Ana Paula Peresi de Souza

Com a finalidade de aprimorar a uniformização regulatória no setor de rodovias federais, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/antt">ANTT</a>) colherá, até o próximo dia 12, contribuições a respeito da minuta da terceira norma do Regulamento das Concessões Rodoviárias, o RCR 3.
No RCR 3, serão disciplinados os mecanismos de equilíbrio econômico-financeiro, entre outros temas. Com isso, a ANTT busca trazer para o âmbito da regulação matérias hoje tratadas integralmente nos contratos (como é o caso dos Fatores A,C, D e E), ou parcialmente neles e parcialmente em resoluções esparsas (caso do Fluxo de Caixa Original e do Fluxo de Caixa Marginal).
Como a minuta reflete, em grande medida, o tratamento dado nos contratos a esses mecanismos, a aplicação em concreto das regras contratuais nos traz diversos pontos de atenção que devem ser observados pela ANTT ao editar o RCR3, parte deles tratados no livro Mecanismos de reequilíbrio econômico-financeiro: uma análise das concessões de rodovias federais<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Abaixo, trago para reflexão alguns desses pontos.
<h3>Parcelamento tarifário</h3>
Na minuta da resolução, permite-se que a ANTT parcele ou postergue o impacto decorrente de reequilíbrio econômico-financeiro a fim de evitar “grandes oscilações tarifárias” e “resguardar a estabilidade tarifária” (<a href="https://ibl.org.br/wp-content/uploads/2021/06/PORTARIA-No-97.2021-%E2%80%93-MINISTERIO-DA-INFRAESTRUTURA-ANTT-DUP-1.pdf">artigos 97</a>, 123, §4º, e 125, §4º). Assim, mesmo que a aplicação de um dos mecanismos de reequilíbrio aponte a necessidade de alteração da tarifa para preservar o equilíbrio contratual, a ANTT pode deixar de aumentá-la ou diminui-la de uma só vez, diluindo a modificação do valor ao longo dos anos ou até mesmo postergando a alteração por tempo indeterminado.
A postergação e o parcelamento tarifário poderiam ocorrer em situações em que a recomposição em favor da concessionária geraria aumento significativo do valor da tarifa, assim onerando os usuários repentinamente. Também se aplicariam nos casos em que a repactuação do equilíbrio em favor do Poder Concedente e usuários culminaria, de uma só vez,  em redução drástica da tarifa, podendo levar a concessionária a problemas de liquidez.
Ocorre que, como não há parâmetros de valores ou de tempo para tais parcelamento e postergação, há ampla discricionariedade conferida à ANTT. Cabe a tal agência definir (i) as situações que ensejam o parcelamento ou a postergação da tarifa, baseando-se apenas nos conceitos indeterminados “evitar grandes oscilações tarifárias” e “resguardar a estabilidade tarifária”, (ii) o valor a ser parcelado ou postergado e (ii) o tempo pelo qual perdurará a postergação ou parcelamento.
O parcelamento tarifário, já previsto em alguns contratos de concessão do setor, sofreu críticas. O Tribunal de Contas da União (TCU) apontou a ausência de parâmetros para a estipulação do parcelamento, não “precatando-se contra injustificáveis delongas no ajuste das tarifas e seu consequente descolamento em relação ao custo de prestação do serviço”, o que poderia levar a uma administração arbitrária da tarifa pela ANTT<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Para evitar tal situação, é salutar que o exercício da competência discricionária da ANTT seja mitigado por meio do estabelecimento de parâmetros objetivos (e.g. sistema de ‘bandas’ ou intervalos de variação), de marcos temporais e de regras que determinem os passos e os fatores a serem considerados pela agência durante a tomada de decisão acerca do parcelamento.
O estabelecimento de certos contornos conferiria maior previsibilidade a todos os agentes envolvidos na concessão, evitando a circunstância em que, embora definida em que medida a tarifa deve ser revisada para promover o reequilíbrio, não se sabe se ocorrerá a recomposição em sua integralidade ou se haverá a postergação e/ou parcelamento tarifário e, caso ocorram, por quanto tempo perdurarão e quanto custariam, ao final.
<h3>Fator D e culpabilidade</h3>
O Fator D é um mecanismo que reduz a tarifa básica de pedágio quando constatado que a concessionária atrasou ou não executou certas obras e serviços ou, ainda que os tenha executado, não alcançou os parâmetros de desempenho estipulados.
O artigo 116, §1º, da minuta da resolução estabelece que o Fator D aplica-se “independentemente de aferição de culpa da concessionária”. Já o artigo 106, parágrafo único, prescreve que a constatação da inexistência de culpa da concessionária tem como consequência apenas desconstituí-la da mora.
Essas disposições partem da lógica de que o desconto determinado contratualmente incide em sua integralidade mesmo que a concessionária não tenha dado causa à inexecução contratual e ainda que decorra de evento cujo risco está alocado ao Poder Concedente. Isso porque, conforme essa lógica, o estado do contrato em equilíbrio deve refletir os custos em que a concessionária deixou de incorrer ao não executar a obra e serviço ou a executá-los a descontento, mesmo que não tenha dado causa ao evento que resultou na inexecução e não seja a parte responsável por tal risco.
