Jaques Bushatsky
Advogado, Coordenador da Comissão de locação, shopping centers e compartilhamento de espaços da OAB/SP, Coordenador da Comissão de Locação e Compartilhamento de Espaços do IBRADIM, Pro Reitor da Universidade Secovi.
“Liberdade, Liberdade! Abre As Asas Sobre Nós” é um samba enredo imortalizado pela Imperatriz Leopoldiense no Carnaval de 1.989[1]. O refrão encantou sambistas, artistas e encanta a todos nós, sempre.
E é ouvido com maior retumbância em cada oportunidade que se procure cingir direitos, cercear liberdades, fazer com que o Poder atuante se imiscua nos afazeres de cada um de nós, situação que lamentavelmente tem se tentado atualmente através de estarrecedora quantidade de Projetos de Lei.
Dessa intromissão se afastou a Lei das Locações em 1991 ao prever[2] a ampla liberdade dos contratantes (deles, os protagonistas da relação, únicos diretamente interessados no assunto que negociam) quanto ao contrato e, em especial, quanto ao ajuste do aluguel.
É livre
É sempre instigante dispositivo legal iniciado com a declaração de que algo seja livre, admitido, até porque clara a liberdade na Constituição Federal, três anos anterior à lei de 1.991.
Mas é explicável a preocupação com a liberdade. Governos brasileiros que – ainda bem – ficaram no passado, tentaram sobrepor-se à essencial necessidade de liberdade, inerente a pessoas e povos, materializada no livre viver, pensar, trabalhar, crer, se expressar, contratar, agir, optar politicamente.
Especificamente, a liberdade é essencial à fluidez das forças da economia[3]. Por exemplo, foi abandonada quando se ditaram reajustes dos aluguéis os limitando a um ínfimo porcentual da inflação; se impuseram congelamentos dos aluguéis ou se decretaram parcelamentos da aplicação dos reajustes inflacionários, como se isso pudesse proteger os locatários.
Não deu certo, malgrado a passageira ilusão de alguns, seja no particular de cada caso, seja quando verificado o espraiamento – a função social – da proibição ditatorial.
Por isso se compreende – e se aplaude - a meta do legislador, após anos de absolutismo: em 1.991 certamente pretendeu frisar, enaltecer, assegurar a liberdade também na convenção do aluguel, afastando eventuais más ou distorcidas interpretações. Essa fórmula, aliás, tem sido repetida – e os efeitos práticos são positivos – em várias iniciativas legislativas, a proclamar-se: sim, existe liberdade.
E essa liberdade se materializa em cada ajuste, porquanto inerente à base do negócio celebrado, integrante da racionalidade econômica expressada e disposta pelos contratantes.
A convenção
Quais são os limites às convenções em matéria de locação de imóveis urbanos? São, basicamente, aqueles alinhados no artigo 45 da Lei das Locações[4], que cuida das nulidades contratuais.
Esse artigo há de ser lido em duas camadas: a primeira, simples e direta, concerne à nulidade de quaisquer estipulações “que proíbam a prorrogação prevista no art. 47, ou que afastem o direito à renovação, na hipótese do art. 51, ou que imponham obrigações pecuniárias para tanto”. Redação direta – como convém a qualquer lei – quaisquer alongamentos seriam supérfluos, depois de tantas ótimas lições divulgadas.
A segunda camada proclama a supremacia dos “objetivos da presente lei”. Logo, da razão de ser da lei há de resultar a sua perfeita aplicação e de alcançar-se a sua efetiva meta.
Será aplicada também a Lei nº 13.874/2.019, que preconizou a “Declaração de Direitos de Liberdade Econômica” e proclamou “a intervenção subsidiária e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas” (art. 2º – III); previu que as “dúvidas de interpretação do direito civil, empresarial, econômico e urbanístico serão resolvidas de forma a preservar a autonomia privada, exceto se houver expressa disposição em contrário” (art.3º – V), garantiu que “os negócios jurídicos empresariais paritários serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes” (art. 3º – VIII).
Essa lei realçou “a intervenção mínima” e (tema que merecerá muitos estudos) até a “excepcionalidade da revisão contratual”, conforme o novo parágrafo único do art. 421, do Código Civil; cujo novo art. 421 – A, faz presumir “paritários e simétricos” os “contratos civis e empresariais”, tudo a enaltecer a quase absoluta liberdade de contratar. Esta é, atualmente, a lei.
Essas lembranças são relevantes ao se apreciar o tema da estipulação do aluguel: desde que o contrato não afronte de algum modo a estrutura e os objetivos legais, impedimento algum existirá. Mais: a convenção há de ter expressado exatamente o que os interessados desejaram, usando sua liberdade.
Do aluguel, vedada a sua estipulação em moeda estrangeira
Pois bem. Livre a convenção, que se cuide do valor do aluguel e se relembre que o seu pagamento é realizado em dinheiro, em reais, portanto, desde que proibida[5] a estipulação em moeda estrangeira.
