Resposta

Antes malvado que favorito

Judiciário não deve superestimar suas capacidades de decisão em comparação com os outros Poderes

Imagem: YouTube

Em artigo publicado no JOTA em 2 de maio de 2020, Fernando Pessoa de Aquino Filho, Lucas Gabriel Braz e Silva e Thiago Pereira Alves comparam o fenômeno do ativismo judicial ao personagem da animação Meu Malvado Favorito, figura que vem se tornando popular na cultura pop [1].

Na simpática analogia do trio de autores, o trio de “adoráveis órfãs” da trilogia cinematográfica representaria a democracia brasileira, “ainda jovem e imatura”, que deveria ser tutelada pelo ativismo judicial, encarnado em Gru, aparentemente maldoso, mas dotado de virtudes que emergem a partir do afeto dedicado às suas tuteladas.

Esta tutela far-se-ia necessária no momento de crise, pois, embora bem intencionado, o Poder Legislativo atuaria mediante processo “moroso e insuficiente para suprir as novas demandas da sociedade durante a crise decorrente da pandemia” e o Poder Executivo estaria em “cristalina crise orgânica”, de modo que estes dois poderes padeceriam de “falta de protagonismo e efetividade”, sendo o Judiciário o único dotado de “meios de tutela adequada, tempestiva e efetiva de direitos”.

A afirmativa é corajosa, tendo em vista que, na experiência do Direito Constitucional, normalmente é o Poder Executivo que é fortalecido em tempos de crise [2], o que é coerente com o ordenamento jurídico brasileiro, que atribui a este Poder – em todas as esferas da Federação – a competência para adotar medidas de controle epidemiológico (art. 12 da Lei 6.259/1975 e art. 6º, § 2º, da Lei 8.080/1990), em conformidade com a reserva de administração que o Supremo Tribunal Federal parece ter reconhecido no caso da fosfoetanolamina (Medida Cautelar na ADIn 5.501/DF).

No entanto, a despeito de corajosa, a afirmativa do trio de autores acerca da justificativa para esta atuação – tida como excepcional – do Poder Judiciário carece de consistência.

A despeito das acirradas controvérsias políticas sobre a forma de lidar com a crise sanitária decorrente da pandemia – absolutamente naturais em um contexto democrático que exige constante avaliação pública do desempenho de mandatários em vista de sua inevitável responsabilização político-eleitoral nas próximas eleições –, não há qualquer lentidão parlamentar e nem timidez governamental.

Antes mesmo da eclosão da pandemia em território nacional, o Congresso Nacional editou a Lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que “dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019”.

O diploma é decorrente do Projeto de Lei nº 23, apresentado pelo Poder Executivo em 4 de fevereiro de 2020, ou seja, apenas dois dias antes de sua promulgação. Vale lembrar que a lei não é fruto de decisão monocrática, mas sim de deliberações coletivas das duas casas integrantes do Congresso Nacional.

Não se trata de exemplo isolado. A Lei 13.987, de 7 de abril de 2020, que autoriza, em caráter excepcional, a distribuição de alimentos com recursos do PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar) aos pais ou responsáveis pelos estudantes das escolas públicas de educação básica, decorreu de aprovação do Projeto de Lei nº 786, apresentado na Câmara dos Deputados, por iniciativa do Deputado Hildo Rocha (MDB/MA), em 26 de março de 2020, menos de duas semanas antes da promulgação.

De igual modo, a Lei 13.989, de 15 de abril de 2020, que dispõe sobre o uso da telemedicina durante a pandemia, foi decorrente do Projeto de Lei nº 696, apresentado na Câmara dos Deputados, por iniciativa da Deputada Adriana Ventura (NOVO/SP), no mesmo dia 26 de março de 2020, menos de um mês antes da promulgação.

Os exemplos poderiam se multiplicar, principalmente se levarmos em conta os parlamentos estaduais e municipais. Em alguns, o risco do açodamento é maior do que de inação, de modo que é urgente revisar a assertiva, tão repetida nos meios jurídicos, de que o processo legislativo é lento e moroso.

Na verdade, a doutrina jurídica é que tem se revelado muito lenta para absorver as relevantes mudanças que ocorreram no processo legislativo, em especial na última década, bem como para compreender que, no âmbito parlamentar, a aparente lentidão por vezes é a maneira como se expressa uma decisão política de rejeição de dada proposta.

O Poder Executivo também respondeu rapidamente à eclosão da pandemia. Os decretos de governadores e prefeitos – chefes dos Poderes Executivos locais, extremamente relevantes em Estado de forma federativa – se sucederam rapidamente, podendo-se mencionar como paradigmático, para evitar cansar o leitor, o Decreto Distrital 40.539, de 19 de março de 2020, por meio do qual o Governador do Distrito Federal dispôs “sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do novo coronavírus”.

No âmbito federal, o chefe do Poder Executivo, para ficar em um dentre dezenas de exemplos possíveis, editou a Medida Provisória nº 936, de 1º de abril de 2020, instituindo amplo programa emergencial de emprego e renda, com grau de coordenação entre diferentes órgãos e entidades que, embora possa ser tido por insuficiente por alguns, não poderia ser obtido por uma instituição com as características do Poder Judiciário.

Em suma, pode-se até alegar que o poder público poderia ser exercido de formas diferentes ou melhores pelos mandatários escolhidos no âmbito da democracia brasileira. De certa forma, esta alegação faz parte do próprio debate democrático.

Contudo, após mais de trinta anos de vigência da Constituição de 1988, a democracia brasileira pode até ser jovem, mas não há como qualificá-la de órfã ou hipossuficiente, dependente de um tutor sábio, seja ele fardado ou togado.

A compreensível ansiedade gerada pela crise por vezes nos leva a querer encontrar novidades e mudanças de paradigma onde deveríamos buscar constância, cautela e estabilidade.

A função do Poder Judiciário durante a crise epidemiológica é a mesma que lhe cabia antes da crise: aplicar de modo imparcial e fundamentado o ordenamento jurídico, controlando os atos dos poderes eleitos para que eles sejam compatíveis com a Constituição e as leis em vigor, enquanto elas não forem regularmente modificadas pelos mecanismos previstos no próprio ordenamento jurídico e que estão em pleno funcionamento.

Ao exercer tal função, é possível que o Poder Judiciário tenha que lidar com a inconformação, por vezes ruidosa, de quem permanece inconformado com a decisão; isto também não é novidade e não começa com a crise sanitária.

Se, ao fazê-lo, o Judiciário for visto como “malvado”, trata-se de incômodo para o qual as garantias constitucionais da magistratura oferecem justa proteção; o que não deve o juiz é almejar ser “favorito” de quem quer que seja, mesmo que da nação ou da opinião pública. Ao final, ao querer ser “favorito” ou mesmo “bondoso”, é que se corre o maior risco de deixar de ser “juiz” no sentido pleno da palavra.

 


[1] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/um-malvado-favorito-o-ativismo-judicial-em-tempos-de-covid-19-02052020

[2] A este respeito, HORBACH, Carlos Bastide. O Poder Executivo na democracia contemporânea: liberdade em tempos de crise. In: HORBACH, Carlos Bastide; ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de; AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do; LEAL, Roger Stiefelmann (Coord.). Direito constitucional, Estado de Direito e democracia: homenagem ao Prof. Manoel Gonçalves Ferreira Filho. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p.121-153.