Henrique de Moraes Fleury da Rocha

Paulo Samico

A Ação Civil Pública representa importante mecanismo processual, abrangendo a proteção de direitos tanto intrinsecamente coletivos – tutela de direitos coletivos (difusos e coletivos em sentido estrito) – quanto acidentalmente coletivos – tutela coletiva de direitos (individuais homogêneos).<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
O objetivo da ACP, portanto, será sempre tutelar uma coletividade, ainda que indeterminada. É imprescindível que os interesses tutelados tenham caráter difuso, coletivo em sentido estrito ou individual homogêneo. Nessa direção, quando destinado à proteção de direitos individuais, o manejo da ACP apenas é possível se restar demonstrado que os direitos em questão são homogêneos e decorrentes de origem comum (v. arts. 21 da LACP e 81, III, do CDC).<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
<a href="https://conteudo.jota.info/risco-politico"><img class="aligncenter wp-image-244336 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico.png" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
Outra característica particular da ACP é a legitimidade extraordinária do demandante para atuar em nome dos titulares dos interesses que se pretende tutelar.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> Com efeito, o art. 5º da LACP estabelece a legitimidade extraordinária de determinados entes para o ajuizamento da ACP (ideological plaintiffs), que atuam como substitutos processuais em nome da coletividade defendida (substituída).<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
Daí já se pode extrair, com certa facilidade, a conclusão no sentido de que aos legitimados extraordinários previstos no art. 5º da LACP não é dado propor uma ação civil pública para a defesa de seus próprios interesses privados – isto é, em legitimidade ordinária. Tais entes somente podem adotar a via da ACP para atuar em nome de uma coletividade, como legitimados extraordinários na defesa de direitos difusos, coletivos em sentido estrito ou individuais homogêneos.
O que parece intuitivo, no entanto, pode assumir contornos mais complexos a depender dos direitos em jogo, notadamente quando se tratar de interesses de entes públicos, hipótese em que poderia se entender cabível a ACP com base no art. 1º, VIII, da LACP, que trata da situação de danos causados ao patrimônio público e social.
Nesse ponto, é necessário cautela para diferenciar interesse público primário do interesse público secundário. Dito de maneira diversa, não se pode confundir interesses efetivamente pertencentes à coletividade, que podem ser objeto de ACP, com interesses meramente econômicos, ainda que de titularidade de entes públicos.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>
O simples fato de uma demanda ser proposta por um ente público não faz com que o seu objeto assuma natureza coletiva. É por isso que a mera participação da Fazenda Pública no processo não configura, por si só, hipótese de intervenção do Ministério Público (art. 178 do CPC).
Apesar disso, estudo encomendado pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ e elaborado pela Sociedade Brasileira de Direito Público, intitulado "Direitos e Garantias Fundamentais – Ações Coletivas no Brasil: temas, atores, desafios da tutela coletiva", que analisou mais de 52.000 (cinquenta e duas mil) ações coletivas e demandas relacionadas, indica “a proliferação de ações coletivas com vistas a ganhos individuais, ‘distorcendo um instrumento voltado à defesa dos direitos coletivos em sentido estrito ou difusos, e minorando as possibilidades de diálogo e mobilização social’”, como noticiado pelo <a href="https://www.jota.info/justica/90-do-judiciario-nao-tem-conhecimento-suficiente-sobre-tutela-coletiva-diz-cnj-16012018">JOTA</a>.
Deve-se ter atenção, pois, para impedir o uso indevido da ACP pelos ideological plaintiffs, que não podem se utilizar da via para veicular suas pretensões estritamente individuais, sob pena de se permitir o emprego da ação civil pública para contornar os riscos inerentes ao procedimento comum.
Nessa esteira, não se pode perder de vista que, em regra, dispensa-se o adiantamento de despesas processuais pelo autor da ação civil pública, sendo também descabida, em princípio, a sua condenação ao pagamento dos ônus de sucumbência, inclusive honorários advocatícios, exceto em caso de má-fé (art. 18 da LACP).
