André Portugal

No princípio, era o Verbo: na linguagem está a gênese da vida em sociedade. Ela, como prática coletiva e cotidiana, é a condição de possibilidade e a medida do pensamento: é fácil perceber a impossibilidade de se pensar a não ser por meio da linguagem, tal como ela é consensualmente usada, tal como os significados são atribuídos pela comunidade de que fazemos parte.
A despeito de seus relevantes limites, na linguagem reside um componente marcadamente consensual, no sentido de que todos os falantes compartilhamos significados comuns; a partir desse compartilhamento, comunicamo-nos entre nós e nos relacionamos com o mundo.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>É pela linguagem que o mundo é interpretado, e é por meio dela que toda ação coletiva coordenada pode se expressar, pode rebentar. Essas ações coletivas que mudam o mundo dependem do seu uso, mas não raro acontecem por meio do seu abuso.
A história das crises é também a história dos abusos linguísticos que, como subterfúgio retórico, podem fundamentar rupturas institucionais. Ao longo dos séculos, tem sido comum que, para descrever seus adversários, atos por eles praticados e o próprio cenário então vivenciado por uma sociedade, um ou mais atores de lados antagônicos do espectro político recorram a aplicações controversas ou mesmo flagrantemente falsas de termos culturalmente consolidados. Quando esse novo e abusivo uso da linguagem ganha as mentes de um número suficientemente abrangente de falantes, as condições para a crise estão dadas.
A crise por que passa o Brasil está, antes de qualquer coisa, nos usos que se tem dado a palavras que pareciam objeto de consenso básico, porque fazem parte de consolidada tradição intelectual, jurídica e política. Democracia, ditadura, autoritarismo e liberdade, para ficar em alguns, são termos que têm sido objeto de cínica ou ignorante, mas, em qualquer hipótese, canhestra ressignificação por parte do bolsonarismo.
Na nova gramática, eles passam a significar precisamente o contrário do que, como linguagem, significam, em uma novilíngua que, não fosse a repugnância dessa turba à leitura, poderia ter sido inspirada em 1984, de Orwell: a liberdade é a liberdade para aniquilar o outro; a democracia é o regime em que a vitória de Jair Bolsonaro – e de suas pautas – é o único resultado aceitável; a ditadura está nas decisões das quais se discorda, especialmente se impuserem freios a medidas propostas por Bolsonaro que sejam incompatíveis com o texto constitucional; e a Constituição não é senão o arranjo institucional que implementa a perseguição contra opositores, a destituição de autoridades de controle que efetivamente exerçam esse controle e que, no final das contas, legitime esse projeto.
No campo das ideias, começa a tomar forma um novo projeto de constitucionalismo que é simplesmente incompatível com as conquistas civilizatórias que ele tradicionalmente representa. Seu significado é, em síntese, sabotado. Por isso mesmo, na falta de um termo para ele, essa novo projeto estará melhor rotulado se for chamado de anticonstitucionalismo.
<blockquote class="jota-article__eye">Porque propugna novos usos e significados a palavras da nossa gramática constitucional, não é de todo equivocado asseverar que o bolsonarismo sugere uma espécie de mutação constitucional. Uma mutação ilegítima, por certo, e que por essa razão a chamarei de mutação constitucional sabotadora.</blockquote>
Ela é sabotadora por mais de uma razão.
Primeiro, ela sabota os limites semânticos que a linguagem, por meio dos textos e da práxis coletiva que os consolidou na vida em sociedade, impõe à sua interpretação. Toda palavra carrega história própria, que é fruto de uma prática coletiva que a consolidou, umas mais que outras, nesse jogo que é a linguagem.
E, embora haja um caráter notadamente contingente no uso desses termos, é simplesmente absurdo cogitar que grupo minoritário possa subitamente subverter o seu sentido, ressignificando-os em detrimento de anos, por vezes séculos, de consolidação conceitual.
Segundo, procurando legitimar-se com o uso da gramática do próprio constitucionalismo, o que o bolsonarismo propugna vai de encontro à substância desse paradigma. O constitucionalismo, afinal, é projeto civilizatório inclusivo, calcado na alteridade, no dever de justificação de qualquer ato de poder, na incerteza em relação ao futuro, no reconhecimento da importância da razão e de seus limites e, por isso mesmo, na ideia de que deve caber à sociedade a definição de seu próprio futuro.
O constitucionalismo é, em suma, ponto de partida, não de chegada. Por essa razão, ele pressupõe a construção de arranjo institucional em que forças de todos os matizes ideológicos dialoguem entre si, com tolerância e respeito mútuos, para, com erros e acertos, mas sempre com correções de rumo, construir o melhor futuro possível.
A gramática do bolsonarismo, como se vê, é substancialmente a antítese desse projeto, pouco ou nada importando os termos de que ela se vale na pretensão de se legitimar (“liberdade”, “democracia”, “Constituição”): ela invariavelmente estará for a das quarto linhas do constitucionalismo. Ela sabota o constitucionalismo, ela dá adeus à razão que ele pressupõe.

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JOTA

A história das crises é também a história dos abusos linguísticos que podem fundamentar rupturas institucionais

Adeus à razão: a gramática da sabotagem constitucional

A história das crises é também a história dos abusos linguísticos que podem fundamentar rupturas institucionais