Sofia Temer

Em janeiro de 2021, escrevi um texto, <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/j-p-cuenca-o-tuite-satirico-e-as-acoes-coordenadas-14012021#_ftn8">também veiculado no JOTA</a>, sobre a cruzada judicial contra J.P. Cuenca, que se tornou alvo de centenas de ações após a publicação de um tweet satírico envolvendo <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/jair-bolsonaro">Bolsonaro</a> e pastores da Igreja Universal. Naquela ocasião, a proposta era tratar as múltiplas ações como ações coordenadas e concertadas, com o intuito de desvendar o sujeito processual oculto responsável por controlar as ações concertadas (a Igreja?) e endereçar soluções de direito processual para tratá-lo como participante do processo, sujeito a custos, honorários e preclusões.<a href="#_ftn1" name="_ftnref2">[1]</a>
Não há dúvida, porém, que o problema das ações coordenadas também pode ser enfrentado a partir dos institutos do abuso do direito de ação e assédio processual, inclusive de forma complementar àquela abordagem. Essa foi a linha seguida pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI) em <a href="https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/11/associacao-de-imprensa-pede-inquerito-sobre-suposta-perseguicao-da-universal-a-escritor.shtml">representação endereçada ao MPF</a>.
O assédio processual no caso J.P. Cuenca foi também reportado ao <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/conselho-nacional-de-justica">Conselho Nacional de Justiça</a>, que, relatando haver indícios de “ação orquestrada por grupos”, editou Recomendação visando a coibir a litigância que vise a limitar a liberdade de expressão.
A Recomendação CNJ 127/2022 passou a identificar a judicialização predatória a partir do “ajuizamento em massa em território nacional de ações com pedido e causa de pedir semelhantes em face de uma pessoa ou de um grupo específico de pessoas, a fim de inibir a plena liberdade de expressão”, recomendando que os tribunais adotem medidas para análise de prevenção do juízo, agrupamento de ações, dentre outras medidas.
A Recomendação foi publicada em 15 de fevereiro de 2022 e já está em vigor. Embora se possa afirmar que as Recomendações, ao contrário das Resoluções, não têm força cogente, é certo que não são letra morta: há conteúdo prescritivo, que impõe ônus argumentativo maior ao julgador que pretenda não seguir as suas diretrizes e as boas práticas veiculadas pelo <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cnj">CNJ</a>.<a href="#_ftn2" name="_ftnref4">[2]</a>
Desse modo, é recomendado, já atualmente, que os magistrados analisem esse tipo de litigância de forma global e adotem as medidas necessárias a coibi-la. A bem da verdade, tais medidas já seriam possíveis a partir da interpretação (criativa, mas realista e fundada na<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/constituicao-federal"> Constituição</a>) de diversos artigos do CPC, como os arts. 5º, 8º, 55 §3º, 68, 69, 77, 80, 139, dentre outros. É por isso, a propósito, que a Recomendação fala em medidas “exemplificativas” quando trata da análise de prevenção, agrupamento de ações e verificação da má-fé dos demandantes.
Mas há também um projeto de lei em discussão perante a <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/camara-dos-deputados">Câmara dos Deputados</a> (<a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2162303">PL 90/2021</a>), aprovado pela <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ccj">CCJ</a> no último dia 10 de maio, que versa sobre “reunião de ações judiciais em face da identificação de demanda opressiva”. O PL foi referido pelo CNJ ao editar a Recomendação 127/2022,<a href="#_ftn3" name="_ftnref6">[3]</a> de modo que é possível crer é mais uma iniciativa em resposta ao emblemático caso de J.P. Cuenca.
No entanto, o PL é bem mais amplo – e possivelmente problemático – do que a Recomendação do CNJ.
Primeiro, porque não adota a premissa da liberdade de expressão: para caracterizar as “demandas opressivas” basta que haja ações diversas com a mesma causa de pedir, ajuizadas pelo mesmo autor ou autores que tenham entre si identidade de qualquer espécie, contra a mesma pessoa, com o intuito de prejudicá-la ou de causar-lhe dificuldade de exercício do direito de defesa ou que propicie deslocamentos entre comarcas ou regiões distintas (art. 2º). Tudo é muito aberto, o que não é resolvido pela mera ressalva às relações de consumo (art. 7º).
Segundo, a técnica legislativa do PL deixa muito a desejar: há “artigo-preâmbulo” (art. 1º), artigos que tentam apenas explicitar conceitos (confusos, diga-se), parágrafos repetidos e desvinculados do tema do respectivo caput, bem como parágrafos distintos tratando da mesma questão, inclusive de forma contraditória (escolha do foro, por exemplo – arts. 2º§2, 3º§§ 2, 4, 5 e 6).
Terceiro, também não há conformidade ou coerência com a legislação processual, seja com a codificada há poucos anos (CPC/2015), seja com o regime específico dos Juizados Especiais (onde normalmente tais ações são ajuizadas). Não há considerações sobre regras de prevenção, e o procedimento para “escolha” do juízo é desordenado. Qual “audiência” será única (art. 3º)? E o que dizer do efeito suspensivo automático ao agravo de instrumento (até o trânsito em julgado? – art. 3º §§3 e 7)? E a contrariedade expressa ao regime de custos da Lei n. 9.099/95 (art. 5º)?
Quarto, há previsões que trarão mais perguntas do que respostas. Por exemplo: o que é “tornar certo o dever de reparação do dano” (art. 2º §1º), e o que isso difere do regime geral de responsabilização? E apenas o pedido de reparação do dano moral poderá ser veiculado em “pedido contraposto” (art. 6º)? Qual a vantagem de tal destaque?
Em suma, é claro que o problema das ações concertadas deve ser objeto de reflexão e a litigância predatória deve ser coibida. Como dito, é possível combater a prática já atualmente, à luz do CPC, da Constituição, do Código Civil. É possível empregar técnicas já existentes, como o processamento conjunto e as sanções processuais. É possível usar o sistema de precedentes e resolução de questões repetitivas (como IRDR) para uniformizar teses a serem aplicadas pelos magistrados de modo a obstar o processamento de demandas predatórias.<a href="#_ftn4" name="_ftnref7">[4]</a> Há muitas ferramentas disponíveis.
Mas, se ainda assim for necessário um novo texto legal - e é possível que seja, para evitar que dependamos da boa vontade dos magistrados em bem aplicar as técnicas processuais – a nova lei deve ser clara, forte e coerente, deve estar alinhada com o regime processual já posto e deve efetivamente ajudar a resolver problemas.
É urgente, portanto, a revisão criteriosa do PL 90/2021. Nesse meio tempo, podemos empregar – sem qualquer prejuízo – as leis vigentes e a Recomendação CNJ 127/2022.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn2">[1]</a> Com base na tese defendida em: TEMER, Sofia. Participação no processo judicial. Salvador: Juspodivm, 2020.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn4">[2]</a> DIDIER JR., Fredie; FERNANDEZ, Leandro. O Conselho Nacional de Justiça e o direito processual. Salvador: Juspodivm, 2022.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[3]</a> Também tratando do problema da litigância predatória: <a href="https://www.conjur.com.br/2022-fev-16/processo-assedio-atraves-demandas-opressivas-judicializacao-predatoria#_ftn2">https://www.conjur.com.br/2022-fev-16/processo-assedio-atraves-demandas-opressivas-judicializacao-predatoria#_ftn2</a>
<a href="#_ftnref4" name="_ftn7">[4]</a> A título de exemplo, há IRDR instaurado no TJMS que busca uniformizar tese a respeito da litigância predatória contra instituições financeiras, muitas vezes mediante procurações falsas e em demandas repetidas: TJMS - IRDR 16, Processo nº. 0801887-54.2021.8.12.0029/50000. A questão afetada é: "Necessidade de apresentação dos documentos atualizados (procuração, declaração de pobreza, declaração de residência, extratos etc) para o recebimento da petição inicial nos casos de ação declaratória movida em face de instituições financeiras". O problema é muito conhecido e vem sendo alvo de ação dos NUMOPEDEs. V: <a href="https://www.cnj.jus.br/para-magistrados-justica-pode-reagir-a-litigiosidade-com-centros-de-inteligencia/">https://www.cnj.jus.br/para-magistrados-justica-pode-reagir-a-litigiosidade-com-centros-de-inteligencia/</a>; <a href="https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2021/11/17/judiciario-pune-advocacia-predatoria.ghtml">https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2021/11/17/judiciario-pune-advocacia-predatoria.ghtml</a>

cnj-2020

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JOTA

Notas sobre a Recomendação CNJ 127/2022 e o PL 90/2021

Ações coordenadas, 'demandas opressivas' e 'litigância predatória'

Notas sobre a Recomendação CNJ 127/2022 e o PL 90/2021