O uso inadequado do mecanismo da ação civil pública, assim, além de contrariar a sua função, onera o Poder Judiciário e, ao fim e ao cabo, a própria sociedade. Admitir que os legitimados extraordinários do art. 5º da LACP se utilizem da ação civil pública para defender seus próprios interesses, exclusivamente individuais, sem qualquer ônus, implica subverter a lógica do sistema de tutela coletiva.
Nesses casos, impõe-se a extinção do processo sem resolução do mérito, tendo em vista a ausência de interesse de agir do demandante por inadequação da via da ação civil pública (art. 485, VI, do CPC).
A identificação desse problema, como feito pelo Conselho Nacional de Justiça, é o primeiro passo para se evitar o uso disfuncional da ACP. Ademais, cabe ao Poder Judiciário, que vem se mostrando cada vez mais atento a essas questões, condenar os demandantes que optarem, de má-fé, pelo emprego inadequado da ACP, “em honorários advocatícios e ao décuplo das custas, sem prejuízo da responsabilidade por perdas e danos” (art. 17 da LACP).
Assim, também se prevenirá a utilização de maneira indiscriminada dessa tão importante ferramenta de tutela coletiva e a proliferação de demandas descabidas, ao arrepio da legislação brasileira, que é uma das mais sofisticadas do mundo sobre o assunto e merece ser aplicada corretamente.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> “É preciso que não se confunda defesa de direitos coletivos (e difusos) com defesa coletiva de direitos (individuais). Direito coletivo é direito transindividual (= sem titular determinado) e indivisível. Pode ser difuso ou coletivo stricto sensu. Já os direitos individuais homogêneos são, na verdade, simplesmente direitos subjetivos individuais. A qualificação de homogêneos não desvirtua essa sua natureza, mas simplesmente os relaciona a outros direitos individuais assemelhados, permitindo a defesa coletiva de todos eles” (ZAVASCKI, Teori Albino. Defesa de direitos coletivos e defesa coletiva de direitos. Revista de Processo, n. 78, pp. 32-49, abr./jun. 1995, p. 33). Ainda sobre o ponto, entendendo ser excessivamente abstrata a diferenciação feita pelo direito brasileiro entre direitos difusos, coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos, e sugerindo, de lege ferenda, que a categorização se limitasse a distinguir apenas os pedidos indivisíveis (essencialmente coletivos) dos divisíveis (acidentalmente coletivos), confira-se: ROQUE, Andre Vasconcelos. Class actions – Ações coletivas nos Estados Unidos: o que podemos aprender com eles? Salvador: Juspodivm, 2013, pp. 542-545.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> “A homogeneidade e a origem comum são, portanto, os requisitos para o tratamento coletivo dos direitos individuais” (CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de direito do consumidor. São Paulo: Atlas, 2008. p. 309). No mesmo sentido: GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. Rio de Janeiro: Forense, 2011. v. 2, p. 76.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Como é cediço, diferenciam-se as hipóteses de legitimidade entre ordinária e extraordinária. É ver-se: “Quando a situação legitimante coincide com a situação deduzida em juízo, diz-se ordinária a legitimação; no caso contrário, a legitimação diz-se extraordinária. Ali, a regra concreta que se vier a formular na sentença incidirá diretamente sôbre a esfera jurídica do próprio legitimado; aqui, incidirá diretamente sôbre a esfera jurídica de outra pessoa, ou de outras pessoas, conquanto possa, por via indireta, atingir a esfera do legitimado, e até seja tal a razão mais comum de reconhecer-se eficácia legitimante à situação subjetiva dêste. O legitimado ordinário deve encontrar na sentença a disciplina da sua própria situação; o legitimado extraordinário, a disciplina de situação alheia, talvez suscetível de repercutir na sua” (BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Apontamentos para um estudo sistemático da legitimação extraordinária. Revista de Direito do Ministério Público do Estado da Guanabara, ano 3, n. 9, v. 9, p. 41-55, set./dez. 1969. p. 43).
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> “Todos esses legitimados atuam no processo como autores (e portanto como partes principais na relação processual) sem serem eles próprios titulares de direito algum em busca de reconhecimento ou satisfação. Típicos substitutos processuais, ou legitimados extraordinários” (DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2017. v. 2, p. 365); “A legitimação ao processo coletivo é extraordinária: autoriza-se um ente a defender, em juízo, situação jurídica de que é titular um grupo ou uma coletividade. Não há coincidência entre o legitimado e o titular da situação jurídica discutida” (DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Curso de direito processual civil: processo coletivo. 11ª ed. Salvador: JusPodivm, 2017. v. 4, p. 177).
