Direito antitruste

O ambiente político como marketplace e o lobby como ferramenta anticompetitiva

Autoridade antitruste ignora realidade que se impõe ao se esquivar dos desdobramentos políticos do poder econômico

Decreto 10.889/2021 lobby
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Para o Direito Antitruste, a criação e a manutenção de vantagens competitivas são fatores importantes para a análise das ações dos agentes econômicos. As arenas políticas e os processos de tomada de decisões, porém, são frequentemente subestimados como meios em que se criam e se sustentam tais vantagens[1] [2]. Como ressaltado por Gary Minda, as empresas competem por favores do governo tanto quanto pela escolha dos consumidores, de modo que o ambiente político se torna uma espécie de "marketplace" alternativo na era corporativa[3].

Diversos autores têm ressaltado como a concentração de poder econômico favorece a concentração de poder político, que pode até mesmo ultrapassar o próprio poder dos governos[4]. Estudo desenvolvido por Zaleski[5] revelou que empresas com alto marketshare tendem a se beneficiar mais de processos políticos e de regulamentação, enquanto aquelas com baixa participação de mercado contribuem menos em tais processos. Nesse sentido, Zingales[6] destaca que a habilidade de exercer influências políticas cresce com o poder econômico da empresa, e na mesma proporção cresce a necessidade de tal exercício, com vistas a manter este poder. O autor apelidou esse processo de “The Medici Vicious Circle” – ou o “Ciclo Vicioso Medici” –, fazendo referência às ricas e poderosas famílias de banqueiros que comandavam a Florência da Itália Renascentista[7].

O relatório do Stigler Center de 2019[8] mostra que os maiores agentes políticos da atualidade podem ser o Google e o Facebook, agentes com grande poder econômico. Esse mesmo relatório, ao constatar o perigo que a concentração de poder representa para a democracia, propõe, dentre outras soluções, o fortalecimento do Direito Antitruste no que diz respeito ao controle de concentrações e à adoção de medidas que reduzam o poder político das plataformas. Essa pauta vem sendo inclusive destacada nos Estados Unidos, com as pesquisas acadêmicas e os discursos da recém-nomeada presidente da Federal Trade Commission, Lina Khan.[9]

Até mesmo Robert Bork, um dos maiores defensores de um menor escopo de intervenção do direito antitruste, reconhece que a predação política é um método particularmente perigoso em razão de sua baixa visibilidade sob a análise concorrencial[10]. O autor aduz que, enquanto as autoridades estão preocupadas com os perigos de fusões e restrições verticais, muitas batalhas são travadas diante de instâncias governamentais locais e projetadas para impedir a entrada no mercado de concorrentes. Nesse sentido, destaca que a legislação concorrencial pode contribuir imensamente tanto para a livre concorrência quanto para a integridade de processos governamentais ao alcançar práticas predatórias nas instâncias políticas.

A legislação concorrencial brasileira prevê expressamente a competência da Secretaria de Acompanhamento Econômico (SEAE) de acompanhar o processo legislativo e de regulamentação promovido por qualquer órgão ou entidade pública ou privada. Nesse sentido, pode-se dizer que há um aparato formal para a atuação ex ante no Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC) para que atos normativos de natureza anticompetitiva não sejam aprovados. A pergunta é: há de fato uma preocupação, em termos materiais, com esse “caminho mais curto” para algumas empresas em detrimento de outras, que evite o prejuízo ao ambiente competitivo no Brasil?

A experiência brasileira tem mostrado que a atuação preventiva nem sempre é suficiente para frear práticas indevidas derivadas de um sistema negativamente institucionalizado no país. Diversos escândalos de corrupção, como os da Operação Lava Jato, revelaram que uma das mais frequentes e importantes influências que empresas buscam exercer na esfera pública é para garantir que seus interesses virem norma[11].

Esses exemplos são trazidos apenas para ressaltar como o processo legislativo pode ser desvirtuado para garantir interesses privados em detrimento do suposto “interesse público” que ele deveria atingir. Sendo essa uma prática que atinge o ambiente concorrencial ou ao menos representa uma distorção do processo democrático em prol de um poder econômico concentrado, resta indagar se a autoridade antitruste brasileira, no âmbito de sua atuação repressiva, vem buscando reprimir ou mitigar esse tipo de conduta. Está o Cade pelo menos ciente desse risco ao ambiente competitivo no Brasil?

