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Antitruste assimétrico em mercados digitais

Quais atributos de determinados agentes econômicos justificariam a adoção de tratamento diferenciado?

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Crédito: Unsplash

Mercados digitais suscitam novos desafios regulatórios e concorrenciais. A complexidade dos modelos de negócios das empresas que atuam nesses mercados tem provocado, assim, inovações na utilização da “caixa de ferramentas” da qual se vale o Estado para organizar e disciplinar a atividade econômica na economia digital.

O que se nota no caso da supervisão das atividades das chamadas big tech (grandes empresas de tecnologia que utilizam plataformas digitais como infraestrutura para seu modelo de negócios) é a progressiva tendência à utilização de ferramentas regulatórias e de instrumentos típicos da defesa da concorrência por autoridades públicas, bem como a emergência de instrumentos regulatórios híbridos, que combinam características convencionalmente atribuídas a esses dois campos.

Uma dessas inovações híbridas que estão sendo desenhadas em resposta a preocupações relacionadas a mercados digitais, é o que se poderia chamar de “antitruste assimétrico” – o emprego de certas regras cuja intensidade e rigor dependem – assim como são por tais fatores moduladas – do porte ou do poder de mercado da empresa ou conglomerado em questão, entre outras variáveis chave.

Tais regras diferenciadas estariam lastreadas na aplicação de pressupostos, teorias, presunções, testes ou remédios de natureza regulatória ou quase-regulatória e teriam como objetivo o fomento ou promoção da concorrência. Isto é, trata-se de um conjunto de regras que busca atingir um fim típico do antitruste, mas que, para tanto, faz uso de conceitos e estratégicas típicos de regulação setorial.

Essa nova abordagem, que se traduz na criação de regras pro-competitivas aplicáveis apenas a alguns agentes do mercado, já está sendo incorporada a propostas legislativas em tramitação na União Europeia, no Reino Unido, nos Estados Unidos e na Alemanha. As propostas têm em comum o objetivo de estabelecer novas obrigações ex ante (predefinidas) e robustecer o escrutínio de empresas dominantes, com grande poder de mercado, diferenciando-as de demais atores econômicos.

O “antitruste assimétrico” busca, assim, estabelecer um regime pro-concorrencial e proporcional ao risco representado pelo agente econômico: quanto maior e mais poderosa a empresa ou o conglomerado, maiores seriam os riscos à livre concorrência, o que, em consequência, justificaria regras específicas e qualificadas.

Mas como identificar quais empresas devem estar sujeitas a obrigações mais severas? Quais atributos de determinados agentes econômicos justificariam a adoção de tal tratamento diferenciado? A aplicação do antitruste assimétrico depende da inequívoca identificação de critérios claros para identificação e classificação das plataformas dominantes – também chamadas de gatekeepers –, uma tarefa nada trivial.

O caso dos serviços financeiros e meios de pagamento, mercado no qual o direito antitruste convencional e a regulação setorial convivem há algum tempo, oferece elementos concretos e pistas relevantes, iluminando novas e instigantes facetas do debate.

Acesso a dados e usuários: a entrada das big techs nos mercados financeiros

Alguns dos critérios considerados para a aplicação do antitruste assimétrico são o tamanho da base de usuários e o volume de dados processados e coletados por plataformas digitais. Tais características são sem dúvidas vantajosas para a competitividade de empresas de tecnologia – incluindo as chamadas big tech – no mercado de serviços financeiros.

Como se sabe, com o aumento da demanda por soluções de pagamento cashless, que não envolvem a troca de dinheiro vivo, a oferta de sistemas de pagamento digital vem aumentando rapidamente. A pandemia de Covid-19 e as medidas de distanciamento social fortaleceram ainda mais essa tendência. Assim, diversas empresas têm explorado a oferta de serviços criando ou utilizando plataformas que permitem movimentar moeda com apenas alguns toques na tela, ou no teclado de telefones celulares.

No campo financeiro, o fator distintivo das big techs reside no fato de que elas conseguem superar limites de escala ao utilizar dados de usuários de serviços que elas já oferecem para muito rapidamente obterem ganhos (e economias de escala) nos novos mercados (financeiros) onde passam a atuar, aproveitando e catalisando, com isso, os efeitos de rede dos serviços digitais.

O negócio financeiro das big techs, afirma um relatório recente do Bank for International Settlements (BIS), se desenvolve de forma crescente em torno da interação direta entre suas plataformas e os usuários, e em torno dos dados gerados como subprodutos dessas interações.

Isto é: quanto mais utilização dos serviços originalmente prestados pelas plataformas houver, mais dados serão gerados, reforçando, assim, as vantagens que decorrem dos efeitos de rede em sua atuação nos mercados financeiros. Trata-se do efeito “DNA-loop” (data-network-activities), uma dinâmica retroalimentativa que tem trazido preocupações e novas propostas regulatórias, sobretudo à luz do avanço de big techs dominantes (dotadas de expressivo poder de mercado) no sistema financeiro.

