André Portugal

Agências reguladoras independentes são responsáveis por decisões de Estado de natureza predominantemente científica ou técnica. Por essa razão, costumam ter em seu quadro agentes tecnicamente qualificados para esse tipo de decisão, cuja argumentação tende a se preocupar com a demonstração de que, segundo as regras da ciência, a decisão que funciona é uma e não outra.
A ciência e suas regras, no entanto, têm enfrentado preocupante crise de reputação, o que se evidencia pelo crescente prestígio de charlatões em praticamente todas as áreas do conhecimento, das chamadas ciências duras às ciências sociais. E se antes esse charlatanismo residia na esfera pública, hoje ele governa o país. Não tardaria para que os ataques à ciência fossem direcionados às decisões das agências, especialmente aquelas diretamente vinculadas ao enfrentamento da pandemia. É o caso da Anvisa.
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Dois exemplos recentes demonstram que a mistura entre anticiência e autoritarismo, comum na história da política, ameaça a independência da Anvisa e o enfrentamento da pandemia. O primeiro é a decisão dela determinando que o Brasil adotasse o chamado passaporte vacinal, com o objetivo de, ao restringir o ingresso de pessoas não vacinadas, mitigar a propagação da variante ômicron no país. O segundo é outro ato da agência, no sentido de que a vacina da farmacêutica Pfizer fosse aplicada em crianças.
As duas decisões se pautavam em razões científicas. E em ambas, mas sobretudo na segunda, o que poderia ter sido uma saudável divergência transformou-se em ataque do governo federal à própria legitimidade da Anvisa. O presidente indicou que descumpriria as decisões da agência e ameaçou divulgar os nomes dos servidores que haviam tomado as decisões. O objetivo era intimidá-los. Não à toa, muitos desses foram obrigados a requisitar proteção policial, da PGR e do GSI. A situação é grave e deverá persistir.
A desigualdade vacinal ao redor do mundo, afinal, é prenúncio de um problema já alertado pela ciência: o surgimento de variantes e a permanência da pandemia. 2022 promete ser outro ano em que a Anvisa decidirá sobre questões fundamentais. Ao mesmo tempo, será ano eleitoral e de previsível aumento da mobilização das bases do governo, com toda sorte de fake news. A artilharia tenderá a se voltar contra a Anvisa.
Por isso, escrevi este pequeno manual, com cinco ideias que, penso, deveriam ser adotadas para assegurar a legitimidade e a aceitação das decisões da agência e, com isso, protegê-la desses infelizmente previsíveis ataques. Elas não são de fácil adoção, e a listagem tem a pretensão de ser antes o diagnóstico de um problema do que uma ilusória solução pronta.
<h3> Fundamentação para além da técnica</h3>
A ciência opera pela aplicação de regras empíricas, baseadas em relações de causalidade: se “a”, então “b”. Se, de acordo com as evidências de que os cientistas dispõem, a conduta “a” for adotada, então, segundo regras observadas em experimentos anteriores, acontecerá o resultado “b”. Se, em uma pandemia decorrente de um vírus letal, uma vacina for aplicada ao maior número de pessoas de uma sociedade, então o número de mortes resultantes da contaminação por esse vírus tenderá a reduzir nessa sociedade.
Este tipo de raciocínio empírico, como destaquei, está no âmago das decisões das agências reguladoras, notadamente a Anvisa. E é importante que seja assim. Mas as agências reguladoras não podem presumir que operam em um espaço alheio ao direito e às normas jurídicas, em que decisões de Estado que podem impactar milhões de pessoas se resumiria a acatar um teste de laboratório. Pelo contrário: especialmente porque os juízos empíricos, no caso das agências, costumam resultar em orientações de caráter normativo, é certo que muitas dessas decisões pressupõem premissas ou consequências que interferirão na liberdade das pessoas a quem elas se apliquem.
Por sua vez, o juízo normativo que decorre dessa interferência terá partido de premissas de filosofia política que definem a identidade de cada cidadão e, em última instância, a cultura constitucional de um povo. Uma coisa é a constatação empírica de que as vacinas são eficazes contra o novo coronavírus; outra, que pressupõe um juízo normativo, de natureza radicalmente diversa, é a afirmação de que a vacinação deve ser obrigatória para todas as pessoas. Não convém que este segundo tipo de decisão seja tomado por um colegiado de técnicos.
Não quero dizer, naturalmente, que as agências reguladoras não devem ter competência normativa. Apenas ressalto que elas precisam ter consciência dos limites dos juízos que lhes competem, para não recaírem em uma espécie de guardiania, que afasta a legitimidade de suas decisões. Elas precisam, em suma, mostrar-se sensíveis a esses limites normativos que o sistema jurídico impõe às suas decisões.
No final das contas, trata-se de um problema com que o próprio Judiciário obrigatoriamente se depara ao decidir sobre questões políticas fundamentais, e carece da mesma consideração: ignorar a natureza política dessas decisões pode resultar em perda de legitimidade de qualquer órgão contramajoritário, já que ele tende a conformar o direito e a política a seus juízos subjetivos.