Casos questionando a prática de um “lobby anticoncorrencial” como conduta punível pela Lei 12.529/2011 já foram levados ao Cade, apesar de serem poucos os precedentes sobre a matéria. Nessa esteira, identificam-se dois julgados do Tribunal (Caso Sinpetro-DF[12] e caso Sindipostos-RN[13]) com objetos semelhantes – pressões por parte dos players dominantes sobre o Legislativo local para obter uma legislação favorável de cunho supostamente anticompetitivo. As decisões, porém, são praticamente opostas por parte dos respectivos Conselhos do Cade, indicando uma alteração de entendimento ao longo dos anos com base em novos parâmetros de análise do direito antitruste.

No primeiro caso, do cartel de postos no Distrito Federal, o conselheiro relator considerou que os representados se utilizaram abusivamente do seu inegável poder econômico com o intuito de eliminar a possibilidade de uma concorrência potencial, configurando-se uma infração à ordem econômica.

Já no segundo caso, envolvendo postos de combustíveis no Rio Grande do Norte, o foco da discussão passou a ser sobre um suposto conflito principiológico existente entre o direito de petição e a livre concorrência. Nesse sentido, o Tribunal entendeu que o direito de petição garante uma espécie de “imunidade antitruste”, de modo que apenas se verificados determinados elementos no exercício abusivo desse direito é que se poderia abrir uma exceção a essa imunidade para se condenar a conduta.

Guardadas as devidas peculiaridades de cada caso e constatando-se não serem muitos os precedentes sobre a matéria, o que se verifica é que ainda há pouco debate sobre as formas de atuação das autoridades antitruste em face de práticas empreendidas na esfera política que afetem o ambiente concorrencial. A jurisprudência mais recente do Cade, no entanto, revela uma espécie de “deferência” da autoridade concorrencial em face do direito de petição que pode prejudicar a ampla concorrência na tentativa de se garantir uma maior participação dos agentes econômicos nos processos legislativos.

Diante disso, questiona-se: qual seria a melhor forma de atuação antitruste diante do uso do lobby como instrumento anticompetitivo?

Esclarecemos o que já deve estar claro: consideramos mais do que legítimo que empresas defendam seus interesses e encaminhem demandas e projetos junto a órgãos e representantes públicos. Por outro lado, é igualmente legítimo que tais interesses não se sobreponham a interesses mais amplos da sociedade, como é a livre concorrência. O que se propõe aqui, portanto, não é que a autoridade concorrencial amplie seu escopo de competência, mas tão somente que se atente aos efeitos anticompetitivos de condutas exercidas no ambiente político, desenvolvendo uma estrutura de análise adequada para a consecução de objetivos intrínsecos ao antitruste em face de tais condutas.

Um possível ponto de partida, talvez, seja rever os parâmetros de exceção para a aplicação da imunidade antitruste conferida ao direito de petição. Nesse sentido, o debate no Cade, em casos de controle repressivo, poderia se expandir a ponto de contemplar com maior profundidade (i) o mérito das propostas legislativas/regulatórias – se excessivamente restritivas ou exclusivamente voltadas a determinados benefícios próprios, (ii) o mercado afetado e a eventual existência ou possibilidade de surgimento de barreiras à entrada, (iii) a consideração sobre medidas alternativas, menos lesivas à concorrência, e até mesmo (iv) a verificação do poder de mercado e de barganha concentrado pelo(s) agente(s) empenhados no lobby e por ele beneficiados. Tais critérios, não exaustivos, podem tornar a análise mais robusta e garantir um enforcement mais efetivo em face da matéria aqui contemplada.

Como destacado por Rizzo e Velasco, não existe remédio para acabar com o desvirtuamento da máquina pública em favor de interesses privados prejudiciais ao interesse público, mas o começo para uma solução está no aperfeiçoamento e cumprimento das regras claras no jogo[14]. A autoridade antitruste, ao se esquivar de importantes questões relacionadas aos desdobramentos políticos do poder econômico, ignora uma realidade que se impõe e que vem causando distorções e ineficiências para o desenvolvimento econômico nacional.