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> “Também assim melhor se compreenderá a distinção corrente da doutrina italiana entre interesses públicos ou interesses primários – que são os interesses da coletividade como um todo – e interesses secundários, que o Estado (pelo fato de ser sujeito de direitos) poderia ter como qualquer outra pessoa, isto é, independentemente de sua qualidade de servidor de interesses de terceiros: os da coletividade. Poderia, portanto, ter o interesse secundário de resistir ao pagamento de indenizações, ainda que procedentes, ou de denegar pretensões bem-fundadas que os administrados lhe fizessem, ou de cobrar tributos ou tarifas por valores exagerados. Estaria, por tal modo, defendendo interesses apenas ‘seus’, enquanto pessoa, enquanto entidade animada do propósito de despender o mínimo de recursos e abarrotar-se deles ao máximo” (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 22ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007. pp. 68-69); “Fica patente que nem sempre o interesse cujo Estado (enquanto pessoa jurídica de direito público) é o titular coincide com o interesse público identificado com o conceito de bem geral (...). Assim é que se propõe, modernamente, que o interesse público constitua noção inseparável do interesse da coletividade como um todo e não apenas o do Estado, enquanto centro de imputação de direitos e obrigações” (VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Ação Civil Pública. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 39); “Um segundo limite é o que se estabelece a partir da distinção entre interesse social (ou interesse público) e interesse da Administração Pública. Embora a atividade administrativa tenha como objetivo próprio o de concretizar o interesse público, é certo que não se pode confundir tal interesse com o de eventuais interesses próprios das entidades públicas. Daí a classificação doutrinária que distingue os interesses primários da Administração (que são os interesses públicos, sociais, da coletividade) e os seus interesses secundários (que se limitam à esfera interna do ente estatal)” (ZAVASCKI, Teori. Processo Coletivo: Tutela de Direitos Coletivos e Tutela Coletiva de Direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. pp. 54-55). Nessa linha, já se posicionou o Eg. STJ: “Recurso especial. Ação civil pública. Pagamento de indenização supostamente indevida oriunda do Fundo de Indenização do Trabalhador Portuário Avulso – FITP. Pretensão visando a restituição da quantia paga. Repetição do indébito. Interesse secundário da administração. (...). A ilegitimidade ativa ad causam do MPF para intentar ação civil pública com o escopo de reaver indenização supostamente indevida, paga a trabalhador portuário avulso, oriunda do Fundo de Indenização do Trabalhador Portuário Avulso - FITP, ressoa evidente porquanto o mesmo atua, não na defesa do erário, mas sim em nome de um ente público; no caso a União, que dispõe de sua Procuradoria para intentar essa ação com espectro de repetição do indébito, ora rotulada de ação civil pública. Deveras, mercê de o AITP configurar receita da União, resta equivocada, com a devida vênia, a sua inserção na categoria de patrimônio público federal, utilizada pelo Parquet como fator legitimador para o aforamento da ação civil pública em baila. É que o patrimônio público se perfaz de bens que pertencem a toda coletividade, não individualizáveis, e que não sofrem distinção pertinente a eventuais direitos subjetivos, como por exemplo, imóveis tombados pelo Patrimônio Histórico-Cultural. Daí, inviável se considerar receita da União como patrimônio público federal, na medida em que o seu ressarcimento não denota interesse metaindividual relevante, mas sim do próprio ente público. (...) Consectariamente, a rubrica receita da União caracteriza-se como interesse secundário da Administração, o qual não gravita na órbita dos interesses públicos (interesse primário da Administração), e, por isso, não guarnecido pela via da ação civil pública, consoante assente em sede doutrinária” (STJ, REsp 799.883, 1ª T., Rel. Min. Luiz Fux, julg. 17.5.2007).

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JOTA

Uso disfuncional da ação civil pública que deve ser coibido pelo Poder Judiciário

ACP para tutela de interesses individuais do demandante?

Uso disfuncional da ação civil pública que deve ser coibido pelo Poder Judiciário