sistema político, de um lado, com a proteção de minorias (políticas e sociais), de outro. A jurisprudência de Karlsruhe foi e é atenta ao reconhecimento e equilíbrio de interesses colidentes em um processo discursivo transparente, com simultânea conservação da tensão oriunda de forças liberais e democráticas. Isso é algo que atestam não apenas o papel extraordinário da máxima da proporcionalidade, como também a cultura de deliberação e justificação do tribunal, que não se orienta pelo desfecho por meio da formação de maiorias, mas sim pelo convencimento por meio de argumentos (constitucionais).
Nesta configuração, orientada pela inclusão jurídica e pelo compromisso político, enquadra-se também a peculiaridade de que o processo de seleção de juízes, apesar de estruturalmente político, foi realizado até aqui com discernimento e com atenção aos checks and balances pela Câmara (“Bundestag“) e pelo Conselho Federais (“Bundesrat”), e que o TCF, por um lado, visto de modo global, não se deixou capturar politicamente e adota in methodicis um ecletismo pragmático pronunciado. Expressão e consequência deste caminho do meio (não concebido de modo estático) é que se atesta ao TCF na esfera pública há décadas – a despeito do baixo índice de sucesso das reclamações constitucionais, na casa de 2% – uma confiabilidade com a qual outros atores podem apenas sonhar.
No sentido jurídico mais estreito, o sucesso do TCF – e com ele o da própria Lei Fundamental – se deve, em primeira linha, à eficiente combinação entre jurisdição constitucional especializada, superior ao restante da judicatura, de um lado, e uma abordagem jurídico-profissional, dogmática da constituição, de outro. Com o controle normativo principal e incidental o TCF dispõe de possibilidades extensivas de supervisionar e eventualmente corrigir o legislador (das quais fez uso, até aqui, em mais de 800 casos). E ainda: O procedimento da reclamação constitucional coloca o tribunal em um diálogo próximo, ainda que estruturalmente assimétrico, com os tribunais ordinários ocupados por juízes de carreira, no curso do qual – se se consideram somente decisões de tribunais federais desde 1991 – em torno de 400 decisões – num universo de 30.000 examinadas (1,4%) – foram cassadas em função de violações a direitos fundamentais.
Com auxílio do tradicional método de concretização jurídica (“Rechtsfindungsmethode”), difundido na prática e na ciência jurídicas alemãs, o TCF extraiu da Lei Fundamental, usada como parâmetro jurídico, uma miríade de proposições constitucionais, que em densidade e alcance, detalhamento e sistematização não encontram um par à altura. Isso vale de maneira indisfarçável para os direitos fundamentais, que – em conformidade com a tendência de aperfeiçoamento e expansão do sistema dogmático (“interno”) – irrigam todo o restante direito “infraconstitucional” de modo crescente e, assim, o ajustam à e a partir da constituição. Nisso, às vezes, exagera-se na dose.
Exemplos de uma tal hipertrofia da influência (do tribunal) constitucional são perceptíveis na ampliação de pretensões fundamentais de proteção e numa dependência, estimulada pela máxima da proporcionalidade, da capacidade dos direitos fundamentais de guiar condutas com relação às circunstâncias concretas do caso. Como consequência, não é fácil, por um lado, para a jurisdição ordinária prever quais parâmetros o TCF deseja ver aplicados in concreto e de que forma. E, por outro lado, atender às exigências de proporcionalidade, minuciosamente esculpidas caso a caso pelo TCF e calibradas com vistas à realização judicial (não parlamentar) do direito, é algo que sobrecarrega o legislador, a operar sob as condições de uma democracia competitiva pluripartidária.
Que as primeiras sete décadas do aniversariante possam ser interpretados cabalmente como uma história de sucesso linear e consistente, ainda que em muitos aspectos não livre de atritos, não deve induzir equivocadamente à suposição de que esta posição de prestígio do TCF permanecerá inconteste no futuro.
O modelo de sucesso de Karlsruhe se apoia de várias maneiras em pressupostos extrajurídicos, que por sua vez são frágeis, podem se modificar e, em alguma medida, já se encontram em mutação. Aí encontram lugar, para nomear apenas dois fatores, uma cultura política de compromissos, de transparência e de respeito (ao menos institucional), assim como uma cultura comunicativa aberta a argumentos e contra-argumentos, à autenticidade e à tolerância; ambas se veem na berlinda em tempos de “social media” e populismos de diferentes matizes. Para que seja possível continuar a escrever a história de sucesso da República Federal (jurisdicional-constitucional) da Alemanha, será necessária uma prática de zelo pela jurisdição constitucional encabeçada pelo próprio tribunal e encampada pelos formadores públicos de opinião.
Nos últimos 30 anos, a integração europeia, na versão que lhe é conferida pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (“EuGH”), em Luxemburgo, tem se consolidado como desafio para a visão constitucional e para a autocompreensão do TCF. Pode-se discutir se o tribunal constitucional agiu sempre, neste particular, de modo satisfatório, como quando – em última análise não pouco em defesa do próprio poder de influência – buscou abrigo em uma interpretação marcadamente extensiva da identidade constitucional protegida pelo artigo 79 (3) da Lei Fundamental (“Lisboa” – Segundo Senado), de um lado, ou em uma ampliação não menos audaciosa dos parâmetros jusfundamentais (“direito ao esquecimento” – Primeiro Senado), de outro lado.
De uma coisa certamente não se poderá acusar o tribunal: de que ele não tenha continuamente buscado o diálogo e reconhecido a posição de seu parceiro em Luxemburgo (sendo a recíproca dificilmente verdadeira). Não por acaso conceitos e concepções como “relação de cooperação“ (“Kooperationsverhältnis”) e “rede de tribunais constitucionais europeus” (“europäischer Verfassungsgerichtsverbund“) (A. Voßkuhle) são criações de Karlsruhe. O TCF apostou bastante cedo na cooperação no plano internacional. Assim, o tribunal é membro fundador tanto da congregação europeia quanto da congregação mundial de tribunais constitucionais (conferência europeia de tribunais constitucionais, desde 1972; conferência mundial de tribunais constitucionais, desde 2009), e, já há aproximadamente duas décadas, importantes julgados são traduzidos pelo próprio tribunal para o inglês; recentemente também, de modo mais isolado, para o francês e para o espanhol.
Enxergar em tudo isso uma decidida profissão de fé ao multilateralismo jurisdicional-constitucional, é algo que não deve causar grande estranhamento. Neste contexto, é de se desejar ainda mais que a Comissão Europeia mostre força e discernimento, dando ao TCF como presente por seus 70 anos o encerramento do desafortunado e indigno procedimento por violação dos tratados europeus iniciado em função da decisão sobre o programa de aquisição de dívidas do Banco Central Europeu (“PSPP-Urteil”) do ano de 2020.
* Tradução de Rodrigo Garcia Cadore – Wissenschaftlicher Mitarbeiter na cátedra de Teoria do Direito e Direito Público da Albert-Ludwigs-Universität Freiburg, ligado ao Centro de Pesquisas Hans Kelsen (“Hans Kelsen-Forschungsstelle”) de Freiburg.