Daniel Lozoya Constant Lopes

Maria Julia Miranda Baltar da Rocha

Volta à pauta do Supremo Tribunal Federal (STF), na sessão da próxima quinta-feira (25), a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, conhecida como “ADPF das Favelas”. Após pedido de vistas do ministro Alexandre de Moraes, é retomado o julgamento dos embargos de declaração opostos em face da decisão colegiada que concedeu diversas medidas cautelares.
Dentre as medidas cautelares, a de maior impacto imediato seguramente foi a determinação da suspensão das operações policiais nas comunidades do Rio de Janeiro durante a pandemia, salvo em casos absolutamente excepcionais.
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De acordo com dados de estudo do GENI-UFF (Grupo de Estudos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense), em decorrência da restrição às operações policiais no estado, a letalidade policial em 2020 apresentou um decréscimo de 34% das mortes em comparação ao ano de 2019 no estado do Rio de Janeiro. Foi a maior redução anual de mortes decorrentes de intervenção policial em 15 anos, estimando-se que ao menos 288 vidas foram poupadas<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
O impacto da decisão na realidade do estado também foi apontado no Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (ano-base 2020) ao analisar o crescimento das mortes decorrentes de intervenção policial no Brasil, que atingiu o maior número desde o início da série histórica, em 2013, a despeito da queda recorde no Rio de Janeiro em decorrência da decisão do STF<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Contudo, a decisão do Supremo vem paulatinamente perdendo a eficácia. O descumprimento reiterado da liminar fez com que o número de operações policiais em 2021 superasse as ocorrências do período anterior ao deferimento da decisão, culminando com a intervenção no Jacarezinho pela Polícia Civil, em 6 de maio de 2021, que resultou na morte de 28 pessoas, das quais um policial e as demais vítimas de homicídio decorrente da ação policial. Pelo número de vítimas, o massacre do Jacarezinho é considerado a operação policial mais letal da história do Rio de Janeiro.
Além da suspensão das operações policiais nas comunidades, várias outras medidas cautelares foram concedidas na ADPF 635 com vistas à superação do estado de coisas inconstitucional na segurança pública do estado do Rio de Janeiro, tais como: a restrição do uso de helicópteros nas operações policiais; determinar a preservação de vestígios de crimes cometidos em operações policiais, de modo a evitar a remoção indevida de cadáveres sob o pretexto de suposta prestação de socorro e o descarte de peças e objetos importantes para a investigação; determinar aos órgãos de polícia técnico-científica do estado do Rio de Janeiro que documentem, por meio de fotografias, as provas periciais produzidas em investigações de crimes contra a vida, notadamente o laudo de local de crime e o exame de necropsia, com o objetivo de assegurar a possibilidade de revisão independente; determinar que, no caso de realização de operações policiais em perímetros nos quais estejam localizados escolas, creches, hospitais ou postos de saúde, sejam observadas determinadas diretrizes para minimização dos riscos; suspender a exclusão dos indicadores de redução de homicídios decorrentes de intervenção policial do cálculo das gratificações dos integrantes de batalhões e delegacias; e reconhecer que sempre que houver suspeita de envolvimento de agentes dos órgãos de segurança pública na prática de infração penal, a investigação será atribuição do órgão do Ministério Público competente. A investigação, por sua vez, deverá atender ao que exige o Protocolo de Minnesota, em especial no que tange à oitiva das vítimas ou familiares e à priorização de casos que tenham como vítimas as crianças.
A realização da operação intitulada Exceptis – em referência à decisão do STF que determina a suspensão das operações nas comunidades durante a pandemia, salvo em casos absolutamente excepcionais –, por si só, já é objeto de investigação de desobediência de ordem judicial pelo Ministério Público Federal por determinação do ministro Edson Fachin.
Trataremos aqui da medida cautelar de atribuição de investigação por parte do Ministério Público nos casos de suspeita de envolvimento de agentes dos órgãos de segurança pública na prática de infração penal e seus efeitos no caso da operação policial no Jacarezinho.
