Gabriel Morettini e Castella

Descendente da experiência norte-americana, assim como recomendado por diversas organizações internacionais, como a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o acordo de leniência foi inserido no ordenamento jurídico brasileiro em 2000 (Lei n. 10.149), que dispôs sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica. No entanto, foi com o artigo 16 da Lei 12.846/2013, também conhecida como Lei Anticorrupção, que o instituto passou a adquirir notoriedade.
Introduzido com a intenção de possibilitar maior eficácia em reduzido espaço de tempo nas investigações sobre atos de corrupção e fraude na Administração Pública, a sua aplicação tem sido motivo de intensas críticas devido, em sua maior parte, à considerável insegurança jurídica que envolve o tema. Para que se possa compreender a aplicação deste instrumento deve-se, inicialmente, analisar o conjunto normativo que permeia o “sistema legal de defesa da moralidade” no Brasil.
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Composto pela Lei nº 8.429/1992 (Lei de combate à improbidade administrativa), pela parte penal da Lei de Licitações e Contratos Administrativos (artigos 90  et seq. da Lei nº 8.666/1993), pela Lei  nº 12.529/2011 (Lei de Defesa da Concorrência), pela Lei Complementar nº 135/2010 (Lei da Ficha Limpa), pelos artigos 312 et seq. do Código Penal, que disciplinam os crimes praticados contra a Administração Pública e pela Lei 12.846/2013 (Lei Anticorrupção), este sistema legal de defesa da moralidade, apesar da multiplicidade normativa, pouco se parece com um sistema. As antinomias e desarranjos entre as leis que objetivam tutelar o mesmo bem jurídico, talvez impulsionados pela busca desenfreada no combate à corrupção, são relevantes e acabam promovendo acentuada insegurança jurídica na utilização dos instrumentos ali previstos, implicando, por consequência, na falta de efetividade almejada pelo legislador.
No que diz respeito aos acordos de leniência, a pluralidade normativa evidencia o exposto acima. Prevista nas Leis Anticoncorrencial e Anticorrupção, parece que o legislador se esqueceu de relacioná-las, seja pela ausência de previsão no tocante a extensão dos benefícios as pessoas físicas, quando aplicada a Lei 12.846/2013, seja pela ausência de parametrização sobre os critérios a serem considerados para celebração de tais negócios jurídicos. Apesar do exposto, sobre este último item (fixação de critérios objetivos para celebração dos acordos), a edição do Decreto 8.420/2015 buscou sanar tal vazio, vinculando o exercício do Poder Público à necessária realização dos acordos quando se encontrar diante das hipóteses ali previstas, como já externou Maurício Zockun em seu artigo “Vinculação e Discricionariedade no Acordo de Leniência.”
Apesar do exposto, a falta de coesão entre as normas do mesmo sistema se destaca quando se depara com a possibilidade de celebração de acordos de leniência diante das leis 12.846/2013 e 12.529/2011, mas se veda sua realização na Lei 8.429/1993. A incongruência em referido sistema tem gerado considerável preocupação, seja dos jurisdicionados, seja dos entes públicos responsáveis pela celebração e validação dos acordos. Não bastasse isso, a complexidade se estende às autoridades competentes para celebração dos acordos em âmbito administrativo e judicial, assim como as responsáveis pela sua validação em ambas as esferas.
Ao observar este cenário, várias propostas de solução surgiram como forma de reduzir a insegurança jurídica, dentre elas a Medida Provisória 703/2015, que inclusive alterou o dispositivo da Lei de Improbidade Administrativa para permitir a celebração de acordos de leniência, mas que perdeu sua vigência.
Depreende-se da exposição de motivos desta nova Lei de Introdução às Normas do Direito brasileiro, especialmente em seu art.30, a atribuição as autoridades públicas para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas e, sob este viés, que se deve destacar a sua aplicação aos acordos de leniência. Isto posto, espera-se que com a sua vigência conflitos entre entidades competentes para celebrar e validar acordos de leniêncianão transferiam os ônus da sua inefetividade aos particulares.
Com a vigência da Lei 13.655/2018, se impõe como dever às entidades públicas, ao celebrar acordos de leniência, a necessidade de cooperação interinstitucional para se conferir maior segurança jurídica ao instituto.