A política concorrencial e a atuação da Administração Pública devem guardar relação simbiótica com a realidade na qual se inserem e devem ser responsivas na medida adequada em relação aos problemas que se impõem. Para isso, é importante que cada instituição zele por seus objetivos e não abra brechas muito amplas para que desvirtuamentos sejam colocados em prática, o que, no âmbito do Cade, significa reprimir “atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir, entre outros, o efeito de limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa”[15].

Seja via SEAE, seja via Cade, é imperioso que o “watchdog” antitruste brasileiro mova suas lentes para essa – não tão nova – realidade do lobby anticompetitivo, que pode afetar, por debaixo dos panos, o ambiente de negócios no Brasil.


[1] Para reflexões mais amplas a respeito do tema, sugere-se a leitura de ACCIOLY, Isabella. SHAM LOBBY” no Brasil: uma análise sobre o possível enquadramento do lobby anticompetitivo como infração à ordem econômica nos termos da Lei n. 12.529/2011”. Monografia em Direito – Faculdade de Direito, Universidade de Brasília. Brasília, 2021. Disponível em: https://drive.google.com/drive/folders/1LuddrjkudOykaG2rhwiTS_6ilysXYAXr.

[2] RAJWANI, Tazeeb; MCGUIRE, Steven; LAWTON, Thomas. Atividade política corporativa: uma revisão da literatura e a agenda de pesquisa. 2012. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1468-2370.2012.00337.x. Acesso em: 20 jan. 2021.

[3] MINDA, Gary. Interest Groups, Political Freedom, and Antitrust: a modern reassessment of te Noerr-Pennington Doctrine. Hastings Law Journal, v. 41, n. 4, 1990. Disponível em: https://repository.uchastings.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=3008&context=hastings_law_journal. Acesso em: 11 jan. 2021. p. 907.

[4] FRAZÃO, Ana. Novas perspectivas para a regulação jurídica dos mercados: parte XIII. 2020. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/novas-perspectivas-para-a-regulacao-juridica-dos-mercados-parte-xiii-27052020. Acesso em: 23 fev. 2021.

[5] ZALESKI, Peter A. Contribuições de campana de PACs corporativos. Atlanctic Economic Journal, v. 20, n. 56, 1992.  Disponível em: https://link.springer.com/article/10.1007/BF02300172. Acesso em: 20 abr. 2021.

[6] ZINGALES, Luigi. Towards a Political Theory of the Firm. Journal of Economic Perspectives, v. 31, n. 3, 2017. Disponível em: https://pubs.aeaweb.org/doi/pdfplus/10.1257/jep.31.3.113. Acesso em: 15 jan. 2021.

[7] O autor define esse termo como o ciclo “no qual o dinheiro é usado para ganhar poder político e o poder político é assim utilizado para se ganhar mais dinheiro” (tradução livre).

[8] STIGLER, Center. Comitê Stigler de Plataformas Digitais: relatório final, 16 de setembro de 2019. Disponível em: https://www.chicagobooth.edu/research/stigler/news-and-media/committee-on-digital-platforms-final-report. Acesso em: 20 fev. 2021.

[9] KHAN, Lina M. Amazon's antitrust paradox. Yale lJ, v. 126, p. 710, 2016.

[10] BORK, Robert. The antitrust Paradox. New York: Free Press, 1993.

[11] RIZZO, Alana de; VELASCO, Joel. As empresas conseguem migrar do crony capitalismo para práticas íntegras de interação com o governo? In: Lobby desvendado: Democracia, Políticas Públicas e Corrupção no Brasil Contemporâneo. 1. ed. São Paulo: Record, 2018. p. 197.

[12] PA nº 08000.024581/1994-11

[13] PA nº 08700.000625/2014-08

[14] RIZZO, Alana de; VELASCO, Joel. As empresas conseguem migrar do crony capitalismo para práticas íntegras de interação com o governo? In: Lobby desvendado: Democracia, Políticas Públicas e Corrupção no Brasil Contemporâneo. 1. ed. São Paulo: Record, 2018.

[15] BRASIL. Lei n. 12.259, de 30 de novembro de 2011. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12529.htm. Acesso em: 20 jan. 2021.logo-jota