Posição de mercado estratégica e as plataformas gatekeepers

Outro aspecto fundamental da estrutura de mercados digitais apontadas como determinantes para o nível de concorrência no setor – e um possível critério para a aplicação do “antitruste assimétrico – é o fato de que certas empresas controlam infraestruturas-chave, das quais outras empresas dependem para operar. Tal característica revela, desde logo, o fato de que em certos casos pode haver novas assimetrias de poder no contexto dos ecossistemas (de produtos e empresas associadas) em que atuam tais empresas dominantes.

Em outras palavras, é típico dos mercados digitais o fato de uma empresa poder atuar como intermediária ou principal fornecedora de infraestrutura para diferentes grupos de clientes, sejam tais clientes outras empresas, empreendedores individuais ou usuários finais.[1]

A estrutura desses mercados possibilita que certos agentes empresariais se valham de posição privilegiada, com poder para decidir como o mercado é organizado e estruturado, assim como para influenciar a entrada e a alocação de valor entre os participantes da indústria.

Em certa medida, na ausência de regulação estatal específica, tais agentes teriam poder suficiente para estabelecer as regras do jogo aplicáveis a todas as outras empresas que dependam de sua estrutura – incluindo comerciantes, produtores e desenvolvedores, bem como participantes de outros marcados adjacentes. Tais big techs dominantes são por isso descritas como guardiãs (gatekeepers, no termo em inglês), devido à sua capacidade de controlar uma rede, instalação ou entrada essencial da qual aqueles que fornecem um bem ou serviço complementar dependem para operar.

Nos mercados financeiros nos quais atuam grandes plataformas digitais, uma preocupação central consiste em fazer com que players dominantes assegurem, seguindo critérios equânimes, a interoperabilidade com outros serviços e atores econômicos, de forma tal que competidores possam oferecer seus serviços à plataforma, mas também possam com ela contratar. Isso porque efeitos de rede poderosos e o entrincheiramento de redes fechadas podem levar à fragmentação de estruturas de pagamento, em detrimento da natureza de bem público da moeda.[2]

Nesse sentido, a regulação financeira – no caso brasileiro, sob responsabilidade do Banco Central (BC) – pode vir a impedir que as plataformas estabeleçam, elas mesmas, padrões de interoperabilidade. O mesmo vale para regras de não discriminação, uma vez que plataformas digitais, podem atuar para impedir a entrada e a expansão de agentes em diferentes níveis da cadeia vertical envolvida. Não raro, a própria infraestrutura da cadeia é também influenciada ou mesmo controlada pelas big techs.

O “antitruste assimétrico” no cenário internacional

Como mencionado, preocupações como estas têm levado diferentes países ao redor do mundo a discutir a adoção de obrigações adicionais para empresas que ocupam posições estratégicas e que sejam dominantes em seus mercados – fornecendo alguns exemplos do que denominamos aqui de “antitruste assimétrico”. Exemplos disso são o Digital Markets Act proposto pela Comissão Europeia[3] e as regras que serão criadas pelo Digital Markets Unit no Reino Unido.[4]

Na Europa, a criação de um regime regulatório proporcional (ou assimétrico)[5], estabelecendo regras diferenciadas para empresas com determinadas características, não é nova e já foi adotada internacionalmente em outros setores da economia. Desde 2002 as empresas de telecomunicações que detêm poder de mercado significativo (Significant Market Power - SMP) estão sujeitas a obrigações específicas, enquanto os participantes menores, que representam menores riscos concorrenciais, estão isentos de tais regras mais onerosas.[6]

Ou seja, há modelos regulatórios que estabelecem obrigações ex ante específicas impostas às empresas com poder de mercado significativo, que visam a remediar as falhas de determinado mercado relevante e a evitar o surgimento de uma situação anticoncorrencial, tal como discriminação ao acesso à infraestrutura de comunicações.

No Brasil, a aplicação de regras desse tipo para mercados digitais dependeria de regulação específica ou setorial. Órgãos tais como a Senacon, a ANPD e o BC – com competência regulatória – poderiam criar obrigações assimétricas, específicas e qualificadas para empresas de tecnologia que tenham poder de mercado sistêmico.[7]

A legislação existente, no entanto, poderia ajudar a determinar os critérios para diferenciação das empresas. Por exemplo, os conceitos concorrenciais de definição de mercado relevante e poder de mercado podem ajudar a interpretar a escala de obrigações que as plataformas que controlam o acesso a ecossistemas digitais e a grupos de usuários têm de cumprir em regulação específica.

Ou seja: reguladores financeiros, em diálogo com autoridades antitruste e autoridades consumeristas e de proteção de dados podem, por meio de uma interação institucional coordenada, criar regimes regulatórios efetivos que fomentem a concorrência no mercado financeiro sem comprometer a higidez e a integridade sistêmica. Tal atuação conjunta seria também capaz de assegurar que o poder de mercado das big tech e o fato delas dominarem certas infraestruturas não permitam, entre outras coisas, que elas coletem dados de forma excessiva ou desarrazoada das empresas que delas dependam e, eventualmente, com ela concorram.

