Guillermo Glassman

Benny Spiewak

A incorporação de novas tecnologias farmacêuticas é um dos principais desafios do Sistema Único de Saúde (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/SUS">SUS</a>). Inspirado no modelo do Reino Unido, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologia no SUS (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/Conitec">Conitec</a>) tem pautado a análise de incorporação no binômio custo/efetividade, porém, em muitos casos, pela falta de dados suficientes, há incerteza quanto à vantajosidade da substituição de tecnologias, o que atrasa o acesso da população a esses tratamentos pelos canais regulares da assistência farmacêutica pública. Isso incentiva a judicialização do tema por pacientes que almejam o acesso a medicamentos mais modernos.
Como uma alternativa para acelerar o acesso a novos tratamentos, o <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2271826">PL 667/2021</a> da Câmara dos Deputados busca trazer para o Brasil os Acordos de Compartilhamento de Risco, institucionalizando projeto-piloto do Ministério da Saúde iniciado em 2019, mesmo sem previsão legal específica. O modelo, se bem estruturado em lei, aponta para avanços importantes na matéria. Entretanto, o PL 667 tem tramitado lentamente e encerrou sua análise pela Comissão de Saúde da Câmara sem os ajustes necessários para conferir-lhe segurança jurídica. É disso que trataremos a seguir.
O direito à saúde no Brasil, garantido pela Constituição como dever do Estado (art. 196), é amplíssimo (ao menos no âmbito jurídico, do dever-ser) e pode ser analisado em duas perspectivas distintas. Na dimensão horizontal, trata-se de direito universal, igualitário e gratuito, sendo o SUS sua concretização prática para o atendimento de todos que se encontrem em território nacional. Na dimensão vertical, garante-se o atendimento integral (CF, art. 198, II) mediante a dispensação de medicamentos e produtos de interesse para a saúde e a oferta de procedimentos terapêuticos (<a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm">Lei 8.080/90</a>, art. 6°, I, “d”, art. 7°, II e art. 19-M, I e II).
É na dimensão vertical que se concentram as principais tensões políticas e econômicas do SUS. Por um lado, é pacífico o entendimento de que a integralidade abarca ações preventivas, de promoção e de recuperação da saúde em atenção primária, secundária e terciária, assistência farmacêutica e serviços de recuperação e reabilitação. Por outro lado, exatamente quais medicamentos e tratamentos serão providos regularmente à população é questão tormentosa, o que pode ser atestado, por exemplo, pela intensa judicialização da saúde pública<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Existem três aspectos políticos principais a serem considerados na incorporação de tecnologias e tratamentos no âmbito do SUS. Por um lado, o Estado deve considerar restrições orçamentárias e a escala do sistema (reserva do possível). Por outro, os cidadãos (representados por associações de pacientes ativamente engajadas) almejam acesso às tecnologias e tratamentos mais avançados, na busca do restabelecimento de sua saúde e bem-estar. Ainda, a indústria da saúde (farmacêutica, dispositivos e equipamentos médicos) espera ter acesso pleno ao mercado público, para todo seu portfólio, dada a relevância da demanda governamental.
A primeira medida para mediar as tensões na incorporação de tecnologias e tratamentos no âmbito do SUS foi a criação da Comissão de Incorporação de Tecnologias (Citec) no âmbito do Ministério da Saúde em 2006 que, em 2008, passou a compor a estrutura da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE)<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. O órgão tinha como principal atribuição (Portaria 2.587/08, art. 5°) a incorporação ou retirada de produtos de saúde da lista de procedimentos do SUS e do rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ANS">ANS</a>).
Essa deliberação dá-se a partir da revisão de diretrizes clínicas e protocolos terapêuticos e assistenciais (posteriormente denominados Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas – PCDT, nos termos do art. 19-N, II, da Lei 8.080/90), documentos que estabelecem, no âmbito do SUS, critérios para o diagnóstico e tratamento com medicamentos, especificando os produtos a serem prescritos e dispensados aos pacientes em cada caso.
Em 2011, a Lei 12.401 (que incluiu os artigos 19-M a 19-U na Lei 8.080/90) criou a Conitec (inspirada no britânico National Institute for Health and Clinical Excellence – NICE) que passou a ser responsável pelo assessoramento do ministério nas atribuições relativas à incorporação de tecnologias pelo SUS (consolidadas, no caso de produtos farmacêuticos, na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais – Rename, nos termos do Decreto 7.508/11 e da Portaria 533/12) e na alteração de PCDT.
Mais recentemente, em 2019, por meio da Portaria 1.297, o Ministério da Saúde adotou, de forma experimental, novo modelo de incorporação de tecnologia, o Acordo de Compartilhamento de Risco (ACR). Assim como em outras oportunidades (como no caso da Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo de Medicamentos – PDP<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>), o Ministério da Saúde, de forma inovadora, estabeleceu modelagem inédita no Brasil (chamada de “piloto” pela Portaria) a partir de instrumentos jurídicos já conhecidos.
No caso, havia incerteza quanto ao custo/efetividade, estimativa de consumo e impacto orçamentário da adoção do medicamento Spinraza (Nusinersena) para o tratamento da Atrofia Muscular Espinhal (AME 5q) Tipos II e III no âmbito do SUS (a medicação era dispensada pelo sistema público apenas aos pacientes do Tipo I). O objetivo do ACR foi avaliar em condições reais os efeitos da incorporação do medicamento, tendo como contrapartida da fabricante a redução de seu preço e a assunção de custos adicionais imprevistos, caso o número de pacientes atendidos ultrapassasse o máximo esperado a partir dos dados epidemiológicos disponíveis.