A determinação de investigação independente dos casos de uso da força letal pela polícia converge com a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH) no caso Favela Nova Brasília. Neste caso, o Estado brasileiro foi condenado, em 2017, por violação dos direitos convencionais à proteção judicial e das garantias judiciais pela falta de devida diligência na investigação de 26 mortes e crimes sexuais contra três mulheres ocorridos em duas operações – também da Polícia Civil fluminense – em 1994 e 1995 no Complexo do Alemão.
Na sentença, o Tribunal Interamericano declarou que os fatos do caso fazem parte de um contexto de violência estrutural, destacando que “a violência policial representa um problema de direitos humanos no Brasil, em especial no Rio de Janeiro” onde “entre as vítimas fatais de violência policial, estima-se uma predominância de jovens, negros, pobres e desarmados”.
A CorteIDH destacou a inidoneidade dos inquéritos como obstrução à realização de justiça ao declarar que “é inadmissível que os mesmos policiais estejam a cargo de uma investigação contra eles próprios ou seus companheiros de delegacia ou departamento”, uma vez que a “falta de independência concreta dos investigadores torna-se evidente da análise de sua relação direta com os homicidas, suas ações tendenciosas e parciais e a excessiva morosidade dos procedimentos”.
Neste sentido, observou a CorteIDH que “antes de investigar e corroborar a conduta policial, em muitas das investigações se realiza uma investigação a respeito do perfil da vítima falecida e se encerra a investigação por considerar que era um possível criminoso”.
Com relação ao papel constitucional do Ministério Público brasileiro de exercer o controle externo da atividade policial (art. 129, VII), constou da sentença que "a Corte considera necessário que o controle externo do Ministério Público em casos de violência policial se projete além da prática de supervisão à distância das investigações realizadas por delegados da própria polícia".
A questão da falta de imparcialidade e diligência das investigações das mortes provocadas pela polícia é ainda mais problemática quando envolve agentes da Polícia Civil. Isso porque nesses casos o esprit de corps é reforçado, na medida em que se tem a mesma força pública envolvida no incidente como responsável pela investigação.
As declarações de autoridades da Polícia Civil no episódio do Jacarezinho – antes mesmo da instauração da investigação – de que <a href="https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/05/antes-de-apuracao-diretor-de-departamento-de-homicidios-diz-que-nao-houve-execucao-em-operacao.shtml">“não houve execução”[3] ou </a>de que todos os mortos eram criminosos ("Não tem nenhum suspeito aqui, a gente tem criminoso, homicida e traficante"<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>), e a apresentação à imprensa dos antecedentes criminais dos mortos como se fossem justificativas para as mortes<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> corroboram empiricamente a ausência de condições mínimas por parte da Polícia Civil de realizar uma investigação séria e imparcial do caso do Jacarezinho.
Dentre as medidas de reparação, a CorteIDH determinou como garantia de não repetição que o Estado brasileiro estabeleça mecanismos normativos necessários para “na hipótese de supostas mortes, tortura ou violência sexual decorrentes de intervenção policial, em que prima facie policiais apareçam como possíveis acusados, desde a notitia criminis se delegue a investigação a um órgão independente e diferente da força pública envolvida no incidente, como uma autoridade judicial ou o Ministério Público, assistido por pessoal policial, técnico criminalístico e administrativo alheio ao órgão de segurança a que pertença o possível acusado”.
Tendo em consideração que o ordenamento constitucional brasileiro adota o sistema processual penal acusatório, de modo a afastar os órgãos judiciais da condução de investigações criminais a fim de preservar sua imparcialidade, incumbe ao Ministério Público, como “órgão independente e diferente da força pública envolvida no incidente”, proceder a investigação direta e autonomamente nesses casos.
Sucede que a sentença do caso Favela Nova Brasília, passados quatro anos, seguia sendo descumprida e o cenário se repetindo. O Estado não adotou as providências normativas necessárias para garantia da investigação imparcial, diligente e em tempo razoável dos casos de violência policial. Daí a necessidade da decisão do STF em determinar a atribuição do Ministério Público em proceder à investigação de tais casos, com observância do Protocolo de Minnesota e assegurando o direito de participação das vítimas.
