Mateus Camilo Ribeiro da Silveira

Renato Manente Corrêa

Neste último mês, o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/STF">Supremo Tribunal Federal</a> finalizou o julgamento do Tema de Repercussão Geral 1.199 e das ações diretas de inconstitucionalidade 7042 e 7043, debruçando-se, em cinco sessões plenárias, sobre algumas das inúmeras modificações introduzidas na <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/lei-de-improbidade-administrativa">Lei de Improbidade Administrativa</a> pela Lei Federal 14.230, de 25 de outubro de 2021.
Se, por um lado, as decisões vêm atender ao anseio da comunidade jurídica (e, por certo, dos cidadãos em geral) de trazer definições para questões importantíssimas como a retroatividade de normas mais benéficas e a legitimidade dos entes públicos lesados de proporem ações de improbidade administrativa, por outro, suscitam um não menos relevante questionamento: o que, de fato, podemos esperar das conclusões alcançadas pelo STF?
Como se sabe, o Tema de Repercussão Geral 1.199 foi definido a partir das questões jurídicas suscitadas no Recurso Extraordinário com Agravo n. 843.989/PR, afetado como leading case para definição das teses de repercussão geral, tendo, portanto, objeto bastante definido, articulado em torno de duas grandes mudanças trazidas pela <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14230.htm">Lei 14.230/2021</a>, quais sejam, a revogação da modalidade culposa, prevista no artigo 10, e a previsão de novos prazos de prescrição geral e intercorrente.
Assim, a questão constitucional dirimida pela Corte consistiu na “definição de eventual (IR)RETROATIVIDADE das disposições da Lei 14.230/2021, em especial, em relação: (I) A necessidade da presença do elemento subjetivo dolo para a configuração do ato de improbidade administrativa, inclusive no artigo 10 da LIA; e (II) A aplicação dos novos prazos de prescrição geral e intercorrente”<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Para tais questões, acolhendo-se por maioria os fundamentos do voto do Exmo. relator, ministro Alexandre de Moraes, a corte fixou as seguintes teses<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>:
<blockquote class="jota-article__citation">“1) É necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se - nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA - a presença do elemento subjetivo - DOLO;</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">2) A norma benéfica da Lei 14.230/2021 - revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa -, é IRRETROATIVA, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes;</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">3) A nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente;</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">4) O novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é IRRETROATIVO, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei"</blockquote>
No que concerne à primeira tese, entendeu-se por bem reconhecer que as modalidades de atos ímprobos hoje definidas pela Lei são exclusivamente dolosas, não abrangendo, portanto, atos praticados com culpa, ainda que de natureza grave, como se admitia no regime anterior sob a tipificação do art. 10, do diploma legal.
Não se aprofundou, contudo, nem na tese aprovada nem nos debates plenários, sobre a que título a conduta dolosa deve ser demonstrada pelo órgão acusador: isto é, se é suficiente à condenação a presença de dolo genérico, como firmara-se a jurisprudência da corte e do Superior Tribunal de Justiça, ou se será preciso demonstrar a ocorrência de dolo específico, como poderia sugerira nova redação dos artigos1º, §§ 2º e 3º, e 11, §1º, da lei.
Ao relator, em breve passagem de seu voto, quanto ao dolo, nada teria mudado, porquanto sempre se exigiu, para condenação por ato ímprobo, a demonstração de conduta dolosa (tratada, no voto, como aquela na qual haja intenção de praticar ato de corrupção), tendo a Lei 14.230/2021, na realidade, reiterado expressamente tal exigência.Seja como for, diante do pouco aprofundamento do debate, parece-nos que ainda não estará imune à discussão, ao menos em casos limítrofes, a questão relativa ao alcance do ônus da prova do dolo atribuído à acusação.
No que concerne à segunda e à terceira tese, parece possível estabelecer a seguinte simplificação: a nova lei retroage, atingindo, portanto, os atos praticados com culpa em data anterior à sua vigência, salvo em relação àqueles nos quais haja condenação transitada em julgado. Essa retroação, contudo, não será de tal modo automática a ponto de ensejar a extinção imediata das ações em curso, devendo o juiz avaliar – e aqui implica admitir, se o caso for, a dilação probatória – se a conduta atribuída ao requerido não fora praticada, ao menos, com dolo eventual.
Quanto aos prazos prescricionais, a tese estabelecida é a de que, seja para a chamada prescrição geral ou para a intercorrente, a nova lei não se aplica de forma retroativa, incidindo, portanto, apenas sobre os fatos praticados durante e a partir de sua vigência<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Parece-nos importante enfatizar sobre essa tese que, diferentemente do que sucedera com a figura dos atos culposos, a irretroatividade do regime prescricional pode-se dizer mesmo absoluta: vale assim para os casos já transitados em julgado como para aqueles ainda em curso ou não ajuizados. Haverá, portanto, o órgão ou entidade encarregado da persecução, e, também, é claro, o Poder Judiciário, de se orientar, para o bem ou para o mal, pelo regime vigente ao tempo em que o ilícito foi praticado.
As teses aprovadas, como se vê, possuem alcance limitado, deixando, ainda, inúmeros espaços à contenda judicial, do que se destaca, por exemplo, aquele ocupado pelos atos ímprobos violadores dos princípios nucleares da Administração Pública.
É que, a partir da nova redação do art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa, ao menos dois caminhos interpretativos se abrem: um primeiro, que reconhece sua transmutação para um rol taxativo de condutas, de modo que as condutas então subsumidas às figuras revogadas (do inciso I, por exemplo, no qual se enquadravam o assédio sexual e a tortura praticada por agentes de segurança pública) ou mesmo ao caput, tornar-se-iam atípicas, impactando, à luz da ratio do Tema 1.199, os casos ainda não transitados em julgado.
