Ana Paula Sefrin Saladini

Considerando as raízes históricas da Justiça do Trabalho, nascida como instância administrativa, como forma de facilitar o acesso à justiça sempre prevaleceu nessa esfera o direito da parte de se fazer presente em juízo sem necessidade de advogado – o que se denominou chamar de exercício do jus postulandi. Por esse instrumento, tanto o trabalhador quanto o empregador podem dispensar a representação profissional de advogado e se auto representar, propondo e acompanhando as ações até o grau de recurso ordinário, junto ao Tribunal Regional do Trabalho.
Esse direito está previsto no art. 791 da CLT, e que foi modulado, em termos de jurisprudência, pela Súmula 425 do TST, através da qual a corte superior firmou posição, desde 2010, no sentido que o jus postulandi das partes limita-se à atuação junto às Varas do Trabalho e aos Tribunais Regionais do Trabalho, não alcançando a postulação em ações especiais que são de competência originária ou recursal ordinária do TST (ação rescisória, cautelar, mandado de segurança) nem os recursos de revista que fossem apresentados junto ao mesmo Tribunal, por serem questões técnicas que reclamam assistência profissional especializada para o efetivo exercício da postulação.
Essa modalidade de acesso à justiça se encontra muito presente em diversas localidades brasileiras, em especial naquelas que não contam com profissionais disponíveis. Vários tribunais trabalhistas criaram, inclusive, um setor de atermação, assim chamado porque se destina a reduzir a termo escrito as demandas apresentadas de forma oral por trabalhadores que não contam com advogados e comparecem pessoalmente ao Judiciário para exercer o jus postulandi. 
A prática existe há muito tempo e funciona razoavelmente bem, muito embora seja sempre prudente a representação por advogado. Quando se trata de demanda de pequeno porte, comum que seja resolvida por acordo, em audiência.
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Ocorre que nas últimas décadas muita coisa mudou no âmbito do processo do trabalho, a começar pelo próprio ambiente processual: os processos físicos se transformaram em eletrônicos, que demandam habilidades específicas para acesso, inclusive a necessidade de assinatura digital.
Além disso, o próprio procedimento trabalhista sofreu reveses profundos, primeiro pelo impacto das mudanças decorrentes do CPC de 2015, aplicável subsidiaria e supletivamente ao processo do trabalho (art. 15 do CPC) e depois pelas próprias alterações implementadas pela Lei 13.467/2017, que, dentre outras questões, estabeleceu formalmente honorários de sucumbência, até então restritos aos casos de representação sindical do trabalhador (os chamados honorários assistenciais, e não sucumbenciais), além de implantar a previsão de prescrição intercorrente aos feitos que permanecessem paralisados por falta de cumprimento de determinação judicial no curso da execução por período superior a dois anos (art. 11-A), limitando a execução promovida de ofício pelo magistrado aos casos em que as partes não estiverem representadas por advogado (art. 878).
As dificuldades de acesso das partes ao processo eletrônico foram tradicionalmente enfrentadas pelo auxílio do atendimento presencial nas unidades judiciárias, havendo de se lembrar, inclusive, que o art. 198 do CPC, ao regulamentar a prática eletrônica de atos processuais, estabeleceu que as unidades do Poder Judiciário devem manter gratuitamente, à disposição dos interessados, os equipamentos necessários para a prática de tais atos e para consulta e acesso ao sistema e aos documentos dele constantes. Isso, de fato, vinha sendo observado, permitindo o acesso das partes ao processo eletrônico, ainda que para isso tivessem que se locomover até a unidade judiciária em questão.
Em meio a esse panorama (possibilidade de jus postulandi e processo eletrônico) é que surge a pandemia do COVID-19, desdobrando-se em diversas questões de ordem prática. Para organização do atendimento do Poder Judiciário, o Conselho Nacional de Justiça editou, em 19 de março de 2020, a Resolução nº 313, que, dentre outras providências, determinou a suspensão do atendimento presencial de partes, advogados e interessados, substituindo-o por atendimento remoto pelos meios tecnológicos disponíveis; os prazos permaneceram suspensos desde então, sendo retomados a partir de 04 de maio de 2020, de acordo com a Resolução CNJ 314, de 20 de abril de 2020.
Importante frisar que nesse interregno as atividades judiciárias continuaram a se desenvolver em regime de teletrabalho. Mas o ritmo, em relação às partes e advogados, se acelerou naturalmente a partir da retomada dos prazos processuais, com possibilidade de realização de audiências por videoconferências, com o uso de plataformas específicas, como a Cisco-Webex, conveniada ao Conselho Nacional de Justiça. Também muitas ações foram propostas nesse intervalo de tempo, inclusive em razão dos próprios efeitos da pandemia no mercado de trabalho e nas atividades econômicas.
Para as novas demandas e após a implantação do rito procedimental de emergência, as partes foram chamadas para comparecimento virtual em juízo: além do processo eletrônico, a audiência passou a ser realizada à distância, por teleconferência, tudo demandando uma expertise e intimidade com mecanismos tecnológicos que não são de fácil acesso a toda uma parcela da população. As principais barreiras podem ser identificadas especialmente como as típicas dos problemas decorrentes da desigualdade de inclusão digital: acesso a dispositivos eletrônicos destinados a esse fim, banda de internet suficiente à prática dos atos e conhecimento digital elementar necessário para a prática de tais atividades.
Identificado o problema do ajuizamento da demanda por quem não tem advogado, no dia 23 de junho de 2020 o Corregedor Geral da Justiça do Trabalho editou a Recomendação nº 8, indicando que as Corregedorias Regionais deveriam implementar atos normativos com previsão de medidas capazes de viabilizar a atermação de demandas pelo meio virtual, além de dar atendimento ao jurisdicionado carente, de forma não presencial, enquanto perdurassem as restrições decorrentes da pandemia do COVID-19. O serviço em questão deveria ser divulgado na página de cada tribunal, na internet, e também nos fóruns da Justiça do Trabalho de cada região. Mas mesmo esse meio pressupõe um acesso a um letramento digital mínimo, sem considerar as demais questões de desigualdade de inclusão digital.
A questão merece uma reflexão mais aprofundada quando se pensa no acesso à justiça como uma das garantias constitucionais essenciais. Em obra clássica sobre acesso à justiça, Cappelletti e Garth (1988) pontuam que “a expressão ‘acesso à justiça’ é reconhecidamente de difícil definição, mas serve para determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico – o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do Estado”. Prosseguem esclarecendo que esse sistema deve ser igualmente acessível a todos e produzir resultados que sejam individual e socialmente justos. E para que se alcance a justiça social desejada pelas sociedades modernas pressupõe-se o acesso efetivo.
Para que se alcance o efetivo existem diversos obstáculos a serem transpostos, dentre eles os que dizem respeito à possibilidade das partes. A parte deve ter aptidão para reconhecer um direito e propor uma ação ou para apresentar sua defesa. Os autores classificam a capacidade jurídica pessoal em três níveis: a) conseguir reconhecer a existência de um direito juridicamente exigível; b) ter conhecimento a respeito da maneira de ajuizar uma demanda; c) ter disposição psicológica para recorrer a processos judiciais. No aspecto psicológico, identificam como obstáculo a existência de procedimentos complicados e o comparecimento a ambientes que intimidam, com presença diante de figuras tidas como opressoras.
Ora, nas situações de jus postulandi há que se reconhecer que o acesso efetivo à justiça ficará prejudicado. Primeiro, pelas dificuldades já pontuadas de acesso aos autos digitais, potencializada pela suspensão provisória do atendimento presencial.
Em segundo lugar, pela falta de inclusão digital, destacando-se aqui o pequeno nível de acesso a equipamentos tecnológicos e internet com capacidade que vá além do acesso às redes sociais.
Em terceiro, pelo próprio ambiente virtual: se o comparecimento em um fórum físico, onde é possível chegar pelas próprias pernas e que, sabe-se, estará lá, fisicamente, já é intimidante, a carga psicológica de comparecer diante de um juiz que está do outro lado da tela, sujeito ainda às variações de internet, poderá ser ainda mais intimidante, posto que entremeada com o medo do desconhecido.
Embora se reconheça a necessidade de prosseguimento dos atos pela via digital, única que é franqueada em segurança em tempos de pandemia, deve-se atentar que não há como dizer que para essa parcela da população (em grande parte carente economicamente) estará assegurado o efetivo acesso à justiça, diante das notórias dificuldades de letramento digital e de inclusão digital. E lembrar que isso deverá ser ponderado por juízes e tribunais, antes de se declarar uma revelia ou de se decretar a rejeição de um pleito.

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JOTA

Uma análise sobre o dilema do jus postulandi

Acesso à justiça em tempos de pandemia, processo eletrônico e teleaudiências

Uma análise sobre o dilema do jus postulandi