Porém, nem sempre a concessionária deixa de arcar com custos quando há inexecução. Em alguns casos, incorre em parte dos custos previstos para a execução daquela obra ou serviço, pelos quais, todavia, não será remunerada, pois a obra ou o serviço não será concluído; em outros casos, arca com custos que decorrem justamente do fato de não se poder concluir a obra ou o serviço.
Nessas situações, incide o Fator D, pois a obra e o serviço não entregues não integram a real equação econômico-financeira do contrato. Todavia, por outro lado, quando o fato que impediu a execução da obra ou serviço ou sua realização a contento não decorre de conduta da concessionária e se trata de evento cujo risco não lhe foi alocado, a empresa deve ser indenizada pelos custos incorridos, ainda que incida o Fator D. Portanto, a análise do nexo de causalidade somada à observância da matriz de riscos é essencial para definir os efeitos da inexecução contratual que enseja a aplicação do Fator D.
É sob essa ótica que os referidos artigos da minuta merecem ser analisados para não mais desconsiderar, por completo, a causalidade na incidência do Fator D.
<h3>Fator E e a definição dos novos percentuais do Estoque de Melhorias</h3>
O Estoque de Melhorias é uma cesta com um conjunto de obras previstas no contrato de concessão que devem ser executadas pela concessionária, sempre que instada pela ANTT. Nesse estoque, estão definidos os percentuais (Fator E) que representam o impacto dos custos de cada uma das obras sobre a tarifa. Cada contrato estabelece um limite para realização dessas obras, como, por exemplo, 10%.
Concluída a execução da obra de melhoria contemplada no Estoque de Melhorias, o percentual correspondente ao Fator E dessa obra é abatido do percentual total. Por exemplo, realizada a construção de uma passarela, cujo percentual é de 1% sobre o valor da tarifa, o saldo do Estoque passa para 9%. Quando esse saldo zera, o desequilíbrio decorrente da execução de novas obras de melhorias passará a ser considerado para fins de recomposição da equação por meio de outro mecanismo de reequilíbrio, por exemplo, Fluxo de Caixa Marginal.
Embora esse mecanismo pressuponha que as obras estejam previstas no Estoque de Melhorias estipulado no contrato, a ANTT admite a inclusão de obras de melhorias ali incluídas em tal instrumento por ocasião de sua assinatura, “desde que respeitado o percentual máximo estabelecido na avença” (ou seja, no exemplo acima, 10%). Nos casos em que não há correspondência direta entre a melhoria necessária e as espécies de obras indicadas no Estoque de Melhorias, é facultado à ANTT compor novos percentuais, tomando como referência aqueles já definidos contratualmente.
Dessa possibilidade nasce o receio de que os percentuais do Fator E de obras não previstas no Estoque de Melhorias sejam estabelecidos unilateralmente pela ANTT com base em parâmetros sem a devida clareza. Essa preocupação é corroborada pelo fato de que os contratos que atualmente preveem esse mecanismo de reequilíbrio nada prescrevem sobre a forma como os novos percentuais serão compostos, limitando-se a prescrever que buscará equipará-los aos percentuais já pré-fixados no contrato. Nada preveem tampouco sobre a participação da concessionária na composição de novos percentuais.
É certo que deve haver consenso entre a concessionária e a ANTT, pois os novos percentuais a serem integrados ao Estoque de Melhorias nada mais são do que a remuneração paga à concessionária, por meio do reequilíbrio contratual, pela execução de obra de melhoria incorporada ao contrato de concessão durante seu curso. Trata-se, portanto, de aspecto econômico-financeiro da concessão, o que impede que tais percentuais sejam definidos unilateralmente pela agência reguladora.
O RCR 3 é uma boa oportunidade para que a ANTT discipline sobre a participação da concessionária na definição dos novos percentuais que comporão o Estoque de Melhorias no curso da concessão, assim evitando qualquer margem de atuação unilateral por parte da agência.
É inegável o peso do setor de rodovias federais no desenvolvimento dos mecanismos de reequilíbrio econômico-financeiro. Diversas previsões atualmente previstas nos contratos e na minuta do RCR3 são fruto da capacidade de aprendizagem da ANTT, das concessionárias e dos controladores públicos no âmbito de um consolidado programa de concessões. Para que a evolução regulatória siga constante, é importante que as contribuições acima e outras indicadas por atores diversos sejam amplamente discutidas, sendo o atual momento ideal para tanto.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> SOUZA, Ana Paula Peresi de. Mecanismos de equilíbrio econômico-financeiro. Uma análise das concessões de rodovias federais. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2022.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2] </a>BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 86/2015. Ministro Relator: Walton Alencar. Brasília, DF, 6 fev. 2015.

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JOTA

ANTT e os mecanismos de reequilíbrio nas concessões de rodovias

Três contribuições para o RCR 3, o Regulamento das Concessões Rodoviárias, que terá contribuições colhidas pela ANTT