Jade Savelli Macedo

Paulo Fernando de Mello Franco

Thifani Guerra Marques Lemos

Você certamente conhece algum – provavelmente alguns – exemplos de políticas públicas que tentaram solucionar um problema, mas que acabaram agravando o mal que visavam a combater – ou mesmo criando outro, igualmente pior. Isso acontece porque, por melhores que sejam as intenções de um policy maker, todo e qualquer processo decisório acarreta consequências –  ou, em termos econômicos, externalidades, sejam elas positivas ou negativas. Parafraseando Neruda, o administrador público, conquanto relativamente livre para escolher, não é, jamais, livre das consequências de suas escolhas<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
É precisamente disso que cuida o efeito cobra e é a partir dessa perspectiva consequencialista e de análise econômica do direito e das políticas públicas que analisaremos os possíveis paradoxos regulatórios<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> e comportamentais que uma vacinação – ou protovacinação – contra a COVID-19 pode gerar no Brasil.
O efeito cobra nos remete aos anos de 1858 a 1947 e a uma cidade da Índia que, preocupada com a alarmante quantidade de cobras – e de mortes por picadas de cobra –, precisou tomar alguma medida para controlar a situação. E, à luz da máxima segundo a qual as pessoas reagem a incentivos, a estratégia eleita pela cidade da Índia foi recompensar financeiramente os cidadãos que matassem cobras e as entregassem para o Estado.
<a style="font-family: inherit; font-size: inherit; font-style: inherit; font-variant-ligatures: inherit; font-variant-caps: inherit;" href="https://conteudo.jota.info/poder-contato"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
Inicialmente, a decisão surtiu o efeito desejado: o número de cobras diminuiu consideravelmente. Contudo, esqueceram-se os idealizadores da caça remunerada de cobras que, de fato, os indivíduos reagem mesmo a incentivos e que, diante das circunstâncias, as pessoas enxergariam na referida política pública uma verdadeira oportunidade – ou seria oportunismo? – de ganhar dinheiro: por que apenas caçar cobras que já existem? Por que não começar a criar cobras, matá-las e receber dinheiro em troca do serviço? Afinal, quanto mais cobras fossem entregues, maior seria a remuneração. Logo, a partir dessa externalidade não prevista – ou ignorada – pelas autoridades, o resultado não foi o desejado.
Para piorar, percebendo que estava gastando muito dinheiro, o erário decidiu interromper a política pública de recompensa por cobras: o que fizeram as pessoas? Sem ter mais para quem vender as cobras que já tinham sido criadas, as cobras foram simplesmente abandonadas nas ruas e, com isso, a quantidade de cobras voltou a crescer a ponto de ser maior do que a do cenário pré-política pública.
É nesse contexto que se insere a nossa provocação lançada no título deste breve artigo: qual é o fim da picada (tanto no sentido de finalidade quanto no sentido de conseqüência)? Qual ou quais os efeitos cobra da vacinação paulatina e ainda pouco abrangente no Brasil?
<blockquote class="jota-article__eye">A análise econômica e a economia comportamental nos ajudariam a prever algumas dessas possíveis consequências.</blockquote>
Diante da complexidade de uma situação problemática, não raro o administrador público se mostra incapaz de prever os possíveis impactos de uma ação ou omissão estatal, sendo que as externalidades negativas podem ser desastrosas. A análise das consequências não intencionais, terreno fértil de discussões de Direito e da Economia, é que nos motiva a pensar o efeito cobra aplicado ao direito. Quando um policy maker não considera como uma política pública afeta ou pode afetar os incentivos das pessoas, acontecerão provavelmente impactos indesejados e, como consequência, o efeito cobra reinará. No atual cenário de vacinação contra a COVID-19, o país corre um sério risco de a vacinação acarretar efeitos adversos ao pretendido pelas autoridades de saúde, o pode agravar a situação sanitária atual.
A emenda não pode sair pior do que o soneto. Às vezes não dá para cutucar onça com vara curta. Simplesmente não dá para tentar solucionar um problema, mas torná-lo ainda pior. Falta uma análise consequencialista às decisões judiciais, controladoras e, em especial, administrativas. Falta uma análise de impacto regulatório. Enfim, falta Análise Econômica ao Direito.
Desde o início da pandemia – do lockdown, da quarentena e dos seus demais consectários –, o argumento de proteger os grupos de risco foi altamente utilizado na tentativa de manter as pessoas cumprindo o isolamento social. Ocorre que, com o tímido início da vacinação daqueles que pertencem a esse grupo (até a data de fechamento deste artigo, aproximadamente 4,26% dos 212 milhões de brasileiros), muitos daqueles que se mantinham em isolamento para protegê-los já estão retomando suas atividades normais, desrespeitando o distanciamento social e, até mesmo, abandonando o uso da máscara. Afinal, se as pessoas mais vulneráveis já “estão imunizadas” – com muitas aspas, afinal, não há, ainda, nada de imunização! –, as pessoas já podem retornar à “normalidade”. Como se sabe – ou se deveria saber –, a vacina não possui eficácia imediata e, na maioria das vezes, exige a aplicação de uma segunda dose para que de fato promova a imunização do vacinado. Ademais, a vacinação ainda (infelizmente!) não é realidade para todos, uma vez que, o número de doses e de novas doses tem se mostrado, por inúmeras razões, bastante limitado. Dessa forma, apenas parte do grupo de risco preferencial para a vacinação de fato recebeu o imunizante, o que corrobora a irracionalidade dos que acreditam que já podem abrir mão das medidas de segurança e de proteção (individual e coletiva!).