Independentemente do desfecho específico do caso, é preciso avaliar a conveniência do modelo de ACR para a gestão da incorporação de tecnologias ao SUS – e não apenas para medicamentos de altíssimo custo. De fato, é comum o surgimento de tratamentos mais avançados na indústria farmacêutica (especialmente no caso de inovação incremental) cuja vantajosidade sob o critério custo/efetividade remanesce duvidosa e enquanto não há incorporação regular pela rede pública os pacientes recorrem à judicialização – comprometendo o orçamento público mais intensamente, dada a perda de escala na aquisição. Nesse contexto, toma destaque o PL 667/2021 (com texto idêntico ao da Portaria 1.297) que pretende elevar a status legal o modelo de ACR no Brasil.
De fato, a previsão dos ACR em lei (e não apenas em norma infralegal) é fundamental para conferir-lhes segurança jurídica. Com efeito, os ACR excepcionam o dever geral de licitar para a aquisição de medicamentos e o direcionamento de parte da demanda pública para essa modalidade de contratação restringe o acesso dos demais interessados no fornecimento de alternativas de tratamento. Assim como ocorreu no caso das PDP, é possível esperar que a adoção mais ampla do ACR sem fundamento legal expresso acarrete perplexidade na comunidade do direito administrativo (especialmente Tribunais de Contas). A existência de regramento legal específico com a definição de diretrizes claras para a utilização do ACR é capaz de resolver esse problema.
O estabelecimento de nova modelagem para a incorporação de tecnologia ao SUS, acelerando o acesso da população a novos tratamentos, exigindo da indústria contrapartida e evitando os custos da judicialização da saúde, encontra-se em linha com o espírito da Lei 14.133/21 (Nova Lei de Licitações e Contratos – NLLC). Porém, o PL 667 merece aprimoramentos. Daí ser surpreendente a tramitação do PL 667 pela Comissão de Saúde da Câmara dos Deputados (encerrada no último dia 4 de julho) sem a apresentação de emendas. Isso parece contradizer a relevância do tema.
Nesse sentido, a lei que regular o ACR no Brasil deve buscar definir parâmetros mais precisos para a contratação, de modo a reduzir a insegurança jurídica que se apresenta para gestores públicos e empresas na ausência de precedentes consolidados sobre novos modelos de contratação pública.
São aspectos que merecem tratamento legal específico:
<ul>
<li>i) forma de seleção do parceiro privado (p. ex. chamamento público ou licitação) e eventual divisão do mercado público (havendo mais de um interessado);</li>
<li>ii) prazo máximo da parceria;</li>
<li>iii) desconto mínimo aplicável durante a ACR e preço de referência para desconto (p. ex. média de preços praticados no mercado, última aquisição do MS ou PMVG);</li>
<li>iv) definição de fases do ACR;</li>
<li>v) métodos de avaliação da vantajosidade da incorporação, à luz do desempenho do ACR;</li>
<li>vi) prazos para disponibilização do tratamento após celebração do ACR, cronograma de fornecimento e possibilidade de aplicação de penalidades no caso de descumprimento;</li>
<li>vii) possibilidade de centralização da demanda do SUS (como ocorre no caso das PDP) para obtenção de maiores descontos;</li>
<li>viii) regras para a definição do percentual da demanda do SUS destinado à ACR;</li>
<li>ix) possibilidade de exigência de contrapartida tecnológica (transferência de tecnologia para laboratório público).</li>
</ul>
Depois da grande visibilidade que o modelo de contratação via ACR ganhou nos anos de 2019, 2020 e 2021 com a criação do projeto piloto do Ministério da Saúde, as discussões sobre o tema arrefeceram – mas os problemas que o ACR pretende resolver (ou contribuir para a solução) seguem presentes.
O encerramento da análise do PL 667 pela Comissão de Saúde da Câmara dos Deputados sem a propositura de (necessárias) emendas aponta para uma tramitação lenta e para a rejeição do projeto ou sua aprovação em versão com regras aquém das necessárias para a implementação efetiva e segura dessa alternativa para a incorporação de tecnologias ao SUS. Por isso, é momento oportuno para a sociedade civil (em especial associações de pacientes) e a indústria se movimentem politicamente para dar novo fôlego ao PL 667, com a reflexão crítica necessária sobre o estado atual do texto.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Para uma análise histórica e quantitativa da evolução da judicialização da saúde pública, ver: VIEIRA, Fabíola Sulpino. Direito à saúde no Brasil: seus contornos, judicialização e a necessidade de macrojustiça. Brasília: IPEA, 2020, p. 25-47.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Aith, F., Bujdoso, Y., Nascimento, P. R. do, &amp; Dallari, S. G. (2014). Os princípios da universalidade e integralidade do SUS sob a perspectiva da política de doenças raras e da incorporação tecnológica. Revista De Direito Sanitário, 15(1), 10-39.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Sobre o tema, ver: GLASSMAN, Guillermo. Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo de Medicamentos. Londrina: Thoth, 2021, p. 75-80.

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JOTA

PL 667/2021 tramita a passos lentos e sem ajustes necessários para a segurança jurídica do modelo

Acordo de compartilhamento de riscos na incorporação de novas tecnologias pelo SUS

PL 667/21 tramita a passos lentos na Câmara e sem ajustes necessários para segurança jurídica dos ACR (Acordos de Compartilhamento de Riscos)