Um segundo caminho é o que, indo além da discussão da (ir)retroatividade das modificações, trataria como inconstitucional qualquer interpretação que reconheça como taxativo o rol do artigo 11, possibilitando a subsunção de condutas violadoras de princípios à redação genérica do caput. Este segundo caminho, vale anotar, é justamente o perseguido na Ação Direta de Inconstitucionalidade 7156, ainda pendente de apreciação pela Corte Suprema<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Além dessa, outras questões notáveis e de fundamental importância certamente continuarão a suscitar controvérsias, como ocorre, por exemplo, com as modificações introduzidas na redação de determinados tipos, a exemplo do enriquecimento ilícito por evolução patrimonial incompatível aos rendimentos lícitos comprovados (art. 9º, inciso VII); com as previsões de natureza processual que limitam o poder do julgador de dar a definição jurídica dos fatos, à medida que não poderá divergir do enquadramento legal feito pelo autor (art. 17, §§ 10-C e 10-F, inciso I); com as regras sobre a ampla comunicabilidade das decisões proferidas em âmbito criminal (art. 21, §4º), e, ainda, sobre a vedação à condenação solidária e sua aplicabilidade quando haja dano ao erário (art. 17-C, § 2º); entre inúmeras outras.
Para além do Tema 1.199, também a corte julgou parcialmente procedentes as ações diretas de inconstitucionalidade 7042 e 7043, restabelecendo, por maioria, a legitimidade concorrente e disjuntiva entre o Ministério Público e as pessoas jurídicas interessadas para a propositura das ações de improbidade e para a celebração de acordos de não persecução civil. Também concluiu pela inconstitucionalidade parcial do artigo 17, § 20º, da LIA, incluído pela Lei 14.230/2021, de modo a afastar a obrigatoriedade de defesa judicial, pelos órgãos da Advocacia Pública, do administrador público que tenha agido com base em parecer jurídico, reconhecendo, tão somente, a possibilidade dessa representação judicial, a ser autorizada, entretanto, em conformidade com o disposto em lei específica.
Por sua clareza e objetividade, a decisão parece não provocar grandes controvérsias quanto aos seus desdobramentos, mas não deixa por isso de ser um verdadeiro marco histórico na afirmação da importância do papel desempenhado pela advocacia pública no combate à corrupção. Como se pôde observar do voto do relator e das sustentações orais que precederam o julgamento, a grandeza dessa atuação é constatada não só pelo destaque constitucional dado à Advocacia Pública na defesa dos interesses dos entes federativos, como também por resultados concretos expressos em números, como são aqueles da Advocacia-Geral da União<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> e mesmo da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, esta que, representando as entidades da Administração Direta e Indireta do Estado, acompanha, hoje, mais de 800 ações, cujos valores da causa ultrapassam a marca de R$ 66 bilhões.
A decisão, por outro lado, se coloca em sintonia e coerência com o papel desempenhado pela Advocacia Pública na defesa do erário, evitando, por exemplo, a fragmentação da atuação institucional, como viria ocorrer se fosse mantida a legitimidade exclusiva do Ministério Público, com a cisão das ações de ressarcimento fundadas em ato ímprobo (passíveis de ajuizamento pelos entes interessados) e as ações tipicamente sancionatórias – o que, diga-se de passagem, serviria para provocar ainda mais assoberbamento do Poder Judiciário, em detrimento do ideal de redução da litigiosidade e com a imposição de duplo exercício de defesa pelo acusado.
Em linhas finais, o que se pode dizer, quer seja em relação ao julgamento do Tema 1.199, ou ainda das ADIs 7042 e 7043, é que efetivamente avançamos nas sérias e profundas discussões que a Lei 14.230/2021 trouxe ao regime de responsabilização por ato de improbidade administrativa, todavia, não se pode negar, há muito mais a percorrer neste caminho que, agora, e sem qualquer dúvida, será trilhado com o apoio valoroso, eficiente e indispensável da Advocacia Pública nacional.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Disponível em: &lt;https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15349939755&amp;ext=.pdf&gt;. Acesso em 05 set. 2022.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Até a data da finalizaçãodeste artigo não houve a publicação do acórdão. As teses, portanto, foram extraídas da certidão de julgamento, publicada em 18/08/2022, conforme registro do andamento processual do tema, disponível para consulta em: &lt;https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4652910&amp;numeroProcesso=843989&amp;classeProcesso=ARE&amp;numeroTema=1199&gt;. Acesso em 05 set. 2022.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Questionamento peculiar sobre a temática concerne à definição de qual prazo seria aplicável na hipótese de ato ímprobo praticado, antes da mudança legislativa, por agente público ocupante de cargo em comissão, mas exonerado posteriormente à edição da Lei nº 14.230/21. Por força das teses fixadas, haveria de se sustentar, a princípio, a incidência do art. 23, I, da Lei de Improbidade, em sua redação anterior, preservando-se a irretroatividade do regime prescricional novo.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Disponível em:&lt;https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6396615&gt;. Acesso em 05 set. 2022.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> AGU. Combate à Corrupção. Ações de improbidade ajuizadas pela AGU em 2020 têm aumento de 17% em comparação com o ano anterior. Dez/2020. Disponível em: &lt;https://www.gov.br/agu/pt-br/comunicacao/noticias/acoes-de-improbidade-ajuizadas-pela-agu-em-2020-tem-aumento-de-17-em-comparacao-com-anoanterior#:~:text=A%20atua%C3%A7%C3%A3o%20da%20Advocacia%2DGeral,em%20compara%C3%A7%C3%A3o%20com%20ano%20passado.&gt;. Acesso em 05 set. 2022.

Fachada do edifício sede do Supremo Tribunal Federal – STF

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JOTA

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