Melina Rocha

Se só lermos a Constituição e os princípios da capacidade contributiva, progressividade (em seu sentido amplo) e seletividade, obviamente a primeira conclusão será a de defender alíquotas diferenciadas nos tributos sobre o consumo.
Afinal, por estes princípios, o Estado precisa tributar menos quem tem menos renda e diferenciar a tributação dos produtos de acordo com a essencialidade.
<a href="https://www.jota.info/produtos/tributos?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Tributos_materias" rel="attachment wp-att-291213"><img class="size-medium wp-image-291213 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-tributos-v2.jpg" alt="" width="300" height="300" /></a>Esta defesa é, obviamente, muito persuasiva e tem sido usada como mote especialmente por juristas que buscam a legitimação da tributação exclusivamente nos princípios e direitos fundamentais da Constituição, sem qualquer consideração das consequências práticas e dos efeitos econômicos e sociais destas regras.
Acontece que se analisarmos inúmeros estudos empíricos<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, internacionais e nacionais, a conclusão só pode ser outra. Estes estudos confirmam que a utilização de alíquotas reduzidas e isenções nos tributos sobre o consumo:
- representam, em valores absolutos, um benefício maior aos mais ricos (que consomem mais os produtos desonerados em termos nominais), o que contraria o princípio da capacidade contributiva;
- em geral, não são repassadas no preço ao consumidor final (integral ou parcialmente), não tornando os produtos mais baratos, o que não satisfaz o princípio da seletividade;
- têm impacto limitado na redução da regressividade, <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/politicas-tributarias/regressividade-e-aliquotas-diferenciadas-nos-tributos-sobre-o-consumo-15012021" target="_blank" rel="noopener noreferrer">especialmente se avaliada em função da renda</a><a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, contrariando o princípio da progressividade;
- causam enorme contencioso (em razão da necessidade de enquadramento dos produtos), exigindo que tanto os contribuintes quanto o Estado (através de gasto público) gastem milhões de reais por ano na defesa administrativa e judicial de seus interesses;
- aumentam o gasto tributário (valores que deixam de ser arrecadados, que não deixam de ser um gasto público), de maneira ineficiente e pouco transparente.
<blockquote class="jota-article__eye">Além disso, a aplicação dos princípios da capacidade contributiva e progressividade parece indicar a necessidade de um efeito comparativo: pessoas de baixa renda devem ser menos oneradas em comparação com pessoas de alta renda.</blockquote>
Isso significa, portanto, que não basta a simples concessão de um benefício que desonere todas as pessoas indistintamente: para que os princípios sejam satisfeitos, parece ser necessário que o efeito prático seja um benefício maior aos mais pobres em relação ao benefício usufruídos pelas pessoas mais ricas.
Isto não ocorre no caso da desoneração da cesta básica, por exemplo, que beneficia muito mais os mais ricos. Relatório do Ministério da Economia<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> demonstrou que a desoneração do PIS/Cofins da cesta básica é regressiva: os benefícios destinados aos 20% mais pobres da população correspondem a 10,6% do gasto tributário total (aproximadamente R$ 1,6 bilhão em 2017); enquanto a desoneração relativa aos 20% mais ricos corresponde a 28,8% do total (R$ 4,5 bilhões).
A distorção é ainda mais gritante no caso de alíquotas menores para a prestação de serviços, já que, quanto maior a renda, maior o gasto com serviços como proporção do consumo e, portanto, maior o benefício em razão das alíquotas menores.
Da mesma forma, pelo princípio da seletividade, produtos essenciais devem ser menos tributados que produtos não essenciais. Se alíquotas menores para produtos essenciais favorecem mais pessoas de alta renda, o princípio da seletividade acaba entrando em clara contradição com os princípios da capacidade contributiva e da progressividade.
Além disso, há produtos considerados como não essenciais (como perfumes, por exemplo) que, em termos proporcionais, pesam muito mais no consumo das famílias mais pobres do que nas mais ricas. Por fim, há também um problema de escolha: a partir de quais critérios se define o que é um produto essencial para as pessoas?
Há um consenso crescente entre especialistas que a melhor forma de compensar as famílias mais pobres pela tributação do consumo é através de programas de transferência de renda, que podem ou não estar vinculados ao tributo incidente sobre seu consumo.
Se as conclusões dos estudos empíricos apontam para consequências opostas aos mandamentos constitucionais e se há mecanismos para beneficiar famílias mais pobres que são mais eficientes, geram menos contencioso e não beneficiam os mais ricos, por que não os adotar na reforma tributária dos tributos sobre o consumo?