<h3> Comunicação das decisões e atos normativos </h3>
As decisões e atos normativos das agências reguladoras são públicos e acessíveis por todo aquele que se interessar. Mas é preciso mais do que isso, já que as fake news sobre as decisões da agência pululam em ritmo e vigor muito mais eficaz do que a expectativa, muitas vezes frustrada, de que os cidadãos acessem os sites dessas agências e procurem, espontaneamente, a fundamentação delas. Como se passa no embate com as notícias checadas, também aqui as fake news “nadam de braçada”.
Por essa razão, as próprias agências devem adotar estratégias de comunicação para atingir o público leigo, no sentido de se propor a esclarecer aos não cientistas as razões pelas quais suas decisões são cientificamente embasadas e devem ser aceitas por todos. A ciência, quando pode vir a restringir a liberdade das pessoas, não pode se fechar em seus próprios laboratórios ou gabinetes e ignorar o imperativo de que os afetados por suas decisões sejam ouvidos e aceitem essas decisões como legítimas.
<h3> Ouvido aberto para as divergências  </h3>
Divergências fazem parte de esferas públicas plurais, de modo que nenhum órgão de Estado deve ter suas decisões imunes a críticas. Mesmo quando honestamente procuram aplicar a ciência de acordo com a leitura que fazem da Constituição, as agências reguladoras devem se abrir a críticas da sociedade e dos Poderes da República, intérpretes igualmente legítimos desses textos. Essas diferentes vozes devem poder ser ouvidas antes e depois das decisões das agências.
Daí por que o procedimento decisório das agências deve exigir audiências públicas das quais participem não apenas os setores regulados, mas também os diretamente afetados por essas decisões. A ideia não é nova, mas ela deve ser colocada em prática para o bem da legitimação das decisões das agências perante a sociedade.
É claro que, entre a divergência e a ameaça, há um mundo. Nenhuma agência deve tolerar ataques que visem a coagi-la e deslegitima-la institucionalmente. É contra esse tipo de ataque que esse aprimoramento do procedimento decisório procura se precaver.
<h3> Controle judicial responsável</h3>
A quarta medida não se dirige às agências, mas a seus controladores. O grande problema com que se depara todo estudioso do Direito Administrativo reside na régua que ele utilizará para medir a intensidade e a adequação do controle dos atos administrativos. Isto é: que critérios devem ser usados para apreciar um ato administrativo e julgar se ele é passível de controle ou se, pelo contrário, cabe ao Judiciário uma postura de deferência?
A resposta deve estar em algum lugar dessa diferença epistemológica entre os juízos para os quais as agências são capacitadas, isto é, os juízos empíricos, e aqueles que ostentam natureza eminentemente valorativa e/ou normativa. O corpo técnico das agências deve ostentar a prerrogativa de estabelecer as relações de causalidade empírica que fundamentam o juízo normativo sobre elas: se um medicamento funciona ou se ele é potencialmente danoso, a definição desta questão deve competir a um corpo técnico qualificado, não a parlamentares ou juízes.
Esse tipo de ato administrativo ou de premissa não deve ser, em regra, passível de controle judicial. Por outro lado, decisões que pressuponham escolhas valorativas devem competir ao Parlamento, não às agências; da mesma forma, decisões ou atos normativos que contrariem disposições constitucionais ou legais, isto é, que desconsiderem que a regulação pelas agências é limitada pelo direito, simplesmente transcendem o tipo de conhecimento que caracteriza essas agências. Atos dessa natureza tenderiam a ser passíveis de controle.
Eis um esboço dos critérios para um controle judicial responsável dessas decisões: direito e à ciência em seu devido lugar.
<h3> A importância de uma cultura científica</h3>
Defender decisões de agências reguladoras pautadas na ciência significa, em última análise, defender a ciência. Não à toa, a falta de apoio a essas decisões se deve também ao fato de que muitas pessoas não se interessam pela ciência, não a compreendem ou a consideram pouco valiosa, ou a uma soma desses três fatores. Daí resultam teorias da conspiração e pseudociências que, ao contrário da ciência, tomam a certeza como ponto de partida e se vangloriam de ter uma resposta simples, elegante, mas seguramente errada para toda e qualquer problema que se apresente.
Precisamos de fomento à educação científica, com o estímulo ao estudo de disciplinas como filosofia da ciência e o próprio método científico. Não porque todo cidadão brasileiro precisa se tornar um cientista, por óbvio, mas para que ele adquira o ferramental mínimo que lhe permita refletir e aceitar racionalmente as decisões que lhe afetam.

Anvisa

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JOTA

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