O ministro Gilmar Mendes, no âmbito do HC 215.931/DF, concedeu habeas corpus em face de decisão proferida pelo Superior Tribunal Militar (STM), que negou recurso de apelação que pretendia a reforma de decisão que indeferiu o pedido do paciente de que fosse oportunizado a oferta de acordo de não persecução penal.
Contrariando o enunciado da Súmula 18 do Superior Tribunal Militar, que veda a aplicação do acordo de não persecução penal na Justiça Militar da União, entendeu o ministro relator que o referido enunciado não tem força vinculante, o instituto em questão visa a redução da população carcerária, a economia processual e a ampliação das resoluções consensuais de conflito, sendo, desse modo, aplicável a previsão do CPP relativa ao ANPP ao processo penal militar, desde que observados os requisitos previstos em lei.
A questão sobre a aplicação ou não do ANPP no processo penal militar será analisado em definitivo no plenário do STF no HC 185.913/DF.
Diante dessa discussão, o acordo de não persecução penal é compatível com os crimes militares?
O STM entende ser incabível o acordo de não persecução penal no âmbito da Justiça Castrense em razão de eventual aplicação do instituto afetar a índole do processo penal militar, bem como fragilizaria princípios e valores basilares e imprescindíveis para o regular funcionamento das Forças Armadas.
Ocorre que o acordo de não persecução penal é um instituto jurídico de diversão processual (solução diversa do procedimento tradicional), advindo da justiça negocial, que busca solucionar, de forma célere e eficaz, os problemas jurídicos de caráter criminal, evitando-se a formalização de um processo judicial nos casos previstos em lei.
No sistema jurídico romano-germânico, adotado no Brasil, prevalece o princípio da legalidade e a positivação. Em regra, os países que adotam o referido sistema são adeptos de um sistema processual penal de natureza inquisitorial, caracterizado pelo papel central do juiz na condução do processo.
Por razões de política criminal, em busca de um processo penal mais eficiente e eficaz, muitos desses países estão incorporando institutos de caráter negocial, nos quais há a prevalência do papel das partes, cabendo ao juiz o controle de regularidade e legalidade. A incorporação de institutos negociais nesse caso deve ocorrer no estrito limite da lei, em decorrência das limitações naturais inerentes ao sistema jurídico romano-germânico. Haverá discricionariedade apenas nas situações especificadas no ordenamento jurídico.
A concessão do acordo de não persecução penal passa pela análise do preenchimento dos requisitos (objetivos e subjetivos) de cabimento, previstos no mencionado dispositivo do Código de Processo Penal, como a confissão formal e circunstancial da prática de infração penal, sem violência ou grave ameaça, pelo acusado, e o delito, em abstrato, possuir pena mínima inferior a quatro anos (requisitos objetivos).
Os motivos e circunstâncias dos crimes e a culpabilidade do acusado (artigo 44, inciso III, do Código Penal) devem ser analisadas, buscando aferir, no caso concreto, se o acordo de não persecução é a medida necessária e suficiente para a reprovação e a prevenção das infrações penais (requisitos subjetivos), conforme exigência expressa do artigo 28-A do Código de Processo Penal.
A admissibilidade em abstrato do acordo de não persecução penal é aferida, portanto, por meio da subsunção dos aspectos do tipo penal imputado (não possuir pena mínima superior a quatro anos), pela adoção de algumas atitudes pelo acusado (exemplo: confissão da prática delitiva, reparação do dano etc.) e pela não ocorrência de algumas circunstâncias (exemplo: prática delitiva por meio de violência ou grave ameaça).
Diante dos requisitos objetivos, em tese, é cabível a propositura de acordo de não persecução penal nos casos envolvendo crimes a serem processados perante a Justiça Militar, cabendo ao órgão acusador, posteriormente, analisar a presença dos requisitos subjetivos. Esses requisitos (subjetivos) serão aferidos pelo Ministério Público, como é o caso da verificação se o acordo de não persecução penal é "necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime".
Essa verificação deverá ser realizada em concreto pelo Ministério Público, em consonância com as circunstâncias do caso, que, enquanto titular da ação penal, deverá aferir se a adoção do instituto será suficiente para reparar, no caso concreto, a violação à ordem jurídica. A análise a ser realizada pelo Ministério Público ocorre nos limites da discricionariedade estabelecido pelo legislador. Ao Judiciário caberá a análise de legalidade e regularidade do acordo.
Desse modo, vedar em abstrato a possibilidade de utilização do acordo de não persecução penal com relação a algum crime ou mesmo a alguns crimes que serão apreciados por um juízo especializado, mesmo o delito se adequando aos requisitos de mensuração objetiva previstos em lei (exemplo: delito não tenha sido cometido com violência ou grave ameaça, pena mínimas não ultrapassar os quatro anos etc.), viola os estritos limites legais a serem seguidos por países que utilizam institutos negociais e possuem um sistema jurídico prevalentemente romano-germânico.
Por mais que existam peculiaridades inerentes aos casos julgados perante a Justiça Militar, não há vedação legal (ou seja, em abstrato), nem mesmo na Constituição Federal, quanto à possibilidade de incidência dos institutos negociais. A vedação legal, na hipótese, assim como foi realizada pelo legislador com outros tipos penais, podia ter ocorrido no momento da fixação da pena em abstrato ou por nominal vedação com relação a tais crime, mesmo a pena em abstrato se adequando ao limite legal
Por conseguinte, a aferição de suficiência do acordo de não persecução penal para um crime a ser apreciado perante a Justiça Militar deverá ser realizada pelo Ministério Público, enquanto titular da ação penal e parte no acordo, nos limites do poder discricionário concedido pelo legislador.
A vedação em abstrato, analisada neste caso, viola, portanto, o princípio da legalidade, bem como o princípio da presunção de inocência, enquanto regra de tratamento, pois cria uma situação de tratamento diferenciado em relação ao autor dos crimes que serão analisados por um juízo especializado. Garantias fundamentais como a presunção de inocência só podem ser restringidas nos estritos limites da lei.
O Direito Penal leva em consideração o desvalor do resultado para tipificar e punir determinadas condutas. Eventuais características das vítimas ou do contexto profissional ou social que o autor e a vítima estão inseridos, adotados como principais objetos de proteção pela Justiça Militar, são aferidos de forma secundária no Direito Penal, devendo estar presente expressamente na lei, em razão da estrita atuação do Direito Penal, limitada aos parâmetros estabelecidos pela lei. Consequentemente, mostra-se totalmente incabível a proibição em abstrato da utilização do acordo de não persecução penal na Justiça Militar sem expressa previsão legal neste sentido.