Um outro fator que deve ser levado em consideração é que, por conta do número de doses ser muito aquém do necessário, o governo , principalmente em sua esfera municipal, adota um calendário de vacinação. Isso, na prática, significa que escolhas (trágicas, na maior parte das vezes) estão sendo realizadas e que mesmo grupos considerados de risco ainda não irão receber as doses. Exemplo disso é o de profissionais da educação que voltaram a atuar e estão em idade avançada, mas ainda não atingiram a faixa etária da vacinação, expondo-se, assim, ao risco da contaminação e da incerteza de uma vaga nos sistemas públicos e privados de saúde caso seja necessário.
Em uma via inversa, a população mais jovem, em busca de qualquer falsa esperança na qual possa se apoiar para justificar suas atitudes imponderadas de descumprimento do distanciamento social, está utilizando o argumento de que a vacinação já começou e que os mais vulneráveis “já estão imunizados” (novamente, muitas aspas<a href="#_ftn3" name="_ftnref1">[3]</a>). Não por acaso, por exemplo, durante o feriado do carnaval, festas clandestinas ficaram lotadas, as praias tiveram público cativo e bares e restaurantes tiveram aglomeração irremissível. Como consequência, uma semana depois do feriado, o país atingiu, à época, o maior número de mortes em 24 horas já registrado desde o início da pandemia, sendo que o número total de óbitos ultrapassou os 250 mil (números estes que, com profundo pesar, continuam subindo).
Observa-se, portanto, uma situação clara de efeito cobra: juntamente com o início da vacinação que, em uma perspectiva simplória, acarretaria diminuição do número de falecimentos, teve-se o aumento da média diária de mortes e uma possibilidade, cada vez mais próxima, de colapso da saúde no Brasil. A atitude equivocada – misbehaving<a href="#_ftn4" name="_ftnref2">[4]</a>, como diria Richard Thaler – da população de abandonar as medidas de combate ao vírus por acreditar que o início da vacinação implicou o fim da pandemia, gerou o agravamento da situação por todo o país. Agora corremos para determinar medidas de contenção, de fechamento de bares e restaurantes – mas não de outros segmentos que também apresentaram aglomeração durante a pandemia –, de limitação de atividades não essenciais e tudo o mais que couber de excepcional em uma situação tão excepcional como a que hoje vivemos. A fim de tentar controlar o efeito cobra estabelecido, governos estaduais e municipais estão retroagindo com medidas permissivas, determinando o fechamento de locais que possibilitam a aglomeração e decretando praticamente um “toque de recolher”. A pergunta é: precisávamos esperar tanto para que a Lei da ação e reação nos tirasse da inércia? Tudo isso poderia – e deveria – ter sido pensado antes. Somada à desinformação/assimetria de informação, o aumento da média móvel de mortes é precisamente o fim da picada, mas jamais sua finalidade. O tempo não pára e nem volta, mas, dada a gravidade da situação, não há espaço para gatilhos comportamentais ou políticas públicas que parecem decididas no sistema 1 – agora citando Kahneman<a href="#_ftn5" name="_ftnref3">[5]</a>. Parece clichê, mas não custa lembrar: ao passo que nós cansamos do vírus, ele ainda não cansou de nós.
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O artigo reflete a opinião de seus autores, mas não necessariamente a opinião da FGV Direito Rio, sendo seu conteúdo de responsabilidade exclusivamente daqueles.
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O episódio 50 do podcast Sem Precedentes faz uma análise da decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal nesta semana e que pode acelerar a aplicação de vacinas contra a Covid-19. Ouça:
https://youtu.be/b9z7dDRHnrg
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> FRANCO, Paulo Fernando de Mello. O dever fundamental de administrar bem. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> SUNSTEIN, Cass R. Paradoxes of the Regulatory State,University of Chicago Law Review: Vol. 57 : Iss. 2 , Article 4. Disponível em: <a href="https://chicagounbound.uchicago.edu/uclrev/vol57/iss2/4">https://chicagounbound.uchicago.edu/uclrev/vol57/iss2/4</a>.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn1">[3]</a> <a href="https://saude.ig.com.br/coronavirus/2021-02-23/primeira-vacinada-na-bahia-pega-covid-19-antes-de-tomar-a-segunda-dose.html">https://saude.ig.com.br/coronavirus/2021-02-23/primeira-vacinada-na-bahia-pega-covid-19-antes-de-tomar-a-segunda-dose.html</a>. Acesso em: 11/03/21.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn2">[4]</a> THALER, Richard. Misbehaving: a construção da economia comportamental. Trad. George Schlesinger. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2019.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn3">[5]</a> KAHNEMAN, Daniel. Rápido e Devagar: duas formas de pensar. Trad. Cássio de Arantes Leite. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.

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JOTA

Precisávamos esperar tanto para que a lei da ação e reação nos tirasse da inércia?

Análise dos efeitos da protovacinação em uma sociedade parcialmente vacinada

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