
Em mais de uma ocasião, Cássio Casagrande chamou a atenção do leitor do JOTA para as interpretações equivocadas que autoridades brasileiras fazem da realidade jurídica americana, como a sua Justiça do Trabalho e o seu sistema sindical. Há casos, porém, em que nos deparamos com a situação contrária: a da interpretação absolutamente equivocada, feita por americanos, da realidade do Brasil, muitas vezes em momentos graves da vida política do país.
O exemplo mais recente disso se deu com a publicação, no Correio Braziliense, de artigo de Bruce Ackerman, no qual o professor da Yale Law School sustentou que, para se contrapor à alienação política e controlar a ascensão de facções extremistas ao poder, o Brasil deveria convocar uma nova Assembleia Constituinte em 2023 e adotar o parlamentarismo como sistema de governo.
A rigor, nenhuma das ideias defendidas por Ackerman – um dos mais originais e influentes autores do direito constitucional norte-americano – é inédita por estas bandas. De tempos em tempos, o fantasma da nova Constituição costuma surgir no horizonte do nosso debate público, sob diferentes roupagens.
Foi assim em 2013, quando a presidente Dilma Rousseff propôs a instauração de uma Constituinte exclusiva para promover a reforma política, e, em 2018, quando Hamilton Mourão, então candidato à vice-presidência, sugeriu a elaboração de um texto constitucional sem a participação de representantes eleitos pelo povo.
Já o projeto parlamentarista foi resgatado, e rechaçado pelos eleitores, em pelo menos dois momentos fundamentalmente diversos da história nacional: sob a ameaça do golpismo, em 1963, e na esperança de dias melhores, em 1993.
Além de não ser original, a proposta de Ackerman peca por uma superficialidade incomum à obra do americano. Em sua conhecida trilogia “We the People”, Ackerman dedicou-se a um estudo de intensa profundidade histórica com o objetivo de propor uma teoria constitucional adequada aos Estados Unidos. A análise ackermaniana do contexto brasileiro, em contrapartida, mereceu menos de dez parágrafos.
Ali, o autor resume nosso complexo processo constituinte a uma disputa (que existiu e foi, de fato, extremamente relevante) sobre o sistema de governo, propondo o que parece ser um “pecado original” de nossa Constituição: a aquiescência com o regime presidencialista. Ackerman, contudo, desconsidera que o mesmo regime foi adotado em quase toda a história da nossa república, e igualmente nos demais países latino-americanos.
Também ficam de fora a relevância da participação popular no processo de elaboração da Constituição, as conquistas progressistas contra uma Assembleia Constituinte marcada pelo conservadorismo, bem como o caráter simbólico e emancipatório da Constituição.
Além disso, desaparecem da análise de Ackerman quaisquer dados acerca do efetivo funcionamento de nosso sistema presidencialista pós-88, cujo sucesso (em termos de governabilidade) o professor de Yale atribui a “estadistas genuínos”. Ignoradas todas essas variáveis, fica mais fácil estabelecer, como faz o autor, uma relação de causalidade rasa entre a Constituição de 1988 (lida quase como se fosse sinônimo de presidencialismo) e crises políticas.
O problema por trás da superficialidade da sua análise, que sequer considera os motivos pelos quais propostas idênticas já tinham sido rechaçadas pelos brasileiros no passado, é que, em uma só tacada, Ackerman erra duplamente. De um lado, o autor sugere que renunciemos à Constituição mais progressista da nossa história, importante elemento de garantia da estabilidade política do país.
Tão logo foi promulgada, houve quem dissesse que a CF/88 tornaria o Brasil ingovernável, mas a experiência concreta demonstrou o contrário. Sob sua égide, conseguimos atravessar crises agudas de governabilidade e, ao mesmo tempo, avançamos na concretização de suas promessas civilizacionais.
A nova onda autoritária, que joga a sua sombra sobre a democracia brasileira, não nasceu dos defeitos da Constituição de 1988, e sim de práticas, discursos e sentimentos que negam frontalmente as suas virtudes. Basta ver que a figura que representa o mais grave risco de autocracia no Brasil foi, ao longo de toda a sua vida parlamentar, ferrenho opositor do pacto constitucional de 1988.
Enquanto há os que tentam sabotar o nosso projeto coletivo de nação e de sociedade, de que valeria – ou melhor, a quem serviria – abandonar o símbolo maior do nosso processo de redemocratização e, junto com ele, a sua narrativa antiautoritária?
De outro lado, Ackerman propõe a instauração de um sistema político que exclui a participação popular direta na escolha do chefe de governo, em tempos nos quais o povo exige precisamente o contrário: maior grau de participação e representatividade políticas.
Um dos elementos centrais da atual crise das democracias constitucionais é a sensação crescente de perda de representatividade, sensação essa que o populismo autoritário – ou o extremismo de que nos fala Ackerman – sabe explorar tão bem. Se a resposta para tamanho problema dependesse unicamente de sugestões de engenharia institucional que priorizassem o desenho do parlamentarismo, a Hungria não estaria à mercê de Viktor Orbán.
A propósito, recorde-se ainda que, uma vez no cargo de primeiro-ministro, Orbán não tardou a substituir a Constituição do país por outra, nada preocupada com o controle do exercício do poder ou com a proteção de direitos fundamentais.
É perceptível que se vive, atualmente, uma crise múltipla: política, econômica, social e, ainda por cima, sanitária. A Constituição de 1988, a despeito dos ataques que vem sofrendo, existe justamente para mediar essa crise. Ackerman nos aponta apenas um motivo para lutar contra a Constituição de 1988: sua análise (como visto, superficial) de nosso sistema de governo nas últimas três décadas.
E é precisamente porque restringe suas considerações a uma certa caricatura do presidencialismo brasileiro que Ackerman deixa de vislumbrar os diversos motivos para lutar pela Constituição de 1988.
Uma carta que solidificou um projeto construído a duras penas e apesar de resistências que sempre pareceram incontornáveis. Um projeto de superação da desigualdade, de promoção de direitos fundamentais e de aprofundamento de nossa ainda jovem democracia.
O direito público brasileiro tem sido fortemente influenciado pelos juristas americanos (especialmente de Yale e Harvard) e europeus (especialmente portugueses e alemães). Por certo, há muito o que aprender com teorias estrangeiras, em um mundo no qual o direito constitucional é cada vez mais cosmopolita.
Mas o artigo de Ackerman, ao contrário de suas teorias constitucionais amplamente divulgadas, mostra menos uma capacidade de ensinar, e mais uma necessidade de aprender. Sobretudo quando se verifica que o autor analisou a realidade brasileira sem a profundidade e a complexidade que, para ele mesmo, mereceu o contexto americano.
O respeito a uma autoridade viva no direito constitucional não deve, portanto, correr o risco da subserviência irrefletida. Em meio a um grave quadro político, precisamos de ideias. Que sejam boas, que sejam originais e – estrangeiras ou não – que sejam suficientemente teorizadas. E, em nossa história, a melhor, mais original e mais profunda ideia política que podíamos ter, nós a tivemos em 1988. Agora, é lutar por ela.