Se deve ser contratado e pago em moeda nacional, isso não significa que ocorra vedação à forma de apuração do aluguel (sempre mantidas em vista as limitações legais).
Logo, nada impedirá a contratação de aluguel considerando determinado importe mínimo (nada proíbe, a rigor, uma fixação máxima) e um percentual sobre o faturamento do locatário, costumeira a contratação nesses moldes em shopping centers (mercê também da abertura dada pela Lei), mas também praticada[6] em outros negócios: não existe na lei óbice algum (que não os pontuais já indicados) a variadas formas de apuração e, os usos empresariais aplicam, à toda, a liberdade de empreender, consubstanciada nesse instrumento clássico viabilizador da circulação de riquezas que é o contrato.
Vedada a sua vinculação à variação cambial ou ao salário mínimo
Anualmente é admitido o reajuste do valor do aluguel, resgatada a proibição da “sua vinculação à variação cambial ou ao salário mínimo”. E, não é admitido, em decorrência da legislação que disciplinou a reorganização econômica nacional, prever periodicidade de reajuste inferior a um ano[7], ao menos por enquanto. São os limitadores.
A vedação da vinculação a moeda estrangeira diz com toda a organização econômica nacional, não é novidade; o distanciamento do salário mínimo se deve ao objetivo institucional de ajusta-lo concretizando meta constitucional[8], sem com isso afetar diretamente outros preços, tais como os alugueis.
O reajuste se calcula através da aplicação do índice de atualização monetária livremente eleito no contrato e vale perguntar, nestes dias em que alguns querem cortar as suas asas, por que liberdade tão larga foi dada pela lei para a escolha do índice de reajuste?
A resposta –imediata e efetiva – é do Desembargador Luis Camargo Pinto de Carvalho: “Considerando, entretanto, a inconfiabilidade e a própria desmoralização dos chamados “índices oficiais”, tais como as OTN, ORTN, BTN, BTNF, TR, TRD e outros da mesma natureza, manipulados pelo Poder Público, sabiamente a Lei nº 8.245/91 deixou à livre escolha dos contraentes elegerem aquele que se prestará a reajustar o aluguel, de modo que o seu valor não seja corroído pela inflação”[9].
Cabe[10] aos contratantes, então, a escolha. Nesse estágio, é recomendável observar que cada índice se distingue dos demais, basicamente, pela metodologia do seu cálculo, pelo organismo que o gera, pelo período que abrange, pelo setor que foca. Nenhum está errado, mas cada um se destina a um objeto específico, daí as variações dos seus resultados. Qual o mais adequado em determinada situação? Têm respondido livremente e com eficácia os contratantes, caso a caso.
E, passados tantos anos, interessa testar, saber se os fatos confirmaram a hipótese. Para isso, comparem-se os valores do salário mínimo em maio de 1.991 (antes da promulgação da Lei das Locações), de maio de 1.995 (após o Plano Real) e de maio de 2.020 (início da Peste). Testem-se, igualmente, os resultados corrigidos pelo IGPM/FGV e segundo a Tabela Pratica do TJSP, sempre tomado como “valor presente”, o de maio de 2.020. Teremos, utilizadas tabelas e dados públicos[11]:
MÊS / ANO | SALÁRIO MÍNIMO (NACIONAL) |
ATUALIZAÇÃO PELO IGPM (05/2020) |
ATUALIZAÇÃO PELA TABELA PRÁTICA DO TJSP (05/2020) |
Maio/91 | Cr$ 23.131,68 | R$ 668,78 | R$ 508,31 |
Maio/95 | R$ 100,00 | R$ 685,45 | R$ 498,22 |
Maio/20
|
R$ 1.045,00 | R$ 1.045,00 | R$ 1.045,00 |
Os números são claros, se a correção dos aluguéis se vinculasse à evolução do salário mínimo, de fato problemas graves viriam.
E, importa notar como variam os resultados conforme o índice eleito, aqui tomados somente dois da meia centena de índices calculados no país. Tema a desafiar reflexões dos contratantes quando da escolha do índice, que atrelarão a sua solução econômica à fórmula que livremente entenderem conveniente.
Inserir ou modificar cláusula
A lei dispôs[12] que sim, os contratantes podem, sempre, renegociar. Há liberdade e o pressuposto essencial é óbvio: os contratantes precisarão desejar a inovação.
Em não sendo ilícito, sendo capazes os contratantes, em respeitada a forma legal, em não abalroados os parâmetros estipulados na própria Lei das Locações, ou os limites da função social do contrato, sempre se poderá contratar, em matéria de locação.
