Maurilio Casas Maia

Com o resultado da peculiar ADPF n° 279, alguns debates pode ser arguidos. Contudo, algo é certo: não houve autorização para a municipalização da Justiça. O Supremo Tribunal Federal (STF) não autorizou “Defensorias Municipais”, como também não autorizaria “Judiciário” ou “Ministério Público” municipais.
A “assistência judiciária municipal” pré-Constituição de 1988 – 1983 – de Diadema (SP) não é “Defensoria municipal”, tanto quanto um serviço de “arbitragem e mediação municipal” ou de “assistência judiciária e investigativa às vítimas” não seriam, respectivamente, Judiciário e MP municipais, por mais que ampliassem a “liberdade de escolha” e o “acesso à justiça”, como citou o STF, por inexistir “monopólio estatal” sobre os litigantes.
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Em 2008, no texto “Juízes municipais podem solucionar lentidão da Justiça” (<a href="https://www.conjur.com.br/2008-fev-28/juizes_municipais_podem_solucionar_lentidao_justica">aqui</a>), o desembargador federal Vladimir Passos de Freitas expôs diversos dados históricos e argumentativos sobre o tema tratado. Na ocasião, o referido autor apontou os riscos da “municipalização do Judiciário” – aplicável, mutatis mutandis, à Defensoria e ao Ministério Público: “a) Risco de politização partidária dos juízes e conciliadores; b) Risco de reivindicações das prerrogativas constitucionais da magistratura, com isto tornando-se uma Justiça formal e inadequada para as suas finalidades; c) Risco de originar conflitos de jurisdição, eternizando os conflitos; d) Risco de abrir-se a possibilidade de inúmeros recursos, caindo-se na vala comum de diversas instâncias e atraso na definição do conflito".
Com efeito, o constituinte – ao não prever a municipalização do Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública –, consignou um fortíssimo “silêncio eloquente” lastreado na experiência trágica da proximidade dessas instâncias do sistema de justiça com a política local, impedindo a fluência dos trabalhos e a real independência entre as funções estatais.
A “não municipalização” dos entes autônomos do sistema de Justiça (Judiciário, MP e DP) sempre foi proposital por garantir e viabilizar: 1) o distanciamento necessário à imparcialidade judicial e impessoalidade ministerial e defensorial; 2) a concentração das políticas públicas municipais em áreas sensíveis e necessidades primárias; 3) a obstaculização à manipulação de demandas contra o município por eventual distorção informacional-jurídica aos vulneráveis e outras técnicas.
Nesse contexto, durante o julgamento da ADPF n° 279, o profícuo voto do ministro Nunes Marques explorou as regras constitucionais estruturantes dos serviços de todas a instituições do sistema de justiça – sendo em tal ponto alvo de elogio pelo ministro Luís Roberto Barroso. Todavia, a decisão da ADPF n° 279 aparenta padecer de “frouxidão hermenêutica” porque é perigosamente lastreada em princípios (em especial a “liberdade de escolha” e a ampliação do “acesso à justiça”) e pouco calcada em regras constitucionais, esquecidas até mesmo as normas de transição quanto ao sistema jurídico pré-1988.
Nesse sentido, exemplifica-se: a) regra de “opção pelo cargo” – ADCT, artigo 22 <a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>– como ocorreu com a possibilidade pós-88 de opção pela carreira, conforme “pensado” pelo STF <a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>; b) e a “obrigatoriedade constitucional originária” de “estruturação mínima” das comarcas, concomitantemente com membros do Judiciário, do MP e da DP (ADCT, artigo 235, VII <a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>).
Por outro vértice, o julgado da ADPF n° 279 também se enfraquece como eventual “precedente” porque ausentes manifestações de movimentos sociais e outros segmentos da sociedade. Parcas foram as participações. De ambos os lados de interesse, a ADPF n° 279 é um julgado democraticamente estranho. As manifestações são de ordem profissional: de um lado, município de Diadema e a Associação de Procuradores Municipais; de outro, a DPU e a Anadep. Indaga-se: foram ouvidos os interessados e atingidos naquela comarca que já conta com 10 defensores públicos? Não. E por quê? Eis um ponto de fragilidade democrática do decisório...
Não bastasse tudo quanto narrado até este ponto, o autor padeceu de “(in)adequada representação” dos interesses levados a juízo. Com o acato devido, a condução ministerial de pauta de interesse do “Estado Defensor” e dos necessitados se revelou confusa e um “cavalo de troia”, desde sua petição inicial (carente de olhar específico à causa) até a sustentação oral “contra factum proprium”. E, embora petição inicial abraçasse o modelo federativo constitucional da Defensoria Pública, apresentou-se uma petição inicial sem referências aos estudos mais específicos sobre Defensoria. No julgamento, houve até mesmo crítica à emenda à petição inicial, apontada pelo ministro Gilmar Mendes.
Noutro passo, assustadoramente, o autor da ação (PGR) mudou de ideia na sustentação oral (3/11/2021), passando a atuar contra a própria pretensão – um “cavalo de troia” contra a Defensoria. Ademais, o autor sustentou “contra legem”, para todo Brasil, a inexistência de “defensor natural” – como se esquecesse ou nunca tivesse lido a lei, exatamente o “fiscal da lei”. Sim, a manifestação ministerial “esqueceu” a redação expressa da LC n° 80/1994 (artigo 4º, IV <a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>) e a proteção constitucional (artigo 5º, LIII<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>) aos “processantes naturais” <a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> – incluindo os membros da Defensoria em sua hipótese de atuação, processando e impulsionando a tramitação processual dentro de sua atribuição.
Felizmente, os fatos relevantes ligados à assistência judiciária municipal de Diadema (SP) são muitíssimo peculiares: 1) é um serviço não-defensorial (como o próprio STF admitiu no julgamento) e 2) é de criação pré-1988 (1983), razão pela qual as regras de transição retrocitadas deveriam ter sido analisadas – contudo, perigosamente, não o foram.
E há mais a se dizer. Ao contrário do afirmado na <a href="https://www.conjur.com.br/2020-mai-26/tribuna-defensoria-omissao-constitucional-expansao-defensoria-publica-uniao">ADO n° 2</a>, o STF – a partir da manifestação dos ministros –, parece ter reconhecido a “omissão inconstitucional” da União e estados em estruturar a Defensoria Pública brasileira.
Com efeito, em diversas manifestações dos ministros do STF na ADPF n° 279, a insuficiência de defensores públicos foi pressuposto imprescindível e reiterado para alcançar as conclusões, indicando-se com isso o reconhecimento de um “estado de coisas inconstitucionais” diante do sub-financiamento orçamentário (<a href="https://www.conjur.com.br/2019-out-06/tj-am-ve-estado-coisas-inconstitucional-defensoria-publica">aqui</a>) da Defensoria Pública acarretado por um descaso estatal que tem a mesma idade da Constituição.
Ou seja, na ADPF n° 279, os ministros partem da premissa de existir deficiência estrutural no suprimento da Defensoria Pública por estados, Distrito Federal e União. Assim, a ratio decidendi (fundamentos determinantes) foi calcada na lógica da “inconstitucionalidade progressiva” ou do “trânsito para a inconstitucionalidade”. Até porque é de se pressupor na fala do “guardião da Constituição” (STF) o ideal de sempre (per)seguir a Constituição: municípios tratando de política pública prioritária e a Defensoria Pública suprindo eventuais necessidades de assistência jurídica.
Perto do fim, registre-se um alerta: se conduzida por equivocada interpretação, o julgado da ADPF n° 279 pode ser prejudicial não somente ao “padrão federativo” do Sistema de Justiça, como também à efetividade das políticas públicas municipais e ao real acesso à justiça.
Isso porque, infelizmente, premido da ânsia por um “acesso formal à justiça”, o STF da ADPF n° 279 parece não ter muita noção do vespeiro afrontado. Há agora um perigo sério e real rondando os municípios não cumpridores de deveres constitucionais básicos voltados à promoção 1) da saúde, 2) da educação, 3) do transporte público, 4) do saneamento básico, 5) da criação de creches e proteção à maternidade, 6) de políticas públicas efetivas às crianças e adolescentes, 7) aos idosos, 8) às pessoas com deficiência e 9) às mulheres em situação de violência doméstica e sua correlata rede de proteção.
Em outras palavras, há uma aparente (mas inexistente) autorização de desvio dos escassos recursos públicos municipais em detrimento de prestações voltadas às necessidades populacionais básicas, mas em prestígio da criação de estruturas municipais jurídicas, potencialmente instrumentais à “politicagem” e eventuais “toma-lá-dá-cá” dos favores políticos. Há perigo de uma temerária “Constituição-álibi” <a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.
E, pior, em cenário de recursos públicos escassos, o STF não parece ter sido suficientemente claro sobre a possibilidade de incidência irracionalmente duplicada (“bis in idem”) dos serviços jurídicos defensoriais e da tal suplementação jurídica em determinado município, principalmente quando operada em detrimento de várias outras políticas públicas municipais já deficitárias quanto às necessidades básicas locais.
Imagine-se: não se contrataria um médico ou um enfermeiro para uma unidade hospitalar local a fim de prestigiar a eventual contratação de um serviço jurídico não atribuído constitucionalmente para o município, impactando em vidas de pessoas humildes “hipervulneráveis” <a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>, carentes de saúde. Os ministros do STF, contudo, jamais terão ciência de todos os relatos. Assim, serão casos invisíveis e distantes dos “olhos supremos” – que não serão incomodados na paz de suas reflexões... Nessas situações, pergunta-se: haverá em tese “acesso formal à justiça” via “assistência judiciária”, mas e o “acesso à ordem jurídica justa” <a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a> quanto às necessidade básicas?
Por outro lado, muitas outras demandas jurídicas nunca chegarão ao STF. Há um grande risco de ocultação das demandas jurídicas por ineficiência das políticas municipais. A população de baixa renda, com suas eventuais limitações de conhecimento jurídico, poderá ser alvo fácil do desestímulo contra demandas municipais, e a Defensoria Pública perderá dados essenciais para elaborar política de atuação defensorial local, regional e nacionalizada.
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Ao remate, sob a “lógica mercantil” do “poder de escolha” em um sistema “não mercadológico” e para supostamente fortalecer “acesso à justiça”, o STF olvidou que, às vezes, “menos é mais”, potencialmente lançando a população carente a um cenário de 1) dispersão frágil das políticas públicas municipais quanto às necessidades primárias e 2) a um arriscado simulacro jurídico e de ocultação quanto aos déficits nas demandas contra os municípios.
Eis as reflexões para o debate. Em suma, diante de tantos riscos democráticos, convém indagar: “Quem nos protege da bondade dos bons?”.<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> ADCT, “Artigo 22. É assegurado aos defensores públicos investidos na função até a data de instalação da Assembléia Nacional Constituinte o direito de opção pela carreira, com a observância das garantias e vedações previstas no art. 134, parágrafo único, da Constituição.”
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> STF, ADI n. 3720; ADI n. 3819; ADI n. 5011; AgR.ARE n. 895476.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> ADCT, “Art. 235. (...) VII - em cada Comarca, o primeiro Juiz de Direito, o primeiro Promotor de Justiça e o primeiro Defensor Público serão nomeados pelo Governador eleito após concurso público de provas e títulos;”
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> CRFB/1988, “Art. 4º-A. São direitos dos assistidos da Defensoria Pública, além daqueles previstos na legislação estadual ou em atos normativos internos: (...) IV – o patrocínio de seus direitos e interesses pelo defensor natural;”
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> CRFB/1988, “Art. 5º (...) LIII - ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;”
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> CASAS MAIA, Maurilio Casas. Os (des)conhecidos princípios do advogado natural e do defensor natural. Prática Jurídica, Brasília, n. 174, p. 52-53, Set. 2016.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 101-105.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Expressão cunhada pelo min. Herman Benjamin (STJ).
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> WATANABE, Kazuo. Acesso à Justiça e Sociedade Moderna. In: GRINOVER, Ada Pellegrini. DINAMARCO, Cândido Rangel. WATANABE, Kazuo. Participação e Processo. São Paulo: RT, 1988, p. 128-135.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. O Poder Judiciário na Perspectiva da Sociedade Democrática: O Juiz Cidadão. Revista ANAMATRA, São Paulo, n. 21, p. 30-50, 1994.

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JOTA

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ADPF 279: a Justiça não foi municipalizada

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