Os contornos e aplicações do “antitruste assimétrico” aos mercados digitais, que identificamos como parte da fronteira ou da vanguarda do direito econômico, ainda estão em construção, cabendo à academia, aos formuladores de políticas públicas e operadores do direito em geral a tarefa de desenvolvê-los, aperfeiçoá-los e aplicá-los de forma consistente, coerente e justa.


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[1] Devido à interdependência entre vários produtos e atividades e à interconexão entre diferentes grupos de usuários, a literatura tem comparado mercados digitais aos ecossistemas. Ver por exemplo JACOBIDES, Michael G. and LIANOS, Ioanis. Ecosystems and Competition Law in Theory and Practice. CLES Research Paper 1/2021, 2021.

[2] Cf. Regulating Big Tech in Finance”. BIS (Bank of International Settlements), n. 45 (August, 2021), cit.

[3] Na União Europeia, a Comissão Europeia propôs a introdução do Digital Markets Act, que prevê um regime regulatório diferenciado para plataformas digitais grandes classificadas como gatekeepers, estabelecendo para elas um conjunto de obrigações comportamentais. A proposta define gatekeeper como uma plataforma que tem (i) uma forte posição econômica, tem (ii) uma forte função de intermediação (ligando uma grande base de usuários a um grande número de empresas) e tem (iii) posição consolidada e durável no mercado. Para as empresas que se encaixam nestes critérios, as obrigações propostas incluem a proibição de condutas discriminatórias, requisitos de interoperabilidade e portabilidade de dados, bem como regras relativas à coleta e tratamento de dados, entre outros.

[4] No Reino Unido, o governo propôs um novo regime regulatório pró-concorrencial para os mercados digitais. O novo regime introduziria regras diferenciadas para empresas de tecnologia que desfrutam de “status de mercado estratégico” (strategic market status - SMS), definido como corporações que detêm “poder de mercado substancial e entrincheirado, sendo os efeitos desse poder de mercado particularmente generalizados ou significativos”. Tal regime regulatório ficaria sob responsabilidade de uma nova Unidade de Mercados Digitais (Digital Markets Unit - DMU), subordinada à CMA, e criaria novas regras para empresas SMS, estabelecendo, assim, como devem se comportar em relação a outras empresas a clientes e usuários. A proposta nasceu de um grupo de trabalho focado em mercados digitais, liderado pela autoridade de concorrência britânica (Competition and Markets Authority - CMA) em parceria com o regulador de telecomunicações (Ofcom), a autoridade de proteção de dados (Information Commissioner's Office - ICO) e o regulador financeiro (Financial Conduct Authority - FCA), foi estabelecido com o objetivo de desenhar e implementar um novo modelo regulatório pró-concorrencial. Ver https://www.gov.uk/government/news/government-unveils-proposals-to-increase-competition-in-uk-digital-economy

[5] Marie-Anne Frison-Roche explica em que consiste, em termos gerais, a estratégia de regulação assimétrica: “assimetria é um conceito-chave da regulação. De fato, um mercado competitivo funciona melhor quando operadores estão em relações simétricas, isto é, quando não há obstáculo estrutural que impede um agente de aumentar seu poder apenas por seus méritos ("competition by merits"). Se há assimetria, por exemplo porque um setor é monopolístico e o legislador acaba de declará-lo aberto à competição, há uma assimetria temporária entre o incumbente e as empresas que pretendem entrar no mercado, os novos entrantes. (...) A assimetria pode não ser temporária e sim definitiva quando a desigualdade entre os operadores, para além do mérito, não vem da liberalização mas de uma falha estrutural do mercado”. Cf. Marie-Anne Frison-Roche “Asymmetry: Asymmetric Regulation/Asymmetry of Information”, acessível em http://thejournalofregulation.com/en/article/asymetrie-regulation-asymetrique-asymetrie-dinform/

[6] A identificação de uma empresa como tendo poder de mercado significativo, no modelo regulatório de telecomunicações da União Europeia, significa que, numa perspectiva estrutural e a curto e médio prazos, certa empresa detém suficiente poder de mercado em um mercado relevante específico, a ponto de levantar preocupações acerca de como o comportamento desta empresa afetará seus concorrentes, outras empresas, e consumidores. Ver documento “Guidelines on market analysis and the assessment of significant market power”, disponível em https://digital-strategy.ec.europa.eu/en/library/guidelines-market-analysis-and-assessment-significant-market-power

[7] O poder de mercado é um conceito concorrencial tradicionalmente definido em relação a um mercado específico, incluindo discussão acerca da natureza do produto ou serviço, do local ou determinação geográfica da oferta do produto ou serviço, e aspectos temporais acerca da duração do poder de mercado, se é uma situação persistente ou transitória.logo-jota

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