A liberdade de contratar existe, concretiza os princípios da autonomia privada e da livre iniciativa e, quanto às locações não residenciais mostrou Fabio Ulhôa Coelho que “a liberdade de contratar dos empresários não pode ser restringida, para que, assim, a competição empresarial possa gerar, à coletividade, os benefícios esperados de redução dos preços e aumento da qualidade de produtos”[13].
Interessaria em acréscimo, lembrar das modificações não formalizadas, porém operadas. Não é somente através de novos pactos escritos que os interessados se acertam, valendo-se por vezes, de paulatinas mutações no exercício do contrato, mutações consensuais e que expressam além da liberdade de contratar o que lhes convier, a liberdade de contratar da maneira que lhes for conveniente, no caso, sem escrever, omissão que poderá exigir trabalhosa prova, mas valerá.
Tudo exercendo com boa fé e probidade.
E, se houver falha no exercício de toda essa liberdade, bastará recordar que existem normas (cláusulas gerais) francamente adotadas pelo Código Civil, realçando a preservação da boa-fé objetiva e da probidade, do comportamento leal, mantendo a base de cada avença e o equilíbrio das posições dos contratantes no negócio. Em outras palavras: se a situação se tornar imprópria, qualquer dos contratantes terá à sua disposição boa sustentação legal para corrigir o que for preciso.
Cantamos, então, a Liberdade, desde a Proclamação da República[14] em 1.889; sabemos desde 1.991 pactuar e alterar o contrato de locação por consenso, absolutamente livres; os resultados benéficos se espraiaram, exatamente porque positivos, para um sem número de diplomas legais.
A experiência foi de todos nós: aprendemos nesses trinta anos de vigência da Lei das Locações, que a liberdade concreta trouxe serenidade[15] ao setor dos aluguéis, a ponto de terem sido desnecessárias mudanças das regras que temos desde 1.991, não sendo reclamada alteração pela Sociedade (destinatária e legitimada para postular leis); mostrando-se útil ao desenvolvimento do setor, ao crescimento da quantidade de imóveis para locação.
Certamente é solução a ser mantida nas locações e aproveitada em outros setores econômicos: as asas da liberdade nos protegeram e protegem, muito bem.
[1] Samba do Grêmio Recreativo Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense, composto por Niltinho Tristeza, Vicentinho, Preto Joia e Jurandir.
[2] “Art. 17. É livre a convenção do aluguel, vedada a sua estipulação em moeda estrangeira e a sua vinculação à variação cambial ou ao salário mínimo. Parágrafo único. Nas locações residenciais serão observados os critérios de reajustes previstos na legislação específica”.
[3] Inesquecíveis as barafundas criadas por congelamentos de preços e de remunerações, que lotaram os tribunais.
[4] Art. 45: São nulas de pleno direito as cláusulas do contrato que visem a elidir os objetivos da presente lei, notadamente as que proíbam a prorrogação prevista no art. 47, ou que afastem o direito à renovação, na hipótese do art. 51, ou que imponham obrigações pecuniárias para tanto.
[5] À semelhança da vedação inserta no art. 318, do Código Civil; da previsão da Lei nº 10.192/2001, que dispôs sobre medidas complementares ao Plano Real, mais atualmente do Projeto de Lei nº 4571/2019, do Senador Rodrigo Pacheco, voltado às locações urbanas não residenciais.
[6] Por apego à precisão: cuida-se, aqui, somente do aluguel. Em alguns contratos complexos, o pagamento do aluguel é mesclado a pagamentos outros, tais como os devidos por assessorias, desempenhos, outras práticas. Nesses contratos, o pertinente à locação será interpretado como tal; o relativo a outras prestações, conforme estas.
[7] Art. 28, pa. 1º, da Lei n° 9.069/95 [Plano Real] e art. 2º, par. 1º, da Lei n° 10.192/01.
[8] Art. 7º, IV, da Constituição Federal.
[9] CARVALHO, Luis Camargo Pinto de. Comentários ao artigo 17. In: Comentários à lei de locações de imóveis urbanos: Lei nº 8.245, de 18/10/1991. Juarez de Oliveira (coord.) São Paulo: Saraiva, 1992.p.188.
[10] A retratar a seriedade e a maturidade das relações de locação imobiliária urbana.
[11] https://www.aasp.org.br/suporte-profissional/calculos/calculos-judiciais, acesso aos 10/05/2021.
[12] “Art. 18. É lícito às partes fixar, de comum acordo, novo valor para o aluguel, bem como inserir ou modificar cláusula de reajuste. ”
[13] COELHO, Fábio Ulhôa. Curso de Direito Comercial - direito de empresa. 1.v. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 90.
[14] O samba da Imperatriz Leopoldinense homenageou, a par da ideia, obviamente, o Hino da Proclamação da República, composto por José Joaquim de Campos da Costa de Medeiros e Albuquerque e Leopoldo Miguez.
[15] É ínfima a proporção entre a quantidade de ações judiciais locatícias e a de imóveis locados, em todo o país.