Allan Rocha de Souza

A ampla disponibilização dos bens culturais é objetivo tanto do direito de acesso à cultura, conhecimento e informação quanto dos direitos patrimoniais de autor. O primeiro almeja assegurar a possibilidade de participação por meio da fruição dos bens culturais e científicos, enquanto os últimos ambicionam o proveito econômico por meio da cobrança por usos, de preferência amplos, da obra. O direito de acesso e os direitos patrimoniais dos titulares não são, portanto, antagônicos, pois compartilham objetivos comuns.
Os objetivos comuns são plenamente alcançados na medida em que estes bens estejam substancialmente disponíveis para fruição. A acanhada disponibilidade dos bens literário-artístico-científicos, por outro lado, estabelece a oposição entre o direito de acesso e os direitos patrimoniais autorais, além de injustificada restrição à sua disponibilização e circulação.
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Sua parca disponibilidade significa tanto uma diminuta utilidade patrimonial quanto uma inflada restrição ao acesso e, assim, ao mesmo tempo, a tutela deixa de satisfazer tanto sua função econômica quanto social. Neste cenário, cabe observar a relação, muitas vezes proporcionalmente inversa, entre a exclusividade patrimonial dos titulares de direitos autorais e o direito de acesso à cultura.
Caso a garantia aos titulares da exclusividade dos usos patrimoniais não seja arredada mesmo em face da modesta disponibilidade ou interesse econômico dos bens objeto da proteção por direitos autorais, permitir-se-ia que servisse aos propósitos do controle e dominação. Neste cenário, estaria instalada uma verdadeira censura de mercado, de todo inaceitável por frontal colisão com as normas constitucionais. Além do mais, se a indisponibilidade for resultante de injustificadas ações, positivas ou negativas, dos titulares, conformar-se-ia um efetivo abuso do direito, pois refletiria um descumprimento de seus deveres funcionais.
É essencial lembrarmos que a experiência cultural é um dos pilares formadores da pessoa e conditio sine qua non para o desenvolvimento integral de sua personalidade, pois a partir destas são elaboradas e reelaboradas as visões e construídos os universos simbólicos com os quais o mundo é apreendido. O sentimento de pertencimento a uma comunidade, consequência das experiências culturais comuns, e de valoração positiva deste vínculo são pressupostos reconhecidos não só para a plena cidadania, mas também são vetores da construção das identidades individuais e coletivas. O caráter constitutivo essencial das experiências culturais estabelece a conexão direta entre o acesso a elas e a dignidade da pessoa humana.
E, porém, o acesso é apenas o ponto de partida para estas experiências culturais. O acesso pouco significa sem o correspondente direito de fruição destes bens e vivência das experiências. Acesso sem a possibilidade de fruição é preceito abstrato, vazio, inócuo, inoperante, contrário à lógica da substancialidade das normativas constitucionais. Acesso e fruição são, portanto, conceitos vinculados e mutuamente implicados, pois refletem as mesmas finalidades: permitir a participação cultural plena. Sem acesso, também não é possível inclusão, emancipação, cidadania, democracia ou desenvolvimento culturais, nem a formação, criação, manifestação, produção ou expressões culturais, viáveis somente a partir da fruição.
A importância do direito de acesso é ressaltada quando voltamos a refletir sobre direitos patrimoniais do autor e pensamos nos seus efeitos sobre as práticas e negócios da cultura e fazeres das ciências. Na medida em que se pode afirmar que não existem criadores sem que antes tenham sido expostos às manifestações com as quais irá dialogar, deve-se admitir que o acesso seja, em última instância, o principal elemento fomentador da autoria. Ao ir além e compreender que as obras somente existem dentro de um contexto sociocultural, de onde são retiradas as necessárias referências, diretas ou indiretas, devemos obrigatoriamente percebê-las carentes do pré-existente, com o qual interagem, e que justamente o acesso é o verdadeiro propulsor de novas criações. E, ainda, ao entender que o desejo da prática cultural só advém da própria prática, o acesso exerce também o papel de promotor do desejo da experiência e fruição dos produtos, bens e serviços de conteúdo artístico-cultural, sendo, em última instância um requisito para que o direito patrimonial possa ser revertido em ganho material.
O acesso aos bens culturais é, portanto, ao mesmo tempo, o fomentador da autoria, propulsor da criação e promotor do desejo de fruir destas criações. O acesso é, deste modo, o elemento imaterial essencial e fundamental para a construção de um ambiente criativo fértil e dinâmico, garantidor da própria sustentabilidade das indústrias culturais, sem o qual toda e qualquer política de promoção de uma sociedade culturalmente rica será ineficaz. E aqui chegamos a um ponto chave destas reflexões: a essencialidade de um direito de acesso robusto e efetivo para a saúde e sustentabilidade do ecossistema cultural que requer, como argumentado, substanciais limitações à exclusividade patrimonial.
Ao lado dos direitos reservados, exclusivos, patrimoniais de autor, convivem, na mesma estrutura normativa, espaços de acesso incondicionados, a partir dos quais se constituem espaços de livre circulação de bens culturais – literários, artísticos e científicos. Na legislação, são três os pontos nodais da interseção entre os interesses públicos e privados: (i) no estabelecimento que obras são ou não protegidas; (ii) nos limites temporais, e o advento do domínio público; (iii) e por meio das limitações e exceções, que indicam os usos livres das obras protegidas.
Nuclear à tensão estão as limitações e exceções (L&amp;Es) aos direitos autorais. As L&amp;Es representam os limites dos direitos autorais frente aos demais direitos fundamentais, servem de ponto de equilíbrio, lócus para harmonização entre os interesses econômicos imediatos dos titulares e os direitos individuais ou homogêneos de terceiros e coletivos primários. Além do mais, as L&amp;Es, ao promover a liberdade de expressão e acesso à cultura e ao conhecimento, e constituir espaços de livre circulação das expressões literárias, artísticas e científicas, exercem papel central e essencial na formação do gosto pela prática cultural em geral.
No entanto, a indústria cultural como um todo ativamente rejeita e ataca reiterada, feroz e sistematicamente qualquer avanço no estabelecimento de L&amp;Es necessárias e adequadas para concretização do direito acesso e sua efetiva e realística harmonização com os direitos autorais – como fica estampado, por exemplo, quando tratamos da acessibilidade das pessoas com deficiência visual, tanto no plano nacional como internacional. Este agir, em flagrante oposição ao cumprimento dos deveres sociais correspondentes, bloqueia a fluidez da complexa dinâmica entre proteção e acesso e prejudica o tanto desenvolvimento de talentos artísticos, como a formação de público e, em última instância, embaraça sua própria sustentabilidade e legitimidade social.

direitos autorais

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JOTA

Indústria cultural bloqueia fluidez da complexa dinâmica entre proteção e acesso ao rejeitar qualquer avanço nas limitações e exceções aos direitos autorais

Amores possíveis: direitos de acesso e autorais

Indústria cultural bloqueia fluidez da complexa dinâmica entre proteção e acesso ao rejeitar qualquer avanço nas limitações e exceções aos direitos autorais