Edson Isfer

Henrique Roth Isfer

Dentro do complexo legado que a pandemia da COVID-19 deixa ao País, há importante desafio no que se refere ao desequilíbrio das contas governamentais, decorrente dos expressivos gastos públicos exigidos e a alta dependência da arrecadação nacional sobre a renda e consumo – duas riquezas fortemente afetadas pela crise.
A mão invisível e o liberalismo absoluto de Adam Smith faziam sentido em um período pós absolutismo estatal; no entanto, a experiência dos últimos dois séculos tem nos mostrado que o mercado, em algumas áreas e situações, não obtém êxito em se auto regular, exigindo a presença ativa do Governo<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> - a atual crise econômica e sanitária reflete perfeitamente este cenário.
A título ilustrativo, o Governo Federal brasileiro havia gasto, até o dia 4 de junho de 2020, somente em relação ao combate à pandemia, cerca de 117 bilhões de reais, com previsão de alcançar o valor de 320 bilhões de reais<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. Trata-se de cerca de 17% do PIB nacional.
<a href="http://conteudo.jota.info/jota-pro-tributos" target="_blank" rel="noopener noreferrer"><img class="aligncenter wp-image-259015 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/07/cta-jota-pro-tributos.jpeg" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
Sendo assim, com expectativa de recessão ao menos para o ano de 2020 – o que evidencia a perda substancial de arrecadação para o exercício –, a bola da vez parece ser o retorno da discussão sobre a instituição de imposto sobre grandes fortunas no País.
Disposto na Constituição Federal de 1988, mais especificamente em seu artigo 153, VII, o IGF retornou à pauta no Congresso Nacional, com quatro propostas sendo discutidas<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Nas justificativas, dois fundamentos se destacam: alívio das contas públicas e desenvolvimento de um sistema tributário mais progressivo e justo. Em comum, a limitação para pessoas físicas, a previsão de pisos substancialmente altos (o menor deles prevê o patrimônio líquido mínimo de 22 milhões e oitocentos mil reais) e alíquotas entre 0,5% e 1%.
O caminho discutido por aqui também é objeto de estudos em outros países. Um grupo de professores de economia da London School of Economics e da University of California Berkeley tem defendido que, no caso da União Europeia, um tributo temporário e progressivo sobre o patrimônio seria a melhor opção para socializar os custos relacionados à Covid-19<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. Assim, ao invés de inflacionar a dívida pública, o equilíbrio seria buscado por meio da tributação da fortuna dos indivíduos inseridos na fatia dos 1% mais ricos da Europa, em período determinado de 10 anos.
A ideia de tributação sobre a riqueza líquida também é compartilhada por Thomas Piketty, economista francês que se tornou mundialmente famoso por sua obra “O capital no século XXI”. O autor se debruça sobre a constatação de que a taxa de retorno de capital é, atualmente, maior do que a taxa de crescimento econômico, o que possuiria importante papel para a manutenção da desigualdade mundial. Assim, a solução seria a implementação de um tributo progressivo sobre a renda aliado a outro progressivo sobre o patrimônio.
Diante das questões delineadas, a arrecadação sobre as grandes fortunas no Brasil, além de auxiliar no ajuste fiscal relacionado aos gastos com o combate à COVID-19, poderia atuar na diminuição da desigualdade enraizada na sociedade, tornar o capital mais produtivo – propriedades com alto custo e sem rendimentos (por exemplo, latifúndios) seriam descartadas – e melhorar a percepção de equidade e justiça sobre o sistema tributário – fato que influi na conformidade fiscal dos contribuintes.
<blockquote class="jota-article__eye">Mas, afinal, por que um tributo nessa linha ainda não foi instituído? Com tantos pontos positivos, não deveria ser essa a pauta principal na política social e no campo do Direito Financeiro e Tributário?</blockquote>
Apesar de a primeira resposta normalmente consistir na influência política que certos setores exercem para evitar a tributação – a qual não se ignora –, é certo que as experiências internacionais infrutíferas apontam para outro grande problema: a arrecadação efetiva não justifica a sua existência. Apenas a título ilustrativo, entre 1985 e 2016, dos 12 países que possuíam tributos sobre fortunas, apenas quatro os mantiveram.
Os motivos da baixa arrecadação são diversos. Em primeiro lugar, aqueles que possuem patrimônio tributável por essa espécie de exação fiscal são justamente a parcela da população que possui os meios para realizar a mobilização desses capitais. Estudos estimam que cerca de 8% de toda a riqueza financeira está alocada em países de carga tributária irrisória, percentual que sobe para 22% se considerada a américa latina<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
Reforçando os dados acima, a The Economist, em matéria especial publicada em novembro de 2017<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>, revelou que o mercado de compra de cidadanias movimenta anualmente em torno de dois bilhões de dólares na obtenção de cidadanias e passaportes de países com baixa tributação ou que permitem a circulação de seus residentes em uma ampla gama de nações.
A dificuldade de fiscalização e de mensuração dos ativos também persiste como desafio. Além da facilidade de transferência de saldos bancários e a introdução de novas tecnologias digitais, como os criptoativos, os órgãos fiscais teriam que se deparar com antigas problemáticas nacionais, como a contabilização de cabeças de gado e a identificação e avaliação de bens como joias de alto padrão. Basta lembrar o caso da ex-primeira-dama do Rio de Janeiro, Adriana Ancelmo, que possuía cerca de cinco milhões de reais em artigos pessoais não declarados<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.
