Danielle de Oliveira Nunes

Rodrigo Jansen

Imagine que você seja o CEO em uma empresa. O governo publica o edital do leilão para a concessão do serviço de transporte público de passageiros em determinado modal. Sua equipe analisa com cuidado a legislação e os documentos do leilão. Os riscos são identificados, o estudo de viabilidade é encomendado e, muitos cálculos depois, é definido o limite do investimento. Os números driblam a desconfiança dos acionistas, que aprovam a participação da empresa. O resultado vem e – vitória! – sua empresa conquista o contrato.
Os primeiros anos de concessão são desafiadores, especialmente em um contexto de crise econômica. De repente, vem a notícia: o Ministério Público ajuizou uma ação civil pública contra a empresa. Pede que ela seja obrigada a instalar câmeras em todas as plataformas na área da concessão.
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O custo é elevadíssimo, mas não havia sido considerado nos cálculos iniciais. Você desconfia que alguém da sua equipe cometeu um erro, e o Jurídico é o primeiro setor acionado. Mas a resposta te deixa ainda mais confuso: não há nada no edital, no contrato ou na lei que obrigue a empresa a fazer isso. E mais: provocada pelo próprio Ministério Público, a agência reguladora declarou que sua empresa não tem essa obrigação. Mesmo assim, a liminar foi concedida, e agora você precisa de um advogado para reverter a decisão urgentemente – ou a viabilidade do empreendimento sofrerá um duro golpe, assim como os planos de expansão de investimentos da sua empresa.
Com poucas variações, essa história tem se repetido nos últimos anos. Ações com pretensões similares têm se multiplicado pelo país. Diante disso, cabe indagar: mesmo à falta de específica obrigação legal ou contratual, pode o Poder Judiciário criar uma nova obrigação ao concessionário, agindo como a regular serviços públicos?
Há dois óbices claros. Primeiro, o próprio contrato de concessão, e, especialmente, o seu equilíbrio econômico-financeiro, assegurado pela garantia constitucional de manutenção das condições efetivas da proposta (art. 37, XXI, CRFB). Além disso, há um problema grave de separação de poderes. Afinal, cabe ao Poder Concedente, pela agência reguladora, estabelecer as diretrizes para a prestação dos serviços públicos regulados, dando concretude aos comandos legais, de cunho geral e abstrato, além de fiscalizar a observância a essas diretrizes.
A opção pelo modelo de regulação de serviços públicos por agências reguladoras independentes, no Brasil, visou a garantir uma regulação de melhor qualidade, pois insulada de influências políticas e feita por técnicos especializados. O objetivo é conferir maior segurança jurídica ao ambiente de negócios, atraindo investimentos.
Para isso, o legislador confere às agências reguladoras um âmbito de discricionariedade, com a prerrogativa de definir os parâmetros para que os serviços regulados sejam considerados adequados, e a competência para interpretar as normas legais e contratuais aplicáveis a esses serviços, fixando a orientação para os casos omissos. Quando a agência reguladora efetivamente exerce essas prerrogativas, ignorar sua decisão equivale a interferir no âmbito de discricionariedade concedido pelo legislador ao Poder Executivo.
À luz da teoria das capacidades institucionais, o princípio da separação de poderes passou a abranger a ideia de especialização funcional. Não há, mais, uma predefinição estática acerca da intensidade e do escopo de controle a que seria possível submeter um ato administrativo.<a href="#_edn1" name="_ednref1">[i]</a> Agora, busca-se estabelecer critérios para a distribuição dinâmica e funcionalmente adequada de tarefas e responsabilidades entre os poderes. Dentre esses critérios, está a idoneidade de cada um dos poderes (a partir de sua estrutura orgânica, legitimação democrática, forma de atuação, capacitação técnica etc.).
O Supremo Tribunal Federal estabeleceu as bases desse entendimento em um caso emblemático, que tratava de providências relacionadas às condições de presídios. Na ocasião, o Ministro Luís Roberto Barroso reconheceu que a interferência do Poder Judiciário deveria ser excepcional, justificando-se em caso de grave violação da dignidade da pessoa humana, além de patente e reiterada omissão do Poder Público. Segundo lembrou o Ministro, “o Judiciário não tem a visão sistêmica das demandas e o Judiciário normalmente é preparado para fazer micro-justiça, a justiça do caso concreto, com muita dificuldade de avaliar impactos sistêmicos das suas decisões pontuais”. Por isso, “em um modelo ideal, quem tem que tomar essas decisões [sobre políticas públicas] e implementá-las é o Poder Executivo”. <a href="#_edn2" name="_ednref2">[ii]</a>
Sob essa perspectiva, deve o Poder Judiciário adotar uma postura de deferência ao entendimento do órgão regulador, salvo se ele estiver flagrantemente fora dos limites da discricionariedade que foi delegada pelo legislador ou se afrontar literalmente disposições legais ou constitucionais.
Assim já entendeu o Poder Judiciário em algumas ocasiões, preservando a competência da agência reguladora. O Tribunal Regional Federal da 2ª Região destacou que “não cabe ao Poder Judiciário, diante da inexistência de ilegalidades concretamente aferidas, compelir a Administração a adotar medida que entende ser de maior grau de eficiência”. <a href="#_edn3" name="_ednref3">[iii]</a> Isso é especialmente importante quando “os órgãos técnicos, que têm capacidade para aferir, não só a conveniência das concessões de rodovias federais, mas principalmente os aspectos estritamente técnicos” tenham se pronunciado a respeito da questão.<a href="#_edn4" name="_ednref4">[iv]</a>
Em outra oportunidade, o mesmo Tribunal entendeu que “a não ser que haja flagrante ilegalidade ou falta de razoabilidade, há de se prestigiar a decisão técnica da agência reguladora”, notadamente porque, relativamente ao Ministério Público, “falta-lhe, salvo melhor juízo, capacidade técnica para definir as prioridades no campo de segurança. A mesma capacidade que, legalmente, a ANAC possui”. <a href="#_edn5" name="_ednref5">[v]</a>
Por mais louváveis que sejam as intenções do Poder Judiciário ao intervir nas concessões de serviço público, somente é admissível que o faça, invadindo campo reservado à discricionariedade técnica da agência reguladora, se estivermos diante de um caso extremo, onde haja uma clara omissão da agência reguladora em face de falha gravíssima na prestação do serviço público, que importe em violação a direitos fundamentais.
Caso contrário, o Judiciário não apenas violará a separação de poderes e a obrigação constitucional de manutenção das condições efetivas da proposta: também contribuirá decisivamente para que vá por água abaixo todo o esforço para a criação de um ambiente regulatório estável e atrativo a investimentos, ferindo de morte a busca por serviços públicos mais eficientes.
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<a href="#_ednref1" name="_edn1">[i]</a> SUNSTEIN, Cass R.; VERMEULE, Adrian. Interpretation and Institutions..., 2002, p. 32-33, 47-48.
<a href="#_ednref2" name="_edn2">[ii]</a> STF, Plenário, RE 592.581, Rel. Ministro Ricardo Lewandowski, j. 13/8/2015.
<a href="#_ednref3" name="_edn3">[iii]</a> TRF2, Rel. Des. Aluisio Gonçalves de Castro Mendes, 5ª Turma Especializada, AC 200751040035078, j. 20/05/2014.
<a href="#_ednref4" name="_edn4">[iv]</a> Idem.
<a href="#_ednref5" name="_edn5">[v]</a> TRF2, Rel. Des. Nizete Lobato Carmo, Remessa Ex Officio 0033925-61.2013.4.02.5101, j. 05/06/2019.

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JOTA

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