Betania Devechi Ferraz

Gabriela Spanghero Lotta

Luciana Jordao da Motta Armiliato de Carvalho

Pedro Ribeiro Agustoni Feilke

A Constituição Federal de 1988 instituiu, como direito fundamental, a assistência jurídica integral e gratuita e também definiu o órgão responsável por sua implementação: a Defensoria Pública. O modelo público de acesso à justiça é concretizado seguindo a normativa constitucional e federal, repetida e complementada por normas estaduais.
Cada uma das Defensorias Públicas do país define, internamente, os seus critérios de atendimento à população. No estado de São Paulo, os usuários do serviço são submetidos a uma triagem econômico-financeira que tem como norte principal a renda familiar de até três salários-mínimos.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Esta triagem das pessoas que serão ou não atendidas pela Defensoria Pública é realizada por servidores públicos, que implementam a política pública através de sua interação diária com os usuários do serviço. O papel e a influência dos servidores públicos para a implementação das políticas públicas passam a ser estudados a partir de Lipsky (2019), que inaugura nos anos 80 um modelo de análise centrado no “burocrata de nível de rua”, conceituados como servidores que se relacionam diretamente com cidadãos para entrega de um serviço.
Neste contexto, saber como o burocrata de nível de rua atua, como suas ações são colocadas em prática e quais são os fatores que influenciam a mudança dos resultados das políticas públicas torna-se central para a avaliação do processo de implementação (LOTTA, 2012).
A discricionariedade destes servidores públicos está em determinar a natureza, a quantidade e a qualidade dos benefícios, além das sanções que serão aplicadas pela organização (LOTTA; SANTIAGO, 2018). Os servidores da Defensoria Pública possuem discricionariedade em definir quem acessa ou não o serviço. A discricionariedade do agente existe e deve ser preservada em razão, principalmente, da complexidade de sua atuação e da importância desta para a implementação da política pública.
Considerando a relevância da Defensoria Pública em atender grupos vulnerabilizados e, dada a discricionariedade que seus servidores possuem, as questões que se colocam são: de que maneira a discricionariedade do servidor da Defensoria afeta o acesso ao serviço e, portanto, os direitos dos cidadãos? E, dado o contexto de automatização e digitalização dos atendimentos na Defensoria, como a avaliação financeira realizada foi afetada pela adoção das novas ferramentas virtuais de atendimento?
Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) e Defensoria Pública
No cenário paulista, como reflexo do que aconteceu no mundo, o atendimento à população foi profundamente alterado com a pandemia da Covid-19. Os atendimentos, antes presenciais, tornaram-se integralmente virtuais através de Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) incorporadas à rotina de trabalho durante a fase mais crítica da pandemia, a partir de março de 2020.
As adaptações do fluxo de atendimento foram realizadas no decorrer do último ano, sendo certo que por um período significativo a única forma de acesso à Instituição era virtual.
Atualmente, os usuários da Defensoria Pública acessam a política através de um sistema multiportas – presencialmente, por teleatendimento ou através de assistentes virtuais para o agendamento do atendimento – e dialogam com a Instituição por meio de ferramentas de comunicação virtual por mensagem escrita e telefônica ou via atendimento presencial<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
São inegáveis os avanços tecnológicos alcançados em um período tão curto de tempo, em resposta à contingência exógena criada pela pandemia da Covid-19<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. Esta contingência acarretou profundas mudanças institucionais no modelo de atuação da Defensoria Pública.
A incorporação de ferramentas tecnológicas na comunicação com os destinatários dos serviços concretiza princípios norteadores da gestão pública, como a eficiência e transparência. Também otimiza o fluxo de atendimento de massa realizado pela Defensoria Pública, uniformizando-o, evitando assim, tratamento desigual no momento da implementação.
Mas, para além dos eventuais ganhos em eficiência e modernização do atendimento, alguns aspectos deste novo cenário merecem atenção.
<blockquote class="jota-article__eye">A inclusão destas ferramentas tecnológicas despersonaliza o atendimento e pode dificultar uma análise mais profunda do caso concreto, uma vez que matiza a discricionariedade do servidor público desde o momento da avaliação financeira.</blockquote>
O atendimento ao público é prestado por atores de nível hierárquico e com grau de discricionariedade diversos e que estabelecem um vínculo com o cliente de maior ou menor proximidade. Incluem-se aqui estagiários, oficiais de atendimento e defensores públicos. A discricionariedade destes agentes pode ser limitada pelas balizas de sistemas pré-moldados, formulários e outras molduras administrativas, a partir do momento em que as Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) são incorporadas ao fluxo de atuação diária.
Assim, apesar de ser esperado um aumento da consistência das decisões após a internalização das ferramentas virtuais ou TIC, elas podem desconsiderar circunstâncias individuais e diminuir o impacto das percepções dos burocratas de nível de rua. Como consequência, os burocratas de nível de rua podem se tornar mais formais e menos facilitadores do atendimento ao público.
Em um contexto em que as TIC se tornam centrais para a implementação da política pública, é essencial que seja investigado qual é o impacto da despersonalização e como ela pode influenciar a forma como o burocrata toma as suas decisões.
O fato de não estar sentado frente a frente com o usuário (notadamente vulnerável, considerando o público atendido pela Defensoria Pública), pode dessensibilizar o servidor de tal forma que altere a sua interpretação final da norma administrativa? E mais, o simples fato de ter que preencher um sistema informatizado pode influir no modo como se comporta diante das demandas apresentadas?
Tais perguntas demandam uma resposta ainda não conhecida. Na literatura brasileira, são escassos os estudos empíricos a respeito da relação entre discricionariedade do burocrata de nível de rua e Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC).
Na literatura internacional, Boer e Raaphorst (2021) buscam contribuir com esta discussão através de um instrumento de mensuração deste fenômeno, partindo da premissa de que tecnologias de automação alteram a arquitetura de escolha dos burocratas, podendo direcioná-los a comportamentos desejados.
O desenvolvimento de uma linha de pesquisa sobre a atuação das Defensorias Públicas e exercício de discricionariedade neste novo contexto virtual é essencial, já que a Instituição é marcada por questões de multiplicidade, diversidade e fragmentação em sua realidade cotidiana.
Esta agenda de pesquisa ganha ainda mais relevo quando se avalia a função constitucional da Defensoria Pública: ela abrange não só a garantia de acesso ao judiciário, mas também a orientação jurídica, a atuação extrajudicial e a promoção da educação em direitos, além da promoção dos direitos humanos.
Os resultados de pesquisas sobre esta temática desenvolvidas pelo Grupo de Pesquisa “Estudos Organizacionais em Gestão Pública”<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> contribuirão para a construção de parâmetros de uma forma de atendimento híbrido, apto a ampliar o acesso à justiça, integral e gratuito, em favor da população do Estado de São Paulo.
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}, 3000);
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<hr />
Referências: 
DE BOER, N.; RAAPHORST, N. Automation and discretion: explaining the effect of automation on how street-level bureaucrats enforce. Public Management Review, v. 00, n. 00, p. 1–21, 2021.
LIPSKY, M. Burocracia de nível de rua. Brasília: ENAP, 2019.
LOTTA, G. S. O papel das burocracias do nível da rua na implementação de políticas públicas: entre o controle e a discricionariedade. Implementação de Políticas Públicas. Teoria e Prática, n. 2003, p. 26, 2012.
LOTTA, G.; SANTIAGO, A. Autonomia e discricionariedade: matizando conceitos-chave para o estudo de burocracia. BIB, v. 83 1/2017, p. 21–42, 2018.
Notas:
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> O assistente virtual “DEFI” é um sistema de conversa online com respostas automatizadas por meio de inteligência artificial, criado para receber informações básicas dos usuários da Defensoria, compreender a demanda, coletar documentos e encaminhar à unidade competente para atendimento.
O “Live Chat” é uma ferramenta de troca de mensagens em tempo real para atendimento pelas equipes da Defensoria dos usuários previamente agendados.
O “Softphone” é uma ferramenta que permite às equipes da Defensoria realizar ligações telefônicas por meio da internet, a qual é utilizada principalmente no atendimento das pessoas com dificuldades para se comunicar de forma escrita e/ou sem acesso à tecnologia.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> No período de maio de 2020 a maio de 2021, a Defensoria Pública de São Paulo registrou mais de 37.000 agendamentos mensais de usuários via assistente virtual “DEFI” e mais de 48.000 atendimentos mensais via “Live Chat”.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> O Grupo de Pesquisa “Estudos Organizacionais em Gestão Pública”, criado em outubro de 2020 e vinculado à Escola da Defensoria Pública do Estado de São Paulo (EDEPE) possui entre seus eixos de pesquisa o atendimento ao público e busca produzir pesquisas empíricas a respeito dos fenômenos que envolvem o cidadão, o servidor público e a implementação da política pública de acesso à justiça. Trata-se de iniciativa que conta com pesquisadores internos e externos e que considera a necessidade e a importância de promover a produção de conhecimento próprio e inerente à atuação da Defensoria Pública do Estado.

Defensoria Pública Mato Grosso do Sul. Crédito: Divulgação

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JOTA

Como a avaliação financeira pode ser afetada pelas novas ferramentas virtuais de atendimento?

Acesso à justiça e a discricionariedade na Defensoria Pública

Como a avaliação financeira pode ser afetada pelas novas ferramentas virtuais de atendimento?