Apesar de serem obstáculos ultrapassáveis, o aumento dos custos de implementação coloca em xeque o efetivo benefício de tributos sobre a riqueza líquida, considerada a potencial arrecadação. Em 2016, nos quatro países que ainda mantinham uma espécie de IGF, nomeadamente, Suíça, Espanha, França e Noruega, a taxa comparativa com a integralidade dos ganhos fiscais consistia em 3,70%, 0,54%, 0,48% e 1,13%, respectivamente<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>.
<blockquote class="jota-article__eye">Caso o País consiga repetir os patamares suíços, teríamos, em termos de eficiência (% do PIB), valores de arrecadação equivalentes à contribuição ao PIS/Pasep (0,97% do PIB); enquanto se ficarmos próximos de Espanha e França, o montante seria inferior aos números das contribuições ao Sistema S<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a> (0,29% do PIB).</blockquote>
Apesar de certamente consistir em exação progressiva e que aumentaria a percepção de justiça social e tributária acerca do sistema fiscal, pode-se afirmar que, sozinha, pouca coisa mudaria em termos de efetiva redistribuição de riquezas ou aumento da arrecadação – Piketty prevê que um tributo sobre heranças, para conseguir frear o incremento da desigualdade, deveria possuir alíquotas no patamar de 50% a 60% do patrimônio<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>.
Sendo assim, para o efetivo cumprimento dos objetivos buscados pelos defensores do IGF – ajuste das contas públicas e equidade no sistema tributário –, talvez sejam adequadas as lições de Liam Murphy e Thomas Nagel, em “O mito da propriedade”. Segundo os autores, toda e qualquer reforma que contemplasse apenas a forma de arrecadação do Estado, ignorando como os valores seriam aplicados na sociedade, já sofreria de certa “miopia” na tentativa de busca por justiça tributária<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>.
Entendemos, diante disto, que a ampla discussão sobre os efeitos fiscais é essencial para que o Governo possa avaliar os efetivos benefícios de sua implementação, bem como suas limitações.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> STIGLITZ, Joseph E. Economics of the public sector. 4th edition. New York: W.W. Norton, p. 93.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Disponível em: <a href="https://www.tesourotransparente.gov.br/visualizacao/painel-de-monitoramentos-dos-gastos-com-covid-19">https://www.tesourotransparente.gov.br/visualizacao/painel-de-monitoramentos-dos-gastos-com-covid-19</a>. Acesso em: 4 jun. 2020.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/03/27/senado-debate-quatro-propostas-de-imposto-sobre-grandes-fortunas#:~:text=Senado%20debate%20quatro%20propostas%20de%20imposto%20sobre%20grandes%20fortunas,-Da%20Reda%C3%A7%C3%A3o%20%7C%2027&amp;text=Visto%20como%20uma%20potencial%20fonte,projetos%20em%20tramita%C3%A7%C3%A3o%20no%20Senado.. Acesso em: 4 jun. 2020.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> LANDAIS, Camille; SAEZ, Emmanuel; ZUCMAN, Gabriel. A progressive european wealth tax to fund the european COVID response. Vox. Disponível em: https://voxeu.org/article/progressive-european-wealth-tax-fund-european-covid-response. Acesso em: 5 jun. 2020.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> BRUMBY, James; KEEN, Michael. Game-changers and whistle-blowers: taxing wealth. IMFBlog. 13 fev. 2018. Disponível em: https://blogs.imf.org/2018/02/13/game-changers-and-whistle-blowers-taxing-wealth/. Acesso em: 5 jun. 2020.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> VALENCIA, Matthew. Citizens of anywhere. 1843 magazine. Out. 2017. Disponível em: https://www.1843magazine.com/features/citizens-of-anywhere. Acesso em: 5 jun. 2020.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/03/defesa-de-sergio-cabral-entrega-27-joias-a-policia-federal-em-acordo-de-delacao.shtml#:~:text=Regalias%20de%20Cabral&amp;text=Ele%20foi%20cancelado%20por%20Bretas,joalherias%20e%20pesquisa%20de%20mercado.. Acesso em: 5 jun. 2020.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> The role and design of net wealth taxes in the OECD. OECD Tax policy studies. 12 abr. 2018. Disponível em: https://www.oecd-ilibrary.org/taxation/the-role-and-design-of-net-wealth-taxes-in-the-oecd_9789264290303-en?itemId=/content/publication/9789264290303-en&amp;_csp_=b746b256f23e109b9244f92078eb7093&amp;itemIGO=oecd&amp;itemContentType=book. Acesso em: 5 abr. 2020.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Carga tributária no Brasil 2018. Receita Federal. Disponível em: https://receita.economia.gov.br/dados/receitadata/estudos-e-tributarios-e-aduaneiros/estudos-e-estatisticas/carga-tributaria-no-brasil/ctb-2018-publicacao-v5.pdf. Acesso em: 5 jun. 2020.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> PIKETTY, Thomas. Capital wealth taxation in the 21st century. National Tax Journal. June 2015, 68, pp. 454.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> MURPHY, Liam; NAGEL, Thomas. O mito da propriedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

imposto

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JOTA

Com tantos pontos positivos, não deveria ser a pauta principal na política social e no campo do Direito Financeiro e Tributário?

Afinal, poderia o Imposto sobre Grandes Fortunas auxiliar na situação fiscal?

Com tantos pontos positivos, não deveria ser a pauta principal na política social e no campo do Direito Financeiro e Tributário?