Nas palavras do ministro Edson Fachin, relator da ADPF das Favelas:
<blockquote class="jota-article__citation">“O reconhecimento da competência investigatória do Ministério Público, tal como fez este Tribunal quando do julgamento do RE 593.727, deflui da competência material direta do Ministério Público, consoante disposto no art. 129, I e IX, da Constituição Federal. O sentido da atribuição dada ao Ministério Público no texto constitucional coincide com o papel que se exige de uma instituição independente para a realização das atividades de responsabilização penal prevista nos Princípios das Nações Unidas sobre o Uso da Força e Armas de Fogo. O reconhecimento do poder do Ministério Público de realizar essa atividade não pode ser visto como faculdade, pois quem detém a competência para investigar não pode agir com discricionariedade sobre ela, sob pena de compactuar com a irregularidade que deveria ser cuidadosamente apurada. Ademais, não se pode alegar que a competência dos delegados de polícia para a realização de investigações de infrações que envolvam os seus próprios agentes atenda à exigência de imparcialidade, reclamada pelos tratados internacionais de direitos humanos. Sempre que houver suspeita de envolvimento de agentes dos órgãos de segurança pública na prática de infração penal, a investigação será atribuição do órgão do Ministério Público competente. O exercício dessa atribuição deve ser ex officio e prontamente desencadeada, o que em nada diminui os deveres da polícia de enviar os relatórios sobre a operação ao parquet e de investigar, no âmbito interno, eventuais violações".</blockquote>
Com efeito, inquéritos policiais instaurados pela Polícia Civil para investigar os fatos carecem de legitimidade, eis que em manifesta contrariedade com a sentença do caso Favela Nova Brasília e agora também com a medida cautelar na ADPF 635, por falta de independência e imparcialidade.
No caso do morticínio provocado na operação policial no Jacarezinho, o Ministério Público do Rio de Janeiro ofereceu denúncia em face de dois policiais civis pela morte de Omar Pereira da Silva, bem como por crimes previstos na Lei de Abuso de Autoridade, pela retirada do cadáver do local antes da realização da perícia e de apreensões forjadas. Segundo a acusação, a vítima foi “alvejada mortalmente quando encurralada em um dormitório infantil, desarmada e já baleada no pé”<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>. A denúncia foi oferecida – e já recebida pelo juízo – em menos de seis meses desde o evento.
Em comparação com o caso Favela Nova Brasília, representativo do que geralmente acontece com os inquéritos policiais que tratam de mortes decorrentes de intervenção policial, em que 99% dos casos são arquivados após tramitarem por anos sem nenhuma diligência relevante, o contraste é patente<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>. Trata-se de avanço considerável no sentido de garantir uma investigação imparcial, diligente e em tempo razoável, conforme as obrigações assumidas pelo Estado brasileiro em tratados internacionais de direitos humanos.
Contudo, para a garantia da completude da investigação independente dos casos de violência policial, é necessária a assistência de “pessoal policial, técnico criminalístico e administrativo alheio ao órgão de segurança a que pertença o possível acusado”. Eis mais um grave problema: a falta de autonomia da Perícia Oficial, que, no estado do Rio de Janeiro, é um departamento da Polícia Civil, estando estruturalmente subordinada à chefia da Polícia Civil. É urgente, pois, inclusive em atendimento a recomendações reiteradas de relatores especiais da ONU, que a Perícia Oficial seja desvinculada das estruturas policiais, para que a autonomia técnica, científica e funcional dos peritos, prevista na <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12030.htm">Lei 12.030/2009</a>, seja efetivamente viabilizada.
Pode-se afirmar que a ADPF das Favelas é crucial para a garantia de acesso à justiça às vítimas do Jacarezinho e dos casos de violência policial em geral, no sentido de viabilizar uma investigação imparcial, diligente e em tempo razoável, especialmente nos casos que envolvem a Polícia Civil.
Com a retomada do julgamento dos embargos de declaração nesta quinta-feira (25), espera-se que prevaleça o voto do relator, ministro Edson Fachin, para que outra determinação da sentença do caso Favela Nova Brasília seja cumprida e supervisionada pelo STF, qual seja: a elaboração e realização de um plano de redução de letalidade policial. Mais uma vez, um profícuo “diálogo das Cortes” pode produzir efeitos positivos para a proteção dos direitos humanos e superação de violações estruturais contra grupos historicamente discriminados e socialmente vulneráveis.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Bueno, Samira; Marques, David; Pacheco, Dennis. As mortes decorrentes de intervenção policial no Brasil em 2020. In Fórum Brasileiro de Segurança Pública.  Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021. Coordenação Samira Bueno e Renato Sérgio de Lima, 2021. Disponível em <a href="https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/07/4-as-mortes-decorrentes-de-intervencao-policial-no-brasil-em-2020.pdf">https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/07/4-as-mortes-decorrentes-de-intervencao-policial-no-brasil-em-2020.pdf</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Hirata; Grillo; Dirk; Lyra. Operações policiais e violência letal no Rio de Janeiro: Os impactos da ADPF 635 na defesa da vida. Relatório de Pesquisa. 2021. Disponível em <a href="http://geni.uff.br/wp-content/uploads/sites/357/2021/04/Relatorio-audiencia_balanco_final_22_03_2021-1.pdf">http://geni.uff.br/wp-content/uploads/sites/357/2021/04/Relatorio-audiencia_balanco_final_22_03_2021-1.pdf</a>
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a>“Antes de apuração, diretor de Departamento de Homicídios diz que ‘não houve execução’ em operação”. Folha de S.Paulo. Italo Nogueira. Publicado em 7.mai,2021. Acesso em 13.mai, às 18h30. Disponível em: &lt; <a href="https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/05/antes-de-apuracao-diretor-de-departamento-de-homicidios-diz-que-nao-houve-execucao-em-operacao.shtml">https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/05/antes-de-apuracao-diretor-de-departamento-de-homicidios-diz-que-nao-houve-execucao-em-operacao.shtml</a>&gt;
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> “Operação com 25 mortos no Jacarezinho é a mais letal da história do Rio”. UOL. Igor Mello, 6-5-21. Disponível em: &lt; <a href="https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2021/05/06/operacao-no-jacarezinho-e-a-mais-letal-da-historia-do-rio-de-janeiro.htm">https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2021/05/06/operacao-no-jacarezinho-e-a-mais-letal-da-historia-do-rio-de-janeiro.htm</a>&gt;.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> “Vítimas do Jacarezinho tinham ficha criminal ou envolvimento com o tráfico relatado por parentes, diz polícia”. Folha de S.Paulo, 10.mai.21. Italo Nogueira. Disponível em: <a href="https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/05/vitimas-do-jacarezinho-tinham-passagem-pela-policia-e-envolvimento-com-o-trafico-relatado-por-parentes.shtml">https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/05/vitimas-do-jacarezinho-tinham-passagem-pela-policia-e-envolvimento-com-o-trafico-relatado-por-parentes.shtml</a>
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> “MPRJ denuncia dois policiais civis por morte na ação no Jacarezinho”. TV Globo e g1Rio, 15/10/2021. Felipe Freire e Henrique Coelho. Disponível em: &lt;<a href="https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/10/15/mprj-jacarezinho.ghtml">https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/10/15/mprj-jacarezinho.ghtml</a>&gt;.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Os dados constam da pesquisa empreendida no livro "Quando a polícia mata: homicídios por 'autos de resistência' no Rio de Janeiro (2001-2011). Michel Misse, Carolina Christoph Grillo, César Pinheiro Teixeira e Natasha Elbas Neri. Rio de Janeiro: NECVU: BOOKLINK, 2013.

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JOTA

Uma das medidas cautelares na 'ADPF das Favelas' determina investigação pelo Ministério Público de casos de violência policial

ADPF 635 viabiliza investigação independente do massacre do Jacarezinho

Uma das medidas cautelares deferidas na ADPF 635, a 'ADPF das Favelas', determina a investigação pelo Ministério Público de casos de violência policial