Sofia Signorelli

O cartel é um ilícito concorrencial que decorre de um comportamento acertado entre agentes que concorrem entre si. Apesar da Lei 12.529/2011 (Lei de Defesa da Concorrência) não trazer uma definição direta do conceito de cartel, a definição genérica de infração à ordem econômica trazida pelo Art. 36 elenca todos os elementos necessários para a formulação de um cartel.
Na classificação dos ilícitos concorrenciais, o cartel é enquadrado como uma conduta praticada entre agentes que possuem relações horizontais no mercado, isto é, que pertencem ao mesmo mercado relevante [1].
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Diferentemente do que ocorre em monopólios naturais ou monopólios originados a partir da proteção à Propriedade Industrial, o cartel origina o que Herbert Hovenkamp[2]. explica ser um “processo de monopolização”.
Esta distinção é pertinente, na medida em que enquanto as perdas de mercado decorrentes de um monopólio não provêm dos altos preços cobrados pelo produto, mas da perda da escolha dos compradores, no caso da monopolização, realmente há num sobrepreço artificial que é difundido em todo o mercado, afetando não apenas a formação dos preços, como também o próprio desenvolvimento deste mercado – o que origina a dificuldade de desenhar políticas públicas capazes de dissuadir esta prática.
De acordo com as diretrizes do Banco Mundial, as penas impostas por autoridades de defesa da concorrência possuem tanto uma função retributiva, quanto preventiva, isto porque sua imposição visa não apenas ressarcir a sociedade do dano ocasionado ao instituto da concorrência, como também reduzir incentivos, de forma que o agente coator não volte a praticar o dano.
Em que pese a existência de divergências doutrinárias sobre a legalidade do elemento retributivo da sanção administrativa do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) em função da existência do art. 47 da Lei 12.529/2011, o qual prevê instrumento próprio para a persecução de compensações por infrações contra a ordem econômica, fato é que há notório reconhecimento do trabalho exercido pelo Cade e de sua excepcional contribuição à manutenção do Fundo de Direitos Difusos (FDD)<a name="_ftnref2"></a>[3].
Esta dupla função na esfera administrativa (cujo elemento retributivo parece ser subsidiário) também vem sendo reconhecida, de forma geral, quanto à esfera da responsabilidade civil (onde a subsidiariedade é reversa, isto é, a função retributiva é preponderante), fenômeno acompanhado pelo fortalecimento do chamado private enforcement concorrencial.
Pedro Rosa Fernandes[4] diferenciou as duas modalidades de enforcement das normas de direito concorrencial, distinguindo entre o chamado public enforcement, ou seja, aquele que é realizado por entidades públicas para a proteção do interesse público nos termos da Constituição; e o private enforcement, realizado a partir da indenização das vítimas afetadas pela prática de condutas restritivas à concorrência.
Em 2015, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) liderou uma discussão a respeito da complementação entre as duas modalidades em diferentes jurisdições, havendo concluído que, no caso brasileiro, a própria Lei 12.529/2011 prevê as duas modalidades, sendo o propósito do private enforcement brasileiro reestabelecer o status quo ante daqueles que hajam sido prejudicados pela conduta dos cartelistas condenados.
Neste sentido, o relatório aponta que o legislador brasileiro englobou tal possibilidade no escopo do supracitado Art. 47, o qual prevê o “direito de ação”, arrolando o rol de legitimados que poderiam requerer sua indenização por danos concorrenciais judicialmente, o que originaria as Ações de Reparação de Danos Concorrenciais (ARDCs).
<blockquote class="jota-article__eye">Contudo, apesar de sua relevância à efetividade da política concorrencial brasileira, há ainda uma verdadeira subutilização das ARDCs no Direito Brasileiro, decorrente de uma série de fatores que culminam no desincentivo à sua propositura.</blockquote>
William M. Landes<a name="_ftnref3"></a>[5], ao teorizar sobre os mecanismos envolvidos no processo decisório do potencial cartelista, procurou ilustrar os parâmetros para que o desenho de políticas públicas anticartéis fosse eficiente sob o ponto de vista de sua prevenção.
No seu entendimento, a prevenção de cartéis apenas seria atingida na medida em que o total das sanções impostas pelas autoridades antitruste fossem equivalentes à razão do total dos danos provocados em função da prática do cartel dividido pela probabilidade de apreensão e convicção.
Apesar de haver sido amplamente difundido como um dos primeiros modelos de Análise Econômica do Direito e um importante parâmetro para balizar a política concorrencial norte-americana, quando importado ao Direito Brasileiro, o modelo de Landes evidencia a lacuna deixada pela subutilização do private enforcement na repressão dos cartéis.
Lacuna esta que remete a uma série de fatores, a saber (i) incertezas quanto ao prazo prescricional para a propositura das ARDCs; (ii) questionamentos envolvendo a solidariedade dos agentes que celebram acordos administrativos e as possíveis limitações às sanções administrativas e valor das reparações devidas; (iii) problemas que envolvem o acesso à documentação probatória e o valor das decisões do Cade como meio de prova; e (iv) a quantificação de danos. Hoje ainda em tramitação, o PLS 283/2016, que prometia cuidar de cada um destes temas, parece haver caído no esquecimento.
Entretanto, ao mesmo tempo em que tais disfunções coibiam o crescimento do número de ARDCs no Brasil (o que, segundo o último levantamento realizado pelo Instituto Brasileiro de Estudos de Concorrência, Consumo e Comércio Internacional – IBRAC) em 2018, totalizava menos de 200 ações ajuizadas em todo o país), a utilização do instrumento do third-party funding (TPF) consolidava-se nas terras tupiniquins.
O financiamento de litígios por meio de terceiros, que encontrou terreno fértil no mercado nacional de arbitragem, nada mais é do que uma solução de mercado para neutralizar a barreira dos altos custos iniciais e otimizar a gestão processual do litígio, por meio da contratação das melhores bancas advocatícias e da utilização de ferramentas estatísticas com o propósito de mapear o posicionamento dos tribunais brasileiros com maior acurácia do que via de regra seria feito dentro de um escritório de advocacia.
A única “adaptação” que o TPF precisaria enfrentar considerando a sua utilização no financiamento das ARDCs in lieu dos procedimentos arbitrais seria a morosidade do judiciário pátrio, o que prejudica a avaliação do investidor.
Diferentemente de variáveis como risco de crédito da contraparte, a reputação do tribunal arbitral e até mesmo o mérito do direito em litígio, problemas estruturais do judiciário brasileiro prejudicam uma precificação pois são considerados como riscos dificilmente aferíveis.
Assim, ainda que os já mencionados instrumentos estatísticos possam aprimorar a previsibilidade das decisões nos nossos tribunais, isto em nada se compara com o cenário vivenciado em um procedimento arbitral, em cuja teia de incentivos é concebida sob a égide da celeridade.
Pergunta-se então se a ARDC não poderia ser proposta em sede arbitral? Ora, somente poderíamos tratar de um pleito como este ao longo de um procedimento arbitral se fosse ele cumulado com outros pedidos de natureza eminentemente contratual que hajam tido o condão de acionar o foro escolhido.
Assim mesmo, a natureza aquiliana da responsabilidade civil que se busca reconhecer por meio de um pedido de reparação de danos concorrenciais ainda me parece óbvia, vez que o dano na formação dos preços de mercado ocorreu em momento prévio à própria celebração do contrato.
Ou seja, ainda que seja possível cumular tal pedido no pleito de um comprador direto que requer a reparação com base no reconhecimento de um cartel envolvendo seu fornecedor, me parece que o vício, neste caso, ocorre na fase pré-contratual, prejudicando a alegada boa fé do vendedor em demonstrar seu fair play e originando, inclusive, o direito do comprador em ressarcir-se nos seus lucros cessantes durante o período quando se pagou uma variação de sobrepreço em determinado produto.
Assim sendo, parece-me que o TPF pode ser o começo da revolução do private enforcement concorrencial no Brasil, mas certamente não terá o condão de solucionar todos os nossos problemas. Por aqui, a balança de LANDES apenas se equilibrará na medida em que os gargalos que ocasionaram a lacuna na utilização de ARDCs no Brasil sejam individualmente endereçadas. Infelizmente, desta vez o mercado sozinho não conseguirá solucionar as falhas do Estado. É chegada a hora da advocacia concorrencial resolver este dilema.
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O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE
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<a name="_ftn1"></a>[1] Segundo FORGIONI (2008, p. 395), acordos horizontais são “contratos celebrados entre agentes econômicos que atuam em um mesmo mercado relevante (geográfico e material) e estão, portanto, em direta relação de concorrência”. In FORGIONI, Paula A. Os Fundamentos do Antitruste. 3ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.
<a name="_ftn2"></a>[2] HOVENKAMP, Hebert. Federal Antitrust Policy: the law of competition and its practices. St. Paul Minn, West Group, 1999, p. 17-26.
[3] AGÊNCIA BRASIL. “Acordos do Cade rendem R$ 700,3 milhões para fundo do Ministério da Justiça”. Disponível em: &lt;https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-01/acordos-do-cade-rendem-r-700-milhoes-para-fundo-do-ministerio-da-justica&gt;. Acesso em 18 de dezembro de 2020.
<a name="_ftn3"></a>[4] FERNANDES, Pedro Rosa. Enforcement da Concorrência: enforcement privado na União Europeia. Faculdade de Direito da Universidade Católica de Lisboa, p. 2. Disponível em &lt;http://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/10320/1/tese%20-%20Final.pdf&gt;,  acesso em 20/12/2020.
<a href="about:blank#_ftnref3">[5]</a> William Landes foi professor de Direito da Universidade de Chicago, tendo publicado o emblemático artigo “Optimal Sanctions for Antitrust Violations” em 1983, como fruto de suas reflexões durante as aulas de Direito Antitruste que ministrava na universidade, na companhia de Frank Easterbrook e Richard Posner – o próprio Landes inclusive declara, em nota de rodapé, que as contribuições destes colegas foram substanciais à elaboração deste artigo que trata, essencialmente, sobre o raciocínio que deve ser seguido ao calcular as penas concorrenciais.

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JOTA

Análise dos dilemas no ordenamento brasileiro

Ação de reparação por danos concorrenciais, arbitragem e third-party funding

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