Independente da extensão de autoridades competentes para celebrar os acordos, não se deve comprometer a sua aplicação ou simplesmente transferir o ônus ao particular. Aquele que se enquadrar nas hipóteses normativas para celebração dos acordos, vincula o ente estatal a sua necessária adesão, como exposto acima, e a consequente garantia dos benefícios concedidos como contrapartida aos ônus exigidos, isso porque se procura permitir que a pessoa jurídica leniente continue a prestar suas atividades, em garantia do interesse público.
Exemplos como o que houve quando do ajuizamento de ação de improbidade administrativa pela Advocacia Geral da União, com indisponibilidade liminar de bens (decisão proferida pelo TRF-4), em face de agentes privados que já haviam celebrado acordo de leniência com o Ministério Público Federal, deverão se tornar exceção. E sobre este ponto é importante que as autoridades públicas considerem as consequências práticas da decisão, se impondo a necessidade de apresentar possíveis alternativas, conforme estabelece o art. 20 da lei em comento.
Outro aspecto que merece especial destaque, diz respeito à declaração de nulidade dos objetos mencionados em acordo de leniência. Ocorre que com a vigência do art.21 (caput) e parágrafo único da Lei 13.655/18, o agente estatal possui a obrigação de preservar a proporcionalidade e razoabilidade, inclusive no sopesamento das sanções, garantido aos sujeitos atingidos a não imposição dos ônus advindos do convênio realizado.
Assim, a aplicação de medidas como ressarcimento ao erário deverão considerar os valores pagos aos terceiros de boa-fé prestadores de determinados serviços as pessoas jurídicas lenientes, sob pena de enriquecimento ilícito dos entes públicos. Além disso, constata-se que a intenção do legislador foi a de evitar que a invalidação de determinados atos e negócios jurídicos inviabilizem a execução dos bens contratados, o que poderia comprometer o interesse público. Exemplo disso seria a declaração de nulidade de contrato administrativo, decorrente da celebração de acordo de leniência, no meio de sua execução. Como essa decisão poderá vir a causar maiores danos (como econômicos, financeiros, jurídicos, ambientais), poderá a própria Administração Pública convalidar os atos, mediante os termos ajustados no acordo e determinar o prosseguimento da obra, sem prejuízo de consulta pública, como prevê o art. 26 da Lei 13.655/18.
Com relação ao disposto nos arts. 23 e 24 da Lei em comento, apesar da inexistência de um posicionamento assente na jurisprudência nacional sobre a temática da leniência, se faz necessária a modulação dos efeitos das decisões proferidas, principalmente no âmbito dos órgãos de controle. A necessária definição das regras de transição quando alterada a orientação sobre a celebração dos acordos de leniência, vai de encontro ao disposto no art. 927, §3° do CPC (ao que a doutrina denomina como Modelo Constitucional do Processo), garantindo-se as partes que transacionarem a preservação dos efeitos do acordo em conformidade com as orientações do época que se concretizar o ato. Assim, ainda que a validação do acordo se delongue por tempo indeterminado, a decisão que o julgar deverá considerar as orientações gerais da época em que foi celebrado, independente da convicção de cada julgador. Regra esta, aliás, já presente também na Lei Federal de Processo Administrativo.
Neste contexto, o desajuste normativo no “sistema de proteção a moralidade,” não deve obstar a utilização de instrumentos capazes de influir no combate a corrupção, seja pela já comprovada alta capacidade de produção probatória, seja pela possibilidade de permitir que empresas que reconheçam a prática de ilícitos e implementem seus programas de integridade possam voltar a contratar e dar continuidade às suas atividades.
Logo, com a vigência da Lei 13.655/18 se fortalecem os argumentos pela necessidade de preservar a segurança jurídica na celebração dos acordos de leniência, como elemento condicionante para a sobrevivência deste instrumento e decisivo para a busca na efetividade deste pretenso “sistema de proteção a moralidade.”

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JOTA

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