A própria União Europeia, cujos países têm modelos de IVA mais antigos que adotam algumas alíquotas reduzidas, vem avaliando e discutindo o custo-benefício desta prática. Em um relatório recentemente publicado sobre o impacto de alíquotas diferenciadas, o Parlamento Europeu conclui que “os efeitos distributivos das alíquotas reduzidas de IVA para grupos socialmente desfavorecidos são frequentemente bastante pequenos, embora os custos sejam frequentemente maiores do que os instrumentos fiscais diretos”<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Este é um dos grandes problemas de parte da doutrina jurídica tributária – mesmo daquela que se diz progressista e defensora dos direitos fundamentais: se enclausurar e se limitar à leitura e discussão fria da lei pela lei (o Direito retroalimentanto o Direito), sem levar em conta os efeitos econômicos e sociais das normas, que podem estar justamente contrariando estes preceitos legais.
Precisamos, assim, superar este formalismo jurídico – a mera interpretação da norma a partir da norma v e buscar entender, através de estudos empíricos, as reais consequências das escolhas políticas que são transcritas nestas normas e princípios.
O Direito não é um fim em si mesmo e não pode ser interpretado e aplicado sem levar em consideração as consequências práticas destas escolhas políticas. A aplicação dos princípios constitucionais de forma cega e totalmente dissociada das consequências reais e sociais é o que tem ajudado a manter desigualdades, regressividade, ineficiência e contencioso no país.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> De la Feria, R., Walpole, M. The Impact of Public Perceptions on General Consumption Taxes. British Tax Review, n.5, 2020. Bird, R. and M. Smart. “Taxing Consumption in Canada: Rates, Revenues, and Redistribution”, Canadian Tax Journal, 64(2), 2016, pp. 417–42. Thomas, A. Reassessing the Regressivity of the VAT. OECD Taxation Working Papers 49, 2020. OECD/KIPF, The Distributional Effects of Consumption Taxes in OECD Countries, OECD Tax Policy Studies, No. 22, OECD Publishing, Paris, 2014. Nipers A., Upite I., Pilvere I., Stalgiene A., and Viira, A., ‘Effect of VAT rate reduction for fruits and vegetables on prices in Latvia: ex-post analysis’, Agraarteadus Journal of Agricultural Science, 2019. Kosonen T., ‘More and cheaper haircuts after VAT cut? On the efficiency and incidence of service sector consumption taxes’, Journal of Public Economics, Vol.131, 2015, pp. 87-100. Benedek D., De Mooij R., Keen M. and Wingender P., ‘Varieties of VAT pass through’, International Tax and Public Finance, Vol.27(4), 2020, pp.890-930. Benzarti Y., Carloni D., Harju J. and Kosonen T., ‘What goes up may not come down: asymmetric incidence of value- added taxes’, Journal of Political Economy, Vol.128(12), 2020, pp 4438-4474. Carbonnier C., ‘Is Tax Shifting Asymmetric? Evidence From French VAT Reforms, 1995-2000’, Working Paper, 2005.; Politi R. and Mattos E., ‘Ad-Valorem Tax Incidence and After-Tax Price Adjustments: Evidence From Brazilian Basic Basket Food’, Canadian Journal of Economics/Revue Canadienne d’Economie, Vol.44(4), 2011, pp. 1438– 1470. and Copenhagen. Economics, Study on reduced VAT applied to goods and services in the Member States of the European Union, Taxation Papers No. 13, DG TAXUD, European Commission, 2008.Siqueira, R. B.; Nogueira, J. R.; Souza, E. S., Luna, C.F. O Sistema Tributário Brasileiro é Regressivo? em Afonso, Lukic, Orair e Gaiger “Tributação e Desigualdade”, 2018. Cf também, entre outros: Siqueira, R.B.; Nogueira, J.R.; Souza, E.S. Os impostos sobre consumo no Brasil são regressivos? Economia Aplicada, vol. 4, nº 4, 2000, p. 705-722 e Siqueira, R.B.; Nogueira, J.R.; Souza, E.S. Alíquotas efetivas e distribuição da carga tributária indireta sobre as famílias no Brasil. XV Prêmio do tesouro Nacional. Secretaria do Tesouro Nacional, Ministério da Fazenda, 2010.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Conforme artigo aqui publicado: &lt;<a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/politicas-tributarias/regressividade-e-aliquotas-diferenciadas-nos-tributos-sobre-o-consumo-15012021">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/politicas-tributarias/regressividade-e-aliquotas-diferenciadas-nos-tributos-sobre-o-consumo-15012021</a>&gt;.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Disponível em: &lt;<a href="https://www.gov.br/economia/pt-br/acesso-a-informacao/participacao-social/conselhos-e-orgaos-colegiados/cmap/publicacoes/subsidios-da-uniao/boletim/11-boletim-mensal-sobre-os-subsidios-da-uniao-desoneracao-da-cesta-basica-1/view">https://www.gov.br/economia/pt-br/acesso-a-informacao/participacao-social/conselhos-e-orgaos-colegiados/cmap/publicacoes/subsidios-da-uniao/boletim/11-boletim-mensal-sobre-os-subsidios-da-uniao-desoneracao-da-cesta-basica-1/view</a>&gt;.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Disponível em: &lt;<a href="https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/STUD/2021/694215/EPRS_STU(2021)694215_EN.pdf">https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/STUD/2021/694215/EPRS_STU(2021)694215_EN.pdf</a>&gt;.

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JOTA

Não basta a simples concessão de um benefício que desonere todas as pessoas indistintamente

Alíquotas diferenciadas ferem princípios constitucionais

Não basta a simples concessão de um benefício que desonere todas as pessoas indistintamente