Juliana Leme Faleiros

O acesso a uma educação plural e inclusiva que atenda aos interesses de todos os grupos sociais tem sido, historicamente, atacado pelos grupos conservadores. Há forte reação à democratização do processo educacional que, nos últimos anos, se tornou mais intensa como se vê pela defesa do homeschooling, do projeto escola sem partido e da difusão do slogan “eu educo meu filho, a escola ensina”. Estes grupos reagem a diversos temas, especialmente, quando se trata de identidade de gênero e orientação sexual.
Apesar de as diretrizes educacionais disporem sobre a necessidade de a educação versar sobre direitos humanos, em toda sua gradação, os grupos conservadores se vale da ausência de determinação expressa na legislação acerca de identidade de gênero e orientação sexual. Em sua compreensão, por não ter lei com tais expressões, não estão obrigados a tratarem deste tema.
Esse entendimento acarretou perseguições e cerceamento da atuação profissional dos professores em níveis preocupantes, o que levou o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) a ajuizar uma ação (ADI 5668) perante o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">Supremo Tribunal Federal (STF)</a> para ver o art. 2º, III, da <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L13004.htm#:~:text=LEI%20N%C2%BA%2013.004%2C%20DE%2024%20DE%20JUNHO%20DE%202014.&amp;text=Altera%20os%20arts.,Art.">Lei 13.004/2014</a> (Plano Nacional de Educação) ter interpretação conforme à Constituição. A redação deste dispositivo é “art. 2º São diretrizes do PNE: [...] III - superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação; [...].”
Em julho de 2024, o plenário virtual do STF decidiu a ADI 5668 que, como resumido pelo relator, ministro Edson Fachin, trata da “relação entre as diretrizes programáticas da educação brasileira e o combate às discriminações por gênero e orientação sexual.” Ou ainda, a relação entre o direito à educação e o sentido da igualdade no Estado democrático de Direito.
Os ministros, em sua maioria, seguiram o voto do relator; apenas Nunes Marques divergiu, julgando improcedente o pedido e declarando a constitucionalidade das normas em seus próprios termos. Interessante notar que Flávio Dino concordou, abrindo um complemento ao voto no seguinte sentido: “devem ser observados os preceitos pedagógicos de adequação do conteúdo e da metodologia aos diferentes níveis de compreensão e maturidade, de acordo com as faixas etárias e ciclos educacionais.” Este entendimento foi seguido pelos ministros Cristiano Zanin, Gilmar Mendes e André Mendonça e restou vencido.
Ao final ficou assentada “a interpretação conforme a Constituição ao art. 2º, III, da Lei Federal 13.005/2014 (Plano Nacional de Educação), a fim de reconhecer a obrigação, por parte das escolas públicas e particulares, de coibir as discriminações por gênero, por identidade de gênero e por orientação sexual, coibindo também o bullying [intimidação sistemática] e as discriminações em geral de cunho machista (contra meninas cisgêneras e transgêneras) e homotransfóbicas (contra gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais).”
Além do resultado garantir dignidade a todas as pessoas inseridas num ambiente escolar, assegurando um processo educacional pautado na pluralidade, na promoção da igualdade, com respeito à diferença, o ministro sugeriu a necessidade de superação da tese da supralegalidade dos tratados de direitos humanos não aprovados pelo Congresso Nacional (art. 5º, § 3º, CF).
Para o relator, há que se vivificar “a cada vez mais evidente fertilização recíproca entre a ordem constitucional interna e o direito internacional dos direitos humanos, assim como o imperativo de tornar plenamente eficazes os acessos de indivíduos e grupos sociais aos direitos fundamentais tem exigido a dilatação desta compreensão". Para ele, os tratados internacionais de direitos humanos têm natureza constitucional e, seguindo o entendimento de André de Carvalho Ramos, o art. 5º, §3º, CF, dita uma faculdade ao Poder Legislativo para caso de, querendo, dar mais robustez e efetividade aos direitos fundamentais.
Fazendo um percurso sobre os documentos jurídicos internacionais, a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/corte-idh">Corte IDH</a>), bem como do posicionamento do STF acerca do direito antidiscriminatório dos grupos vulnerabilizados, o relator entendeu que o “déficit de clareza” em relação a eles demanda a explicitação e inclusão da vedação de conduta discriminatória baseada em gênero ou orientação sexual. Diante disso, “viola a Constituição da República, e o conjunto de compromissos convencionais assumidos pelo Estado Brasileiro, qualquer leitura da cláusula de abertura semântica da igualdade que não albergue o combate às desigualdades de gênero e de orientação sexual".
Vê-se que, a inação do Poder Legislativo, da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, ao não legislar expressamente sobre o tema da não discriminação de grupos vulnerabilizados, desequilibra o princípio de separação dos poderes e impele o Judiciário a, munido de seu caráter contramajoritário, garantir os direitos humanos de grupos sociais minorizados por meio do controle de constitucionalidade e de convencionalidade.
A promoção e incremento de direitos, inclusive com forte pressão internacional, é tensionada com a visão de mundo conservadora e excludente da sociedade brasileira. Historicamente, a solução para tais tensões é encontrada “pelo alto”, ou seja, acordos feitos pelos grupos políticos e econômicos que estão no poder, acomodando interesses, por vezes, antagônicos, sem que haja participação popular.
O caráter conservador do sistema político faz com que este expediente, a solução pelo alto, seja a tônica da política brasileira. Já tivemos a centralidade do Poder Executivo e, nos últimos tempos, as sucessivas crises, econômica e política, intensificam as contradições presentes e o Judiciário tem sido compelido ao centro das decisões do país. Se até início do século 21, o STF era um ilustre desconhecido, na atualidade seus membros chegam a status de celebridade, com fãs e detratores, que necessitam de segurança reforçada 24 horas por dia.
Oscar Vilhena Vieira trata esse assunto como supremocracia; Ran Hirschl nomeia de juristocracia; Diego Werneck Arguelhes e Leandro Molhano Ribeiro, por seu turno, referem-se à ministrocracia. A meu ver, se trata de autocracia burguesa nos exatos termos de Florestan Fernandes, ou seja, a união das frações burguesas, ainda que tenham rusgas entre elas, se posicionam contra qualquer tipo de participação popular. A união se dá com intento de deter o poder, excluir a classe trabalhadora e impedir a ampliação da democracia, que se mantém restrita a seus membros.
Dito de outra maneira, a autocracia burguesa, no Brasil, é a expressão dos acordos feitos entre as frações burguesas nacionais e internacionais a fim de garantir a máxima expropriação da exploração do trabalho. Neste acordo, as frações burguesas nacionais ocupam o lugar de sócia menor e, portanto, resta a elas atenderem os ditames econômicos bem como políticos e sociais vindos de fora.
A autocracia, para Florestan Fernandes, tem três facetas – a democrática, a fascista e a autoritária – e se expressa como amálgama das relações sociais brasileiras. Como as tensões são profundas e intensas, o Estado passa a ter espaço significativo na estrutura social, concentrando o poder político em níveis extremos.
À vista da pressão internacional para que as questões de gênero sejam tratadas no ambiente escolar, vide os tratados internacionais e a jurisprudência da Corte IDH, cabe ao Estado brasileiro acatar. Porém, esse acatamento é permeado pelas múltiplas determinações e contradições da sociedade brasileira, o que leva, mais uma vez à solução “pelo alto” que, no século 21, a instância tem sido o Poder Judiciário.
A mim me parece que, apesar da acertada posição do STF, a complementação oferecida pelo ministro Flávio Dino seguida por três ministros indica a permanência do descompasso entre a decisão “pelo alto” e a materialidade das relações sociais. Note que o relator quis dar efetividade, explicitando o que é não discriminação e direcionando a interpretação para a Constituição e o sistema internacional de direitos humanos.
O foco da decisão foi eliminar a vagueza de sentido e impingir o debate sobre orientação sexual e identidade de gênero para dentro do ambiente educacional. Aceitar a complementação, no sentido de respeitar a idade e o desenvolvimento da criança, que diz o óbvio já presente nos diversos regramentos educacionais, mostra o tensionamento para a manutenção da vagueza no seio do Plano Nacional de Educação.
A complementação atende aos conservadores porque dá abertura para compreensão de que identidade de gênero e orientação sexual não devem ser temas na educação básica por não respeitar a idade e o desenvolvimento da criança. Os direitos humanos, especialmente, o que diz respeito a gênero, são temas que constrangem para a ampliação do acesso a bens e direitos e, por isso, carregam tensão na disputa para sua implementação dada a autocracia burguesa por meio do Estado.

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JOTA

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