Ticiane Moraes Franco

Derick de Mendonça Rocha

Em complementação ao nosso <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/anpd-legalidade-e-seguranca-juridica-no-calculo-das-multas-11032021" target="_blank" rel="noopener noreferrer">último artigo</a>, por meio do qual tratamos acerca da aplicação dos princípios da legalidade e da segurança jurídica nos cálculos das sanções de multa impostas pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), realizamos nesta oportunidade breves comentários e reflexões sobre a neutralidade do julgador e a distribuição de competências no processo administrativo sancionador à luz do recente Regimento Interno da Autoridade (RI), aprovado pela Portaria nº 1, de 8 de março de 2021, comparando com a experiência da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel).
O RI aprovado é um passo importantíssimo para a consolidação da ANPD a fim de que possa executar de forma adequada as suas atribuições impostas pela Lei nº 13.709/2018 (LGPD), dentre as quais a de “fiscalizar e aplicar sanções em caso de tratamento de dados realizado em descumprimento à legislação, mediante processo administrativo que assegure o contraditório, a ampla defesa e o direito de recurso” (art. 55-J, IV).
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>A partir do referido RI é possível verificar a estrutura organizacional e a distribuição de competências de cada um dos órgãos da ANPD. Assim sendo, mesmo sem disciplinar especificamente o procedimento administrativo para apuração de infrações e aplicação de sanções, o que deverá ser realizado futuramente por meio de regulamento próprio (art. 49, parágrafo único, do RI), é possível verificar desde logo que dois órgãos regimentais possuem competência específica para lidar com esse tipo de procedimento, quais sejam: a Coordenação-Geral de Fiscalização e o Conselho Diretor.
Segundo o RI, a Coordenação-Geral de Fiscalização possui a competência de fiscalizar e proferir a decisão em primeira instância nos processos sancionadores (art. 17, I e II), aplicando as sanções administrativas previstas na lei e, por sua vez, ao Conselho Diretor da Autoridade, compete julgar eventuais recursos interpostos em face dessas decisões (art. 5º, VIII).
Especificamente no tocante à cumulatividade de competência pela Coordenação-Geral de Fiscalização, que foi incumbida regimentalmente das prerrogativas de fiscalizar os administrados e de julgar os processos sancionadores em primeira instância, é que nos propomos a fazer uma reflexão ao percebermos que a aglutinação das funções de investigação, acusação e julgamento em um só órgão pode acabar prejudicando a necessária imparcialidade e neutralidade na aplicação da sanção.
Aqui, não estamos postulando a necessidade de uma imparcialidade na acepção do que se configura no âmbito judicial, o que evidentemente é impossível diante do modelo regulatório adotado no país, conforme explica Marçal Justen Filho, <a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> sobretudo quando se trata de competência punitiva de entidades da Administração Pública e, no caso, da Autoridade de Proteção de Dados, mas, sim, uma maior neutralidade do órgão julgador e isenção da autoridade administrativa, quando do exercício da função de julgamento.
No âmbito de um processo administrativo sancionador, a neutralidade e a imparcialidade do julgador adquirem contornos bastante relevantes, considerando que a atividade de julgar é uma atividade técnica e, ainda, porque o processo sancionador está sujeito aos mesmos princípios que regem a atuação do Estado, tais como a moralidade, segurança jurídica, motivação e devido processo legal, além daqueles próprios do Direito Penal, dentre os quais destacamos o princípio da presunção de inocência, que recai sobre os administrados quando respondem a um processo sancionador.
Nas palavras do min. Gilmar Mendes, “[p]or imposição da presunção de inocência, o julgador deve adotar uma posição de desconfiança em relação à acusação. Somente se houver comprovação além de qualquer dúvida razoável é que se autoriza o sancionamento”. <a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
Assim sendo, a imparcialidade e neutralidade do órgão julgador são essenciais para a adequada apreciação das teses defensivas apresentadas e para a garantia dos direitos dos administrados no processo sancionador, especialmente ao contraditório e à ampla defesa, que podem ser prejudicados em certo grau na situação de aderência anterior do julgador à acusação, ou seja, quando um único órgão possui ao mesmo tempo prerrogativas de fiscalizar os administrados, instaurar o procedimento acusatório e julgá-los (decidir e aplicar sanções).
É por isso que se insiste na necessidade de se maximizar a neutralidade e a imparcialidade da autoridade julgadora no curso do processo, o que somente pode ser efetivado, em sua essência, por meio de um modelo que separa as funções de fiscalizar, acusar e julgar, garantindo uma certa independência entre elas e propiciando uma decisão justa no processo a partir da isenção da autoridade em relação à matéria.
A aludida separação de funções pode ser observada ilustrativamente em outros setores regulados atualmente, como no de telecomunicações, em que o Regimento Interno da Anatel (Resolução 612/2013) atribui a competência geral de fiscalizar e de julgar a órgãos distintos em sua estrutura organizacional.
Na referida Agência, em regra, o órgão regimental competente para realizar a fiscalização e prima facie apontar a existência de indícios de irregularidades em face da legislação do setor de telecomunicações é a Superintendência de Fiscalização (art. 157, do Regimento Interno).
Assim sendo, no exercício de suas atribuições, a referida Superintendência executa o procedimento fiscalizatório e, ao final, lavra um Relatório de Fiscalização que é, por analogia ao processo penal (art. 41, CPP), como a “denúncia”, por meio do qual descreve detalhadamente todos os fatos observados na atividade fiscalizatória, bem como a suposta conduta infrativa identificada, com todas as suas circunstâncias, a fim de possibilitar a apresentação da defesa, sugerindo ao final do procedimento fiscalizatório a abertura do processo punitivo pela autoridade competente ou lavrando diretamente o Auto de Infração, excepcionalmente, se a matéria for de sua alçada.
Por outro lado, a competência de “instaurar, instruir e decidir Procedimento de Apuração de Descumprimento de Obrigações” (art. 158, do Regimento Interno foi outorgada à Superintendência de Controle de Obrigações, órgão na estrutura da Anatel com função autônoma e independente à Superintendência de Fiscalização. <a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>
Essa divisão de funções de um modo geral favorece a imparcialidade e neutralidade da autoridade julgadora e, na prática, beneficia o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório, uma vez que, como já mencionado, a autoridade julgadora “não pode ter preconceitos nem pré-julgamentos sobre a matéria em debate”.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
<blockquote class="jota-article__eye">Dessa forma, sendo órgãos com funções diferentes, há uma maior isenção, neutralidade e imparcialidade da autoridade julgadora em relação às constatações e fatos obtidos durante a fiscalização e na instrução do processo.</blockquote>
Por sua vez, no tocante ao Regimento Interno da ANPD, ao consubstanciar as funções de fiscalização, acusação e julgamento em um único órgão (Coordenação-Geral de Fiscalização), tem-se evidente um cenário indesejável no campo processual administrativo, podendo vir a acarretar inclinações na autoridade julgadora, dificultando a produção da verdade material e a prolação de uma decisão justa, criando situações propicias para se questionar a imparcialidade do julgador.
Não se nega que a união das funções de fiscalizar e de julgar em um mesmo órgão pode representar ganhos de celeridade na tramitação processual, uma vez que a autoridade julgadora, por também ter realizado a fiscalização, já estaria a par dos fatos apurados e das condutas típicas a serem sancionadas. Porém, tal situação pode levar ao desequilíbrio de sua neutralidade quando do julgamento.
Por fim, uma divisão de competências entre o órgão que fiscaliza e o que instaura e julga o processo sancionador é importante por criar um filtro aos casos de inépcia de eventual Relatório de Fiscalização (ou instrumento correspondente), de ausência de comprovação de materialidade e autoria, violação de garantias processuais, como às relacionadas ao ônus da prova, possibilitando que o órgão julgador analise previamente as conclusões obtidas durante as atividades de fiscalização e decida se vai ou não prosseguir com a instauração do processo sancionador em face do administrado. Por vezes, ainda, ao analisar as conclusões obtidas durante a etapa da fiscalização, pode descortinar outras situações a serem apuradas.
Assim sendo, a divisão das competências de fiscalizar, acusar e julgar poderia imprimir mais economia processual e eficiência na instauração e tramitação processual, além de acarretar decisões mais criteriosas, reduzindo, assim, o risco de judicialização das futuras decisões da Autoridade.
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<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> “(...) sob esse prisma, adota-se a concepção de que o traço distintivo fundamental entre função administrativa e função jurisdicional consiste na neutralidade do órgão julgador, na acepção firmada pela doutrina italiana. Tem-se insistido da necessidade de imparcialidade da autoridade administrativa, quando exercita funções de julgamento. No entanto e por maior que se possa configurar a ‘isenção’ da autoridade administrativa, nunca existirá uma imparcialidade na acepção que se configura no âmbito jurisdicional” (FILHO, Marçal Justen. Os direitos das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002, p. 548).
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> STF, HC 164.493-PR, Voto-Vista min. Gilmar Mendes, proferido na sessão da 2ª Turma, em 9.3.2021.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> O Regimento Interno da ANATEL aponta como exceção os processos administrativos fiscais, em função da especificidade da matéria. No mais, a competência para instruir e aplicar sanções referente a óbice às atividades de fiscalização e a irregularidades técnicas constatadas em fiscalização nas estações de telecomunicações e de radiodifusão, que nos termos do Regimento Interno é da Superintendência de Fiscalização, foi delegada pela Portaria nº 1000, de 6 de julho de 2020 à Gerência de Controle de Obrigações de Direitos dos Consumidores, integrante da Superintendência de Controle de Obrigações.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> THUMS, Gilberto. Sistemas Processuais Penais. Lumen Juris, 2006. p. 259.

Sede da Anatel

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JOTA

Divisão das competências poderia imprimir mais economia processual e eficiência na instauração e tramitação dos processos

ANPD: a neutralidade do julgador no processo sancionador à luz do regimento interno

Divisão das competências poderia imprimir mais economia processual e eficiência na instauração e tramitação dos processos