Marco Antonio Trevisan

Originariamente concebida por James Q. Wilson e George L. Kelling, a teoria das janelas quebradas trouxe a ideia de que a tolerância a pequenas transgressões sociais conduz a desordens e crimes cada vez mais sérios. A ilustração utilizada pelos autores – que dá nome à teoria – consiste na janela quebrada de um edifício que, não sendo imediatamente reparada, incitaria o vandalismo com relação a todas as demais e, depois, a desordens mais graves, pois haveria a impressão de que ninguém se importava com isto e que a depredação ou vandalismo seriam permitidos, sem qualquer “custo”.
A teoria serviu de inspiração a políticas públicas de segurança pública, tal como a política da “tolerância zero”, adotada em Nova Iorque, nos anos 90, pelo então prefeito Rudolph Giuliani. Os esforços se concentraram na punição severa de pequenas contravenções, para desencorajar a escalada crescente da criminalidade e a prática de crimes mais sérios (“quem rouba um ovo, rouba um boi”).
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Se decorrentes ou não da adoção da “tolerância zero”, alguns indicadores sociais – como, entre outros, a significativa diminuição da criminalidade ou a superlotação carcerária – serviram de base para apoio e crítica à tal política.
Mas não estou interessado nos predicados sociais e efeitos práticos da aplicação da tal teoria ou das políticas públicas que a adotaram.
O que me fez lembrar dela foi a leitura de <a href="https://www.nature.com/articles/nn.4426" target="_blank" rel="noopener">um artigo</a> de Garrett, Lazzaro, Ariely e Sharot, publicado na Nature Neuroscience em outubro de 2016, no qual foi demonstrado haver certa adaptabilidade ou resiliência do nosso cérebro à desonestidade.
A pesquisa consistiu em submeter voluntários a tarefas que lhes oportunizavam agir desonestamente, enquanto seus cérebros eram “escaneados” por meio de técnica de imagiologia cerebral (ressonância magnética funcional).
Assim que agiam desonestamente, os voluntários apresentavam uma intensa ativação de estrutura cerebral – a amígdala – que, no entanto, era gradativamente reduzida à medida em que a desonestidade se tornasse habitual.
A conclusão, a rigor, está apoiada em pesquisas ainda mais amplas, entre elas a promovida por Bryan T. Denny e outros, que demonstraram haver um “enfraquecimento” da resposta a um estímulo – no caso da pesquisa, imagens negativas que incitavam medo ou aversão –, assim que somos continuamente expostos a ele.
<blockquote class="jota-article__eye">As estruturas cerebrais que respondem ao estímulo se habituam (se adaptam, tal como num “aprendizado”) e, assim, perdem a intensidade de ativação diante da repetição do estímulo.</blockquote>
A “habituação” do cérebro a estímulos frequentes – e a perda, portanto, da sua “sensibilidade” – é devida à “plasticidade sináptica”, isto é, à reconfiguração da intensidade ou da morfologia das conexões cerebrais diante do condicionamento a tais estímulos.
A amígdala – termo derivado do grego “amygdále”, ou amêndoa, já que lembra o seu formato (e não se confunde com aquelas situadas na garganta) – está situada na região ântero-inferior do lobo temporal (região mais interna da parte lateral do cérebro, localizada por cima das orelhas) de cada um dos hemisférios cerebrais. Ela é encontrada no sistema límbico, parte mais primitiva do cérebro humano, composta por outras estruturas responsáveis, basicamente, pela regulação das emoções. A análise da compilação de dados de milhares de imagens captadas por meio de ressonância magnética funcional (banco de dados conhecido por Neurosynth), demonstrou que, de modo predominante, a amígdala é ativada por inputs (como, por exemplo, se deparar com um preço extorsivo, prática de algum crime ou expressões faciais ameaçadoras) que desencadeiam reações emocionais, mais especificamente, manifestações de aversão, medo, nojo ou repulsa.
Garrett e seus colegas notaram que a amígdala vai perdendo aos poucos a intensidade de ativação à medida que os voluntários reiteravam a trapaça ou desonestidade.
Esta “insensibilidade” da amígdala desencadeou uma “escala crescente da desonestidade”, isto é, o aumento progressivo da frequência e gravidade da desonestidade.
Isto é particularmente visível nas experiências individuais, sobretudo naquelas infrações que, de início, constrangem o infrator, mas, se sistematicamente reiteradas, viram hábitos cotidianos “aceitáveis”, tal como ocorre, por exemplo, em inúmeras infrações de trânsito.
E é ainda mais visível na endemia da corrupção, em que, não raras vezes, um envolvido é flagrado na sua prática reiterada.
<blockquote class="jota-article__eye">Assim, a tolerabilidade (ou inexistência de sanção) a quem “quebra uma janela” levaria à repetição da prática e, com ela, haveria uma perda da aversão ou repulsa à própria conduta, em virtude da insensibilização (plasticidade sináptica) das estruturas cerebrais que geram aversão.</blockquote>
Quando se diz, então, que um corrupto contumaz não tem “vergonha na cara”, está-se a dizer, na verdade, que ele deixou de ter neurotransmissores suficientes na amígdala.
O estudo é especialmente relevante para a reflexão da eficácia social de leis que, por exemplo, abrandam a sanção contra os crimes de “bagatela”; ou que não agravam suficientemente a pena pela reincidência na prática de um crime; ou que aplicam multa ou pena nada expressiva àquele que causou um dano ambiental ou que se envolveu em corrupção.
A sanção aplicada a quem é desonesto é, igualmente, um novo input que pode gerar a ativação da amígdala e de outras estruturas cerebrais, tal como uma “contramedida” à insensibilização, e que também decorre da plasticidade sináptica, mas desta vez num sentido inverso, com a geração de novas conexões e associações entre as células nervosas, especialmente aquelas encontradas em partes responsáveis pela tomada de decisões racionais (córtex pré-frontal) e formação da memória (hipocampo), além da própria amígdala.
A intensidade e a rapidez da sanção são fatores muito importantes, pois o cérebro tem uma particularidade atávica: o desconto hiperbólico, ou seja, quanto mais distante a sanção ou o prêmio, menos o receamos ou o valorizamos.
Isto, todavia, é assunto para outra oportunidade.
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<h3>Referências</h3>
KELLING G. L.; WILSON J. Q. Broken Windows: the Police and Neighborhood Safety. Atlantic Monthly, 249 (3), pp. 29-38, 1982.
GARRETT, Neil; LAZZARO, Stephanie C.; ARIELY, Dan e SHAROT, Tali. The brain adapts to dishonesty. Nature Neuroscience, pp. 1727-1732, 2016.
DENNY B.T.; FAN J.; LIU X, et al. Insula-amygdala functional connectivity is correlated with habituation to repeated negative imagens. Social Cognitive and Affective Neuroscience, 9 (11), 1660-1667, 2014.

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Adaptabilidade cerebral à desonestidade

A